quinta-feira, 9 de junho de 2022

100 dias de Guerra de Agressão da Rússia na Ucrânia: um pequeno depoimento - Paulo Roberto de Almeida (Instituto Montese)

Não sou, nunca fui, de me apresentar para falar sobre qualquer coisa para público indeterminado, Geralmente, no meu "natural reservoso" – como diria o coronel Ponciano de Azeredo Furtado, do genial "O Coronel e o Lobisomem", de José Candido de Carvalho –, prefiro ficar no meu canto de biblioteca, lendo, refletindo e escrevendo (nessa ordem), eventualmente dando aulas ou palestras também, quando me convidam, e depois publicando o que faço, se julgo adequado, apropriado e consistente. Não me convidei para falar neste evento: 

Mas, como insistiram em ter a minha opinião, eu a dei, mas não a tenho, pois foi gravada e será exibida na sexta-feira, 14hs, no Canal YouTube do Instituto Montese, um nome evocativo de uma das grandes batalhas da FEB na campanha da Itália.

Eventualmente, como sempre faço, para "aclarar as ideias" – alguns julgariam racista essa expressão –, eu também preparei um pequeno texto, que resume um pouco, mas muito pouco, do que penso sobre a maior tragédia do nosso tempo: um ditador sanguinário, genocida e criminoso de guerra tentando obliterar um povo e um país, pois que não obteve a sua submissão à sua tirania. Depois do fracasso dos primeiros dias da "operação militar especial" – na verdade, um campanha de extermínio –, Putin só tem três objetivos na sua guerra de agressão: destruir, matar, transformar a Ucrânia em Estado falido pelos próximos dez anos (na metade desse prazo a Ucrânia será admitida na UE, mas não precisa entrar na OTAN, nem é recomendável).

Meu texto, provisório, segue abaixo, para complementar o que eu terei falado nesse evento, gravado antecipadamente. Não vou recomendar que "divirtam-se", pois seria um escárnio na atual situação. 

Os 100 primeiros dias da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia: o Brasil afronta o Direito Internacional e a sua história diplomática

  

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Notas para exposição oral resumida no quadro do webinar do Instituto Montese sobre “100 dias de Guerra na Ucrânia”, dia 10 de junho, 14hs.

  

Agradeço o convite do Instituto Montese para manifestar minha opinião, na condição de simples cidadão brasileiro, e também professor, mas não como diplomata brasileiro, sobre os 100 dias do que foi chamado de “Guerra na Ucrânia”. Gostaria, antes de mais nada, de fazer uma observação terminológica e factual, e aqui vou ser extremamente objetivo quanto aos termos e o significado preciso dos conceitos: não existe uma “guerra na Ucrânia”, e sim uma guerra de agressão da Rússia, mais especificamente uma guerra de seu ditador, contra o governo, o povo e o território de um país soberano, a vizinha Ucrânia. A designação é essa, pois a isso nos leva uma leitura do Direito Internacional, que é o foco desta contribuição; não tenho nenhuma competência para me pronunciar sobre o lado militar da questão.

Que a “operação militar especial”, tal como designada enganosamente pelo ditador russo, seja, de fato, uma guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia está meridianamente claro, a partir de uma leitura dos artigos 1º e 2º da Carta das Nações Unidas, estabelecida em San Francisco, ao término do mais cruel e mortífero conflito global em toda a história da humanidade. Assim também decidiu, preliminarmente, o julgamento de 13 juízes da Corte Internacional de Justiça, em 17 de março de 2022, contra apenas dois – por acaso os da Rússia e da China –, ordenando expressamente que a Rússia interrompesse imediatamente a guerra contra a Ucrânia e cessasse completamente as operações bélicas no território do vizinho país. A CIJ não tem, obviamente, nenhum poder sobre o lado militar dessa guerra de agressão, que já completou 100 dias, pois mesmo para se pronunciar apenas sobre os aspectos de Direito Internacional a ela ligados, a Corte dependeria de resoluções do Conselho de Segurança. Apenas esta peculiaridade da conformação do processo decisório no âmbito das Nações Unidas explica que resoluções aprovadas com ampla maioria naquele Conselho ou na Assembleia Geral permaneçam letra morta, ainda que a condenação moral é muito clara.

O ditador russo não deslanchou apenas uma guerra de agressão contra o território ucraniano, um país soberano, como tal reconhecido pelas Nações Unidas desde quando ele foi desmembrado da finada União Soviética no início dos anos 1990. Putin, ao invadir a Ucrânia, sem qualquer provocação ou gesto belicoso desse país, não apenas violou a Carta da ONU, mas destruiu mais de quatro séculos de difícil construção de uma ordem internacional baseada na força do Direito, e não no direito da força. Ele começou violando os tratados de Westfália (1648), sobre o reconhecimento recíproco da soberania dos Estados nacionais, cada um possuindo o direito de estabelecer o seu próprio regime político e a sua religião. Também violou princípios implícitos decididos no Congresso de Viena (1815), sobre a legitimidade dos Estados nacionais e o reconhecimento de seus enviados diplomáticos, como canais de diálogo e de consulta entre dois ou mais soberanos. Ele violou o Tratado de Paris (1856), que estabeleceu a paz entre os contendores da primeira guerra da Crimeia, de 1853 a 1855. Da mesma forma, agiu contrariamente às decisões das negociações de paz de Paris (1919), que estabeleceu a Liga das Nações, com disposições relativamente similares às da Carta de San Francisco sobre a proibição das guerras de agressão. Se colocou frontalmente contrário aos poucos dispositivos do Pacto Briand-Kellog (1928), de renúncia à guerra e de recursos aos meios pacíficos de solução de conflitos, depois incorporados à Carta das Nações Unidas.

Ou seja, Putin é um violador serial dos principais instrumentos multilaterais que foram sendo acordados dentro do espírito e da letra do Direito Internacional nos últimos quatro séculos. Pelas suas ações, registradas e devidamente avaliadas por observadores da Corte Internacional de Justiça e do Tribunal Penal Internacional, Putin já incorreu nos mesmos crimes de que foram acusados os dirigentes civis e militares nazistas no Tribunal de Nuremberg, em 1946: crime contra a paz, crimes de guerra e contra a humanidade. Putin mereceria um Nuremberg só seu, mas sobre isto a História se pronunciará no futuro curso dos eventos. Não vou me estender mais sobre os aspectos multilaterais da questão, e sim tratar da relação entre o Brasil e o Direito Internacional, que me parece seriamente comprometida. 

O Brasil sempre demonstrou, até recentemente, uma adesão inquestionável aos valores e princípios do Direito Internacional, tal como foram sendo elaborados e acatados nos últimos duzentos anos pela sua diplomacia, ainda que nem sempre o país tenha sido um seguidor fiel de alguns de seus dispositivos. Por exemplo, o compromisso assumido no âmbito do Congresso de Viena, na condição de Reino Unido ao de Portugal e Algarve, de fazer cessar o tráfico escravo, não foi traduzido na prática, como tampouco ocorreu, já como Estado independente, depois de assinar tratados bilaterais com a Grã-Bretanha prometendo fazê-lo em breves anos à frente. Mas, mesmo defendendo, até o Segundo Reinado, o nefando comércio, sua diplomacia, então guiada por Paulino Soares de Souza, argumentou de modo correto no plano jurídico, ao protestar contra o Bill Aberdeen, que equiparava o tráfico à pirataria, passível, portanto, de severa punição, indo até mesmo à pena de morte. Como escreveu em nota diplomática o Visconde do Uruguai, o tráfico não ameaçava o comércio internacional como a pirataria o fazia, e, de toda forma, não havia nenhum tratado internacional proibindo o horrível comércio de carne humana. Argumento bastante lamentável no plano moral, mas juridicamente correto.

O Brasil, por essa época, interferia nos assuntos internos do Uruguai, sob a justificativa de que do Uruguai partiam ataques contra o patrimônio de brasileiros em território nacional, num contexto de diferendos bem mais amplos com a Argentina de Rosas e com o Paraguai de Solano Lopes, que resultaram em duas guerras no espaço de duas décadas. Tampouco havia, a despeito do “espírito de Westfália”, um compromisso formal de não interferência nos assuntos internos de outros Estados, esporte ao qual se dedicavam todas as potências europeias da época. Desde a Guerra do Paraguai, e independentemente dos progressos feitos no terreno do Direito Internacional, assim como no âmbito de sua própria Constituição – a de 1891, por exemplo, proibiu terminantemente o recurso à guerra –, o Brasil se manteve integralmente fiel ao espírito e à letra dos instrumentos internacionais que foram sendo progressivamente incorporados aos edifícios hemisféricos e multilaterais dos dispositivos formais e informais regendo a ordem internacional. 

Os pilares dessa diplomacia nacional estritamente respeitadora da soberania nacional e de fiel cumprimento de instrumentos jurídicos internacionais foram impulsionados pela política externa do Segundo Reinado, consolidados pelos dois Rio Branco, pai e filho, e magnificamente sustentados por Rui Barbosa por ocasião da segunda conferência internacional da paz da Haia, em 1907; contrariando muitas vezes sozinho a arrogância das grandes potências, Rui Barbosa defendeu o princípio da igualdade soberana de todos os Estados, conceito que se converteu no eixo central do multilateralismo contemporâneo. O mesmo Rui Barbosa clarificou a observância da neutralidade em casos de guerra e procedeu a uma vigorosa tomada de posição em defesa do direito de neutralidade em situações de conflito, e sua violação, na famosa conferência feita em Buenos Aires, em 1916, doutrina sistematizada na obra Princípios Modernos do Direito Internacional, mais vulgarmente conhecida como Os Deveres dos Neutros

O Brasil, estritamente neutro, justamente, com respeito aos dois grandes conflitos globais da primeira metade do século XX, a Grande Guerra de 1914-18 e a Segunda Guerra, de 1939 a 1945, avançou para uma declaração formal de status bélico apenas quando foi covardemente atacado por forças marítimas do Império alemão e do Reich nazifascista, respectivamente. Participamos ativamente da construção da ordem econômica e política contemporânea, mesmo não concordando em San Francisco com o direito de veto que se atribuiu aos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU. 

Mas, o Brasil e sua diplomacia começaram a falhar no acatamento aos princípios do Direito Internacional desde que aqui se inaugurou uma política externa partidária, quando da diplomacia lulopetista praticada de 2003 a 2016. O presidente Lula ignorou completamente dispositivos da Convenção de Viena de 1961, sobre relações diplomáticas, relativos à não interferência nos assuntos internos de outros Estados, aliás incorporados explicitamente ao artigo 4º da Constituição de 1988, junto com vários outros princípios, que correspondem às cláusulas mais importantes observadas nas relações internacionais contemporâneas, coincidentes com os grandes instrumentos multilaterais que regem as relações entre Estados soberanos. Lula violou sistematicamente tais dispositivos ao interferir em praticamente todas as disputas eleitorais em Estados vizinhos, apoiando candidatos pertencentes ao mesmo arco político-ideológico do seu partido. Mais grave ainda: quando da nacionalização dos recursos em hidrocarburos da Bolívia, em 1/05/2006, ela mesma uma violação grave de um tratado bilateral Brasil-Bolívia e de um acordo do governo boliviano com a Petrobras, mediante inclusive o uso da força pelo presidente Morales, a diplomacia de Lula – que pessoalmente deveria saber antecipadamente dessa iniciativa de seu companheiro de postura política, mas que provavelmente desconhecia o emprego do exército boliviano para ocupar as instalações da Petrobras – não apenas concordou com a expropriação, como soltou uma nota apoiando o gesto ilegal do governo do país vizinho. Militares nacionalistas poderiam eventualmente considerar tal postura como o equivalente de uma traição à pátria. De forma geral, a diplomacia partidária tendeu a favorecer aliados políticos, na região e fora dela, mesmo em detrimento dos interesses nacionais, em alguns casos implicando e violação de acordos bilaterais (no caso de Itaipu) ou regionais (no caso do ingresso da Venezuela no Mercosul).

Outro episódio grave, ainda no plano do direito internacional, ocorreu quando da invasão do território ucraniano em 2014, sob as ordens do mesmo Putin, e a anexação ilegal da península da Crimeia: a diplomacia lulopetista, então sob comando da presidente Dilma Rousseff, não emitiu sequer um comunicado condenando a grave violação da soberania da Ucrânia, o que tampouco ocorreu quando da derrubada de um avião da Malásia sobrevoando a região da Ucrânia oriental, já em conflito justamente devido à ocupação ilegal daquele setor por forças russas não devidamente identificadas. Optou-se por uma postura totalmente inerte no plano da política externa e da diplomacia brasileira, contrastando com a obrigação pelo menos moral de defesa do direito internacional e dos princípios da Carta da ONU, num momento em que diversos países ocidentais protestavam vigorosamente contra a invasão e introduziam sanções contra a Rússia. A presidente Dilma se manifestou apenas quando cobrada pela imprensa, dizendo que o Brasil não se envolveria (sic) em assuntos de outros países, como se fosse esse o problema no caso. Uma provável razão pela inação vergonhosa do ponto de vista dos princípios sempre defendidos pela diplomacia profissional pode ter sido a parceria entre o Brasil e a Rússia no âmbito do Brics, uma construção claramente artificial, e totalmente política, entre quatro, depois cinco, países sem grandes convergências no plano da política internacional.

O caso da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, desde 24 de fevereiro de 2022, depois que o ditador russo passou semanas denegando a invasão, é infinitamente mais grave, ainda que o Brasil tenha supostamente aderido às resoluções votadas na ONU – no Conselho de Segurança e na Assembleia Geral – e no seu Conselho de Direitos Humanos, condenando a Rússia pelos atos cometidos desde então, mas com explicações de voto que traduzem claramente a decisão do chefe de Estado brasileiro de evitar acusar diretamente a Rússia pelas transgressões bárbaras perpetradas em território ucraniano. Sem adentrar nas minúcias da Carta da ONU, dos grandes princípios do Direito Internacional, assim como dos protocolos existentes sobre as leis de guerra, cabe registrar apenas algumas observações sobre a postura política do Brasil, não apenas no tocante às resoluções votadas no âmbito da ONU e do Conselho de Direitos Humanos, mas refletindo igualmente a atitude geral das autoridades políticas brasileiras com respeito ao posicionamento geral em relação à guerra de agressão.

É notoriamente conhecido que o Brasil, como país e como diplomacia, se encontra atualmente singularmente isolado no plano internacional, aliás desde o início de 2019, tendo em vista, basicamente, a postura, digamos heterodoxa, do chefe de Estado e de governo no seu relacionamento externo, tanto regional, quanto internacional ou multilateral. Tal situação de isolamento internacional decorreu das políticas domésticas do governo Bolsonaro, notadamente no domínio ambiental, mas também por repetidos ataques às instituições – Congresso e Suprema Corte) –, aos meios de comunicação, às organizações da sociedade civil (não governamentais) das áreas de defesa do meio ambiente, dos direitos indígenas, de ação social em geral. Ademais, o chefe de Estado hostilizou parceiros estrangeiros, com destaque para os líderes europeus, o presidente peronista da Argentina e dirigentes tidos de esquerda de maneira geral. De forma bastante evidente buscou relações unicamente com colegas de direita ou extrema-direita, além de prestar submissão ao anterior presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. 

Foi nessa situação de extremo isolamento que o presidente buscou realizar uma visita de trabalho a um dos poucos líderes mundiais que poderia recebê-lo, o presidente da Rússia, provavelmente já antecipando conquistar um aliado para o que já pretendia fazer poucos meses à frente. Quando se decidiu tal viagem bilateral, entre os dois chanceleres, Serguei Lavrov e Carlos França, no início do último trimestre de 2021, não estavam claros, ainda, os preparativos para a planejada ofensiva russa contra o país vizinho, o que foi feito por meio da acumulação de tropas russas na fronteira comum nos últimos dois meses daquele ano. Ao tomar conhecimento desse planejamento, a chancelaria brasileira recomendou que o presidente adiasse ou cancelasse a viagem, o que ele se recusou a fazer, mesmo com manifestações de alerta vindas do próprio presidente americano, Joe Biden (a partir de dados da inteligência dos EUA). A visita, ocasião na qual o presidente brasileiro declarou sua “solidariedade” ao presidente russo e justificada pela necessidade de importação de fertilizantes russos, foi feita oito dias antes de efetivada a invasão, que foi até minimizada pelo presidente.

Independentemente de palavras e gestos do presidente, a postura oficial do Brasil que vale para fins de política externa e de legitimação junto à comunidade internacional são as declarações feitas junto às Nações Unidas, cujos órgãos principais, o Conselho de Segurança e a Assembleia Geral, se ocuparam da questão da Ucrânia nas semanas seguintes à guerra de agressão da Rússia. Não cabe aqui reproduzir a íntegra das declarações da delegação do Brasil em Nova York e em Genebra (Conselho de Direitos Humanos), todas eles disponíveis no site do Itamaraty, ou a partir dos registros da ONU. O que cabe é sinalizar pormenores dessas declarações que revelam, se preciso fosse, o contorcionismo verbal da diplomacia profissional para evitar de responsabilizar claramente a Rússia pela guerra de agressão. Podem ser destacados quatro elementos nessas declarações que tornam evidente a postura do chefe de Estado no sentido de continuar apoiando objetivamente a postura de Putin. 

Em primeiro lugar, sem condenar explicitamente a violação flagrante da Carta da ONU, a delegação brasileira instou as partes à “cessação de hostilidades”, como se estas fossem recíprocas, ou seja, uma guerra empreendida por decisão de ambas as partes, e não uma guerra unilateral sem qualquer provocação da parte agredida e invadida. Em segundo lugar, a delegação também pediu negociações entre elas, tendo em vista as “preocupações de segurança das partes”, como se a Ucrânia tivesse ameaçado, em algum momento, a segurança da Rússia. Em terceiro lugar, mesmo votando pela condenação da Rússia na Assembleia Geral – uma votação de toda forma inoperante, dado uso abusivo do poder de veto em defesa do próprio transgressor da Carta da ONU –, a delegação brasileira se opôs terminantemente à imposição de sanções contra a Rússia, a pretexto de que qualquer punição agravaria a situação econômica no mundo inteiro, o que significa, implicitamente, que o agressor pode se safar impune das ilegalidades e crimes perpetrados. Em quarto e último lugar, a delegação também se pronunciou contrariamente ao fornecimento de armas à Ucrânia, a pretexto de não provocar maior número de vítimas, o que se traduz num simples “convite” a que um governo soberano renuncie à defesa do seu povo e território. 

Os quatro posicionamentos da delegação brasileira não são a rigor, ilegais, do ponto de vista do Direito Internacional, mas são altamente hipócritas, tendo em vista a acumulação de crimes de guerra e até, possivelmente, crimes contra a humanidade, perpetrados pelas tropas russas de ocupação. A hipocrisia puramente política – não teoricamente contrária ao direito internacional – se estende inclusive à oposição do Brasil à imposição de sanções à Rússia, a pretexto de que elas seriam “unilaterais”, e não aprovadas pelo CSNU, como se este pudesse fazê-lo não obstante o veto russo a qualquer medida contrária a seus interesses. No que concerne as sanções, cabe registrar que elas se conformam inteiramente ao espírito e à letra dos artigos 41 e 42 da Carta da ONU, que regulam tal faculdade. Ou seja, os países estão apenas aplicando as medidas previstas na Carta de San Francisco, numa situação em que – da mesma forma como ocorre nas cortes quando juízes se declaram impedidos de atuar em casos nos quais eles possam incorrer em qualquer conflito de interesse – o veto da Rússia não poderia ser aplicado em seu próprio favor, dado o fato de que ela é a parte agressora, aquela que violou as disposições mais relevantes do instrumento máximo do Direito Internacional. 

Ao se conformarem os 100 primeiros dias da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, neste dia 4 de junho de 2022, a diplomacia brasileira apresenta, por nítida pressão da presidência, um triste quadro de contorcionismo verbal e subterfúgios retóricos para evitar de se colocar, como geralmente fez ao longo de sua história de dois séculos, sob o espírito e a guarda de sagrados princípios do Direito Internacional, e até mais do que isso, da moralidade. A restauração da credibilidade e da legitimidade da diplomacia brasileira terá de aguardar a própria reconstrução de uma política externa coerente e condizente com as próprias cláusulas de relações internacionais que figuram no Artigo 4º de sua Constituição e que integram o seu patrimônio histórico de conformidade ao Direito Internacional em todas as circunstâncias.


Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4165: 3 junho 2022, 7 p.


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