sábado, 26 de dezembro de 2020

A França Hoje (em 1993) - Paulo Roberto de Almeida

 384. “A França Hoje”, Paris, 16 dezembro 1993, 4 p. Texto sobre a situação política e estratégica da França no mundo contemporâneo e possibilidades de diálogo com o Brasil. Elaborado como “position paper” da Embaixada. Revisto sucessivas vezes para integrar maço básico sobre a França.

 

                                                A FRANÇA HOJE

 

Conselheiro Paulo Roberto de Almeida

Paris, 16/12/1993

 

A França sempre ocupou uma posição singular no quadro das relações internacionais e intraeuropeias contemporâneas: neutralizada durante a maior parte da segunda guerra e considerada no pós-guerra um “sócio menor” pelos aliados, ela teve de desenvolver uma ativa política externa, regional e internacional, para recuperar seu prestígio e posição abalados com a derrota e ocupação. A reafirmação política e o renascimento estratégico devem muito à ideologia gaullista, marcada pelo nacionalismo e pela ideia da “grandeza” da França, de que resultaram um grande esforço de modernização tecnológica e de capacitação militar, sobretudo nos terrenos nuclear, aeronáutico e espacial. Após o processo de descolonização, a manutenção de alguns postos coloniais caracterizados como “territórios de ultramar” também contribui no sentido da afirmação internacional do país.

Reassumindo no pós-segunda guerra sua condição de grande potência, ilustrada entre outros elementos pela sua participação como membro permanente no Conselho de Segurança da ONU, a França ainda assim conservou uma postura à parte, quando não recalcitrante, em relação à moldura política e estratégica imposta pelos Estados Unidos aos participantes do bloco ocidental. Alguns fatos ilustram esse posicionamento independente da França: a recusa da Comunidade Européia da Defesa, em 1954, a busca de um poder nuclear não submetido política ou tecnologicamente ao controle norte-americano, a retirada em 1966 do esquema militar do Tratado do Atlântico e do comando integrado da OTAN e a recusa em aderir ao TNP, ainda que cumprindo seus pressupostos básicos, até 1992.

A projeção externa da França, nas últimas décadas, deve muito à sua “force de frappe” nuclear, adquirida e mantida independentemente de qualquer esquema ocidental de defesa estratégica. Mas, essa projeção também esteve intimamente vinculada aos progressos da integração europeia, ela mesma dependente do estado das relações entre a França e a Alemanha: o estabelecimento da Comunidade do Carvão e do Aço, em 1951, e o Tratado de Amizade assinado por Adenauer e de Gaulle em 1962 marcam as etapas mais importantes do novo equilíbrio geoestratégico no continente, com profunda influência na política internacional da França. Os diversos desdobramentos da integração europeia, desde o Tratado de Roma, de 1957, passando pelo Ato Único de 1986 e pelos acordos da União Europeia de Maastricht, de 1992, até a eventual implementação da união monetária, no final desta década, refletem o entendimento prioritário alcançado entre a França e a Alemanha.

A França de meados dos anos 90 é um país moderno, capacitado tecnologicamente, dotada de uma classe política e de uma burocracia partidárias do planejamento indicativo e da ação coordenadora do Estado e dispostos a assumir os custos políticos e econômicos da projeção internacional do país. Para marcar sua posição independente, o contexto europeu lhe serve de cenário privilegiado para iniciativas de política internacional e regional, descartando em alguns casos qualquer papel especial reservado aos Estados Unidos.  

Derivam dessa política de afirmação externa a proposta feita por Mitterrand de uma grande federação europeia (que retoma o antigo projeto de De Gaulle de uma “Europa do Atlântico aos Urais”), as tentativas no âmbito da CEE de criar um sistema próprio de defesa e de segurança (que têm se chocado com a posição atlantista do Reino Unido, que adere à visão norte-americana) e, mais recentemente, a proposta de um pacto europeu de estabilidade política continental, que conduziria, num quadro exclusivamente europeu, ao que a CSCE, concebida no auge da guerra fria, já não consegue mais realizar: a garantia das fronteiras e da paz civil numa Europa central e oriental abalada pelos excessos dos nacionalismos. O projeto não foi contudo bem recebido pelos seus supostos destinatários, os ex-satélites da URSS, e seria de alcance limitado na medida em que não se aplicaria nem aos Balcãs nem aos diversos contenciosos envolvendo a Grécia e a Turquia no cenário sub-regional. 

Precisamente no que se refere ao processo de pacificação na ex-Iugoslávia, e mais particularmente na solução ao difícil problema da Bósnia-Herzegovina, a diplomacia francesa teve um papel protagonista, tanto no plano humanitário (liberação do cerco a Sarajevo e fim dos bombardeios sobre a cidade) como no quadro mais amplo do processo de paz. O empenho das lideranças políticas francesas (e pessoal do Ministro Alain Juppé) foi fundamental para o convencimento dos norte-americanos no sentido de comprometer o esquema militar da OTAN, em coordenação com o Conselho de Segurança das Nações Unidas, com um ultimatum credível lançado às partes engajadas naquele cruel conflito. Da mesma forma, a diplomacia francesa continua atuante na articulação de iniciativas que possam trazer uma solução global ao problema da pacificação nas ex-repúblicas iugoslavas. No plano multilateral, cabe destacar o papel destacado assumido pela França na negociação bem sucedida da Convenção sobre Armas Químicas, que retoma e completa os objetivos do Protocolo de Genebra, de que o país é depositário, bem como sua ativa participação nos diversos dossiês relativos à não-proliferação nuclear e controle de tecnologias duais (MTCR, reforma do esquema do COCOM, etc.).

A postura assumida pela França nas negociações comerciais multilaterais da Rodada Uruguai, nas quais ela esteve aparentemente isolada em momentos cruciais da discussão dos temas agrícola e audiovisual, evidencia igualmente a capacidade de sua diplomacia em vincular a Europa à defesa de seus interesses nacionais, transformando-os igualmente em “interesses europeus”. Contribuem para essa eficácia de suas iniciativas externas a disponibilidade, nos vários escalões do Estado francês, de funcionários e diplomatas de alta capacidade intelectual e organizacional, provenientes dos mesmos centros de formação e que logram manter a permanência dos interesses nacionais a despeito das mudanças ministeriais. A dualidade básica do Executivo francês – um sistema parlamentar saído de eleições proporcionais e um Presidente diretamente eleito pelo eleitorado, com responsabilidades constitucionais em matéria de política externa – tem assim seus efeitos minimizados na implementação de sua ação diplomática, mesmo, como ocorre atualmente, no caso de uma coexistência de um chefe de Governo e de um chefe de Estado oriundos de partidos políticos ideologicamente opostos.

Do ponto de vista geopolítico e geoeconômico, os círculos concêntricos de interesse estratégico francês se disseminam a partir do epicentro comunitário, agora tornado ainda mais importante do ponto de vista político com a entrada em vigor dos acordos de Maastricht sobre a União europeia e a conformação progressiva de uma união econômica e monetária. Em escala ampliada comparecem os problemas de segurança europeia, no qual as relações com a Rússia assumem papel estratégico, a estabilidade política e social nas fronteiras meridionais (aqui incluídas, no sentido lato, as regiões balcânica e mediterrânea magrebina, a Argélia em primeiro lugar) e a recuperação econômica da África negra, especialmente das ex-colônias. Em todas essas regiões, a preocupação com a possibilidade de uma imigração maciça está presente na mente dos dirigentes políticos e da própria opinião pública francesa. 

No plano econômico, a despeito de problemas sociais persistentes, com o desemprego na faixa de 11%, e de algumas disfunções do setor público (déficit orçamentário de cerca de 5% do PIB, falência do sistema previdenciário), a situação parece relativamente confortável, com uma inflação sob controle e modestas perspectivas de crescimento nos próximos anos. O atual Governo retomou e aprofundou o programa de privatização iniciado em 1986, com grande sucesso na oferta pública de ações de grandes companhias do setor de serviços (Banque Nationale de Paris) e da área industrial (Rhone Poulenc).

As condições do comércio internacional pós-Rodada Uruguai e a situação do sistema monetário europeu (atualmente um “shadow-SME”, segundo os especialistas) são objeto das reflexões dos políticos e burocratas franceses no período recente. Os resultados razoavelmente favoráveis obtidos, graças à pertinácia de sua diplomacia, ao cabo da Rodada Uruguai (flexibilização da reestruturação na área agrícola e exclusão do tema audiovisual), deixarão ainda assim algumas hipotecas no âmbito comunitário (reformulação provável do programa de reforma da PAC) e nas relações com os Estados Unidos. 

A balança comercial tem liberado excedentes satisfatórios no período recente, devido sobretudo às exportações de alto valor agregado, mas também à queda das importações num contexto recessivo. As empresas francesas realizaram grandes investimentos no exterior, em especial nos Estados Unidos, na África e nos demais países europeus (Reino Unido, Espanha e Itália), com uma menor presença no Japão. O Brasil é um dos países privilegiados na estratégia externa dos investidores franceses, mas nos últimos anos o movimento de capitais de risco tem sido modesto. A França tornou-se igualmente um grande recipiendário de investimentos diretos estrangeiros.

Do ponto de vista brasileiro, a França é um país com o qual mantemos um bom diálogo no contexto europeu, bem como um excelente programa de cooperação técnico-científica, com desdobramentos na área tecnológica. Como pontos de aproximação entre o Brasil e a França no terreno político podem ser citados uma mesma concepção geral sobre a necessidade de autonomia tecnológica, militar e estratégica em relação à única superpotência remanescente, uma aceitação doutrinária de um papel econômico regulador para o Estado e uma postura aberta à reforma dos fundamentos institucionais da ordem mundial sem pressupostos ideológicos muito marcados.

Parecem portanto estar abertos os caminhos para o aprofundamento do diálogo político de alto nível, com possibilidades de ampliar a cooperação em alguns setores selecionados da indústria de alta tecnologia, eventualmente inclusive na área espacial, objeto, no curso de 1992, de conversações ente o Ministro da Ciência e Tecnologia do Brasil e o Ministro da Pesquisa e do Espaço da França. Do ponto de vista da cooperação econômica e científica, não existem obstáculos maiores à intensificação de programas abrangentes nos mais diversos setores. Caberia, portanto, definir mecanismos e modalidades de consulta e coordenação para o estabelecimento de uma agenda de cooperação no período futuro.

 

 

[Paris, PRA: 314e: 16.12.93]

[2a. versão: 21.12.93]

[3a. versão: 22.12.93]

[4a. versão: 11.01.94]

[5a. versão: 03.03.94]

[6a. versão: 06.03.94]

 

384. “A França Hoje”, Paris, 16 dezembro 1993, 4 pp. Texto sobre a situação política e estratégica da França no mundo contemporâneo e possibilidades de diálogo com o Brasil. Elaborado como “position paper” da Embaixada. Revisto sucessivas vezes para integrar maço básico sobre a França.

 

 

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