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sexta-feira, 15 de julho de 2022

Resenha de Laços de Confiança, de Celso Amorim, por Sergio Leo

 *Anotações do ex-ministro Celso Amorim revelam disputa e desconfiança na diplomacia brasileira*

Em “Laços de confiança”, ex-chanceler destaca relação com países vizinhos

Por Sergio Leo — Para o Valor, de Brasília

15/07/2022 05h03  Atualizado há 3 horas


“Por que o senhor dá tanta atenção à América do Sul?”

“Porque moro aqui.”

O diálogo, com um repórter, é contado pelo ex-ministro das Relações Exteriores e da Defesa Celso Amorim, na obra recém-lançada “Laços de confiança”, da editora Benvirá; e traduz a tese que inspirou o livro: a atuação do Brasil no mundo exige maior atenção aos vizinhos, e iniciativas para o desenvolvimento dos países sul-americanos. Sem a integração bem-sucedida com a vizinhança, sugere o ex-ministro, a região corre o risco de ficar a reboque de interesses de grandes potências com grande força gravitacional, como os Estados Unidos.

Amorim, ministro de Relações Exteriores nos governos Itamar Franco e Luiz Inácio Lula da Silva, relata sua intensa - e atribulada - interlocução com um leque variado de governantes, do republicano George W. Bush ao bolivariano Hugo Chávez. O título do livro, “Laços de confiança”, é a citação de um comentário do ex-presidente da Colômbia Álvaro Uribe, um dos improváveis parceiros nas iniciativas diplomáticas do ex-ministro.

“Mostrar que a realidade já foi outra e que é possível a construção de uma América Latina e Caribe fortes, unidos em sua diversidade, é um dos objetivos deste livro”, explicita o diplomata, lamentando o amadorismo na diplomacia do governo atual.

Ao lembrar da disputa acirrada entre argentinos e uruguaios em torno da instalação de poluidoras fábricas de celulose no rio Uruguai, Amorim queixa-se de que a briga foi usada pelos críticos de sua política externa “altiva e ativa”, para desdenhar de suas ambições de tornar o Brasil um mediador confiável - até em desafios distantes da região, como no acordo nuclear com o Irã. Outros momentos mais felizes, porém, como a solução de conflitos entre a Colômbia e vizinhos, credenciaram o país a ser visto como interlocutor confiável e importante na formação de consensos, defende.

Os diários de Amorim que inspiram o livro dão pistas sobre, por exemplo, a visão, à esquerda, sobre o acordo de comércio firmado - e ainda não ratificado nos parlamentos - pelo Mercosul com a União Europeia: temas importantes para os europeus e aceitos sem muito debate nos últimos governos brasileiros, como reforço dos direitos de propriedade intelectual, fim de exclusividade de comprar do governo para fornecedores locais e redução da proteção a setores industriais considerados estratégicos foram e continuam assuntos caros ao antigo chanceler e seu entorno político.

Ao contrário da imagem de leniência com países vizinhos popularizada pelos críticos da política externa durante as gestões de Amorim no comando da diplomacia, as anotações reproduzidas pelo ex-ministro mostram inúmeras disputas e desconfianças na diplomacia brasileira para administrar o jogo político e econômico entre os governos de esquerda que eram maioria no continente.

O então presidente Lula é mostrado ora inclinado a aceitar argumentos dos companheiros governantes de esquerda, ora irritado e duro na negociação com eles, como nas discussões com a Petrobras sobre os interesses da empresa na Bolívia. O petista usa o Itamaraty para fazer um jogo ambíguo com os governos vizinhos, temerosos do “sub imperialismo” brasileiro.

Em uma das passagens mais surpreendentes do livro, Amorim revela a orientação recebida do presidente, digna do “brasileiro cordial” descrito por Sergio Buarque de Holanda: “Celso, é melhor você tomar conta da Bolívia. Eu não posso. Fico com muita pena quando vejo aqueles indiozinhos pobres”.

Curiosamente, governos à direita, como os dos colombianos Álvaro Uribe e Juan Manuel Santos, mostram-se, nos relatos de Amorim, de mais fácil diálogo, reconhecidas diferenças evidentemente inconciliáveis em questões como a maneira de tratar a guerrilha colombiana. No caso das atribulações com os guerrilheiros, que ocupam boa parte dos relatos sobre a Colômbia, prevaleceu, com Santos, porém, a lógica defendida por Amorim, de tratar os guerrilheiros como insurgentes, e negociar sua incorporação à política democrática.

“A esquerda às vezes dá mais trabalho”, desabafa Amorim, ao relatar atritos com o uruguaio Tabaré Vasquez e o paraguaio Fernando Lugo. Apesar da convicção em favor dos chamados governos progressistas na região, por suas políticas claramente favoráveis à maior distribuição de renda e autonomia econômica, não faltam críticas ao “radicalismo” de Hugo Chávez, na Venezuela, e do governo Kirchner, na Argentina, dos quais o livro dá inúmeros exemplos.

Chávez é criticado por seus “arroubos” e gestos preocupantes e contraproducentes, “entre o burlesco e o provocador”. “Respeitamos o que Chávez quer fazer dentro da Venezuela”, disse o então presidente da República, em conversa com George Bush relatada por Amorim; “mas quando atua na região”. O diálogo, aliás, é um dos bastidores do esforço lulista de mostrar-se como mediador nas relações dos bolivarianos com governos dos EUA.

Para Amorim, Chávez tinha legítimo interesse em melhorar a vida dos venezuelanos, e enfrentar “com coragem uma elite reacionária, que sempre se locupletou com as receitas do petróleo e cuidou pouco da população pobre”. Mas trazia ameaças à estabilidade da região, que o Brasil tinha o dever de administrar diplomaticamente

“A Venezuela nunca poderá promover a ‘revolução bolivariana’ em países de sociedades complexas como o Brasil e a Argentina, mas pode causar estragos de monta em nações mais frágeis e fragmentadas como a Bolívia e o Equador”, comenta Amorim. “Até aqui, nossa estratégia tem sido a de atrair a Venezuela, integrando-a ao Mercosul.”

O cuidado da edição em trazer notas e índices onomásticos, uma excelente característica dos livros de Amorim, ajuda a atravessar a aridez de alguns trechos com mais concessões ao patuá dos negociadores internacionais. O ex-chanceler deixa um documento importante, fonte de abundantes elementos para analisar a política externa recente e seus possíveis rumos no futuro.

https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2022/07/15/anotacoes-do-ex-ministro-celso-amorim-revelam-disputa-e-desconfianca-na-diplomacia-brasileira.ghtml

segunda-feira, 11 de julho de 2022

PT quer que China seja mediadora de negociações sobre a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia - Bruno Boghossian, Ricardo Della Coletta (FSP)

 Aliado de Lula se reúne com europeus e defende China como mediadora na Ucrânia


Ex-chanceler Celso Amorim falou sobre política externa com diplomatas da UE em evento de missão francesa

11.jul.2022 às 7h00
Bruno Boghossian
Ricardo Della Coletta

BRASÍLIA - Principal conselheiro do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para assuntos internacionais, o ex-chanceler Celso Amorim se reuniu no último dia 28 com um grupo de diplomatas europeus para apresentar o que seriam as linhas gerais da política externa de um terceiro mandato do petista.

Amorim viajou a Brasília para participar de uma reunião organizada pela representação diplomática da França, comandada pela embaixadora Brigitte Collet. Além dos franceses, participaram o chefe da delegação da União Europeia no Brasil, Ignacio Ibáñez, e representantes das demais missões europeias em Brasília.

A conversa se deu num contexto em que Lula lidera as pesquisas de intenção de voto, com 19 pontos de vantagem sobre Jair Bolsonaro (PL), segundo o último levantamento do Datafolha. Alguns governos europeus —notadamente o de Paris, anfitrião do encontro— têm ainda um histórico de conflitos com o atual presidente.

Procurada, a embaixada da França no Brasil não quis se manifestar.

De acordo com relatos feitos sob reserva, o ex-ministro das Relações Exteriores iniciou sua apresentação ressaltando que não é dirigente do PT e que não participou da elaboração das diretrizes do plano de governo de Lula. Portanto, não falaria em nome do ex-presidente ou da campanha.

A avaliação entre os presentes, no entanto, é que Amorim será uma das vozes mais ouvidas pelo petista em temas internacionais num eventual novo governo —não importa quem esteja no Itamaraty.

Um dos pontos debatidos com os europeus foi a Guerra da Ucrânia, tema central na agenda da União Europeia, que apoia a resistência militar liderada por Volodimir Zelenski contra a Rússia —mesmo em meio a tensões e sinais de cansaço.

Em março, uma entrevista de Lula à revista Time causou mal-estar, depois de o petista dizer que o líder ucraniano era tão responsável pela situação quanto Vladimir Putin e que EUA e UE estimularam o conflito.

Ainda segundo os relatos, na reunião Amorim afirmou que a Rússia precisa ser criticada, por ter cruzado uma linha vermelha ao invadir um território sem autorização das Nações Unidas, mas classificou a estratégia do Ocidente de debilitar Moscou por meio de sanções de "extremamente perigosa" —Bolsonaro já criticou o mecanismo.

Participantes do encontro disseram à Folha que Amorim argumentou que é necessário ter uma dose de "realismo político" e encontrar um mediador com poder de persuasão sobre os dois lados. Papel, segundo ele, que poderia ser desempenhado pela China. Pequim firmou, antes do conflito, uma "parceria sem limites" com a Rússia, em um movimento criticado pelos EUA, que travam com a potência asiática uma Guerra Fria 2.0.

Os presentes também quiseram saber a opinião do ex-chanceler sobre o acordo entre UE e Mercosul. Assinado em 2019, o tratado está bloqueado principalmente por causa das críticas de europeus como a França à agenda de Bolsonaro para o ambiente. Para o governo brasileiro, a posição de Paris é tachada de protecionismo agrícola.

Os europeus estavam apreensivos por declarações recentes de Lula. Numa viagem ao continente em novembro, o petista defendeu a reformulação do acordo comercial.

Segundo pessoas na plateia, Amorim moderou essa fala: defendeu que o tratado precisa passar por "reflexões e ajustes" que preservem condições para o desenvolvimento industrial e tecnológico dos membros do Mercosul.

Ele ainda fez o alerta de que não pode haver pressa, defendendo que o acordo não seja assinado antes do início de um eventual novo governo —o argumento é de que um texto assinado ainda na gestão Bolsonaro teria "vício de origem".

O ex-ministro abordou ainda pleitos históricos do Itamaraty, como o de uma reforma no Conselho de Segurança da ONU. Segundo ele, a estrutura do colegiado não tem sido eficaz para a resolução de desafios globais.

Amorim detalhou sua visão sobre o papel da Europa para o Brasil, afirmando que a UE tem um papel estratégico no cenário global, podendo servir como ponto de equilíbrio num mundo cada vez mais dividido pela disputa EUA-China.

https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2022/07/aliado-de-lula-se-reune-com-europeus-e-defende-china-como-mediadora-na-ucrania.shtml

quarta-feira, 29 de junho de 2022

Celso Amorim: “Brasil deve ser contrário à influência de EUA e China” - Guilherme Amado (Metrópoles)

 Celso Amorim: “Brasil deve ser contrário à influência de EUA e China”


Amorim diz que áreas de influência são herança do período colonial e que não haverá caça às bruxas no Itamaraty num eventual governo Lula

Guilherme Amado
29/06/2022 2:00, atualizado 29/06/2022 8:27

Chanceler durante os dois mandatos de Lula e ministro da Defesa durante parte do governo Dilma, o embaixador Celso Amorim avalia que a postura mais inteligente para o Brasil seria não tomar partido na disputa entre Estados Unidos e China, em meio à tentativa de estabelecer áreas de influência na América Latina. “Áreas de influência são uma herança colonial”, disse Amorim, em entrevista à coluna. “Não queremos sair de uma dependência para outra.”

O ex-chanceler assegurou que não haverá uma caça às bruxas no Itamaraty caso Lula vença as eleições presidenciais. Amorim criticou a gestão do Itamaraty no governo Bolsonaro e disse que mudanças em cargos de confiança serão naturais com uma eventual troca de governo. Ele afirmou, no entanto, que as substituições serão feitas de acordo com as regras estabelecidas pelo Ministério das Relações Exteriores.

O ex-chanceler, que completou 80 anos no início deste mês, lança pela editora Benvirá o livro “Laços de confiança”, sobre a relação do Brasil com os países da América do Sul, com análises país a país, e prepara ainda um livro de memórias, para novembro, intitulado “Uma visão de Brasil”. A obra será lançada pela editora Civilização Brasileira.

Considera que estamos no início de uma nova configuração da América do Sul, semelhante à que tivemos no período em que foi chanceler?

É fundamental ver o que vai acontecer com o Brasil. Tenho muita confiança, porque o Brasil é metade da América do Sul, um terço mais ou menos da América Latina, mais da metade da América do Sul em termos de população, PIB e território, então qualquer análise do conjunto da América do Sul sem o Brasil é uma análise incompleta. Mas, confiando como eu confio em uma vitória da coligação democrática do Lula com o Alckmin, sem dúvida isso ocorrerá de maneira até mais forte, porque já passamos por um período um pouco ingênuo em relação a reformas. Há mais consciência do que é preciso fazer, das alianças que precisamos fazer e da amplitude das alianças. Por outro lado, há um número maior de países com governos empobrecidos. Hoje em dia nós temos o Chile, Colômbia, que tinha um governo de direita… Aliás, uma curiosidade, que eu tinha que falar agora, porque o título do livro, “Laços de Confiança”, foi uma uma expressão que me ocorreu na saída de um encontro com o [ex-presidente da Colômbia Álvaro] Uribe. Era um governo totalmente diferente do nosso, mas havia uma confiança porque sabíamos que as relações eram estáveis. Cada vez que o Uribe tinha um problema com a Venezuela — e ele teve muitos –, ele não corria para Washington, ele corria para Brasília. Saindo de uma dessas reuniões com o Uribe, veio na minha cabeça, laços de confiança, foi isso que conseguimos criar na América do Sul e na América Latina. O livro se concentra mais na América do Sul, mas isso também era válido para América Latina de modo geral, e hoje em dia mais ainda, porque temos países como o México. Se ganhar a coligação democrática, será a primeira vez que você terá quatro ou cinco dos maiores países da região com governos progressistas.

Sobre a disputa entre China e Estados Unidos pela influência exercida na América Latina, qual que você considera que deve ser a postura brasileira nessa disputa?

Nem uma nem outra. O Brasil deve ser contrário às áreas de influência. As áreas de influências são uma herança colonial. O Brasil tem peso para fazer isso, o presidente Lula tem credibilidade para conduzir um processo desse tipo, trabalhar por um mundo multipolar. Nós temos uma relação estratégica, que nos interessa aprofundar com a União Europeia. Temos com a China também e temos com os Estados Unidos. Não estabelecemos relações estratégicas com o Reino Unido, mas nós tivemos uma relação muito boa, em termos muito complexos, e pretendemos que seja assim. Até porque, veja bem, embora em matéria de política internacional possamos ter alguma crítica, mais até na maneira de fazer a política que o Biden tem levado adiante internamente, há muitas coisas positivas. A falha maior é ele não ter conseguido fazer tudo que quis. Os investimentos em infraestrutura, na erradicação da pobreza, para os jovens, na questão das desigualdades raciais, isso é muito positivo. Acho que isso nos aproxima naturalmente dos Estados Unidos, mas é preciso que os Estados Unidos entendam que tem que ser uma cooperação igual em matéria de dependência, na base de cooperação e respeito mútuo. Isso é possível perfeitamente, já tivemos momentos assim e podemos ter com mais razão ainda com um governo que se autoproclama um herdeiro do Roosevelt. Vamos pegar esse lado, que é um lado mais positivo. E na expectativa de que na parte internacional as correções de rumo vão ocorrendo com mais naturalidade.

Mas você detalhou mais o discurso para os Estados Unidos do que o discurso para China. E para a China, o que deveria ser dito? Qual deveria ser o posicionamento?

Com a China, os números são tão eloquentes que você não precisa falar. É claro que haverá algo a conversar, temas sobre a governança global que temos que discutir, mas temos semelhanças e diferenças. A China só fez crescer, se aprofundar e desenvolver. É um parceiro comercial fundamental. Mas, ao mesmo tempo em que temos um grande superávit comercial, há um grande desequilíbrio qualitativo. Temos que enfatizar a sua operação tecnológica, a sua habilidade de colocação de produtos manufaturados e tudo que é importante na relação comercial com outros países. Agora, o comércio com a China é algo muito forte, é da natureza das coisas, não é só com o Brasil. Aliás, é com quase toda a América do Sul. No caso do Brasil, para você ter uma ideia, o nosso superávit comercial com a China é maior do que o total das exportações para os Estados Unidos. Isso dá uma ideia da grandeza do comércio, mas não queremos sair de uma dependência e passar para outra. Tem que ter um ponto de equilíbrio, por isso a relação com a União Europeia é muito importante. É claro que eu estou falando essas coisas, mas o mundo é muito complexo. Tem a guerra na Ucrânia, essas coisas todas mexem com o conjunto do mundo. Agora, eu confio que o mundo caminhará. Certamente ele saiu da bipolaridade da Guerra Fria e está saindo da unipolaridade, que é a hegemonia norte-americana, mas também não pode cair numa outra bipolaridade da China e Estados Unidos. Tem que caminhar para o mundo multipolar, e o nosso relacionamento com a América Latina, com a América do Sul e com a Europa é muito importante também.

Houve uma coincidência no posicionamento do ex-presidente Lula e do presidente Jair Bolsonaro em relação à guerra da Ucrânia em alguns pontos, principalmente na ponderação sobre o que ambos consideraram contribuições da Ucrânia para a situação. Por que você acha que aconteceu essa convergência, considerando que os dois têm visões de política externa e visões de mundo completamente diferentes?

Eu não diria que é uma coincidência, porque o Bolsonaro sequer exprime as posições dele em termos de valores. São imediatismos, que levaram a permitir, de certa maneira, que o Itamaraty ficasse sufocado por aquela política olavista do Ernesto Araújo, do filho de Bolsonaro, de aliança com a extrema direita. Ele se liberou um pouco dentro disso e defendeu princípios básicos que são corretos. Veja bem, há nessa situação uma “linha vermelha” que não pode ser ultrapassada, que é o uso da força. A Rússia fez o uso da força, começou com a guerra e isso está errado. Agora, você não reconhecer quais são as causas, quais são as circunstâncias que contribuíram para que isso acontecesse, ainda que você condene esse ato, seria errado. Compreendemos bem que a expansão da OTAN e certas atitudes da própria Ucrânia contribuíram para isso, em relação às minorias russas e às dificuldades de chegar a um acordo. É preciso procurar a paz. A Europa Ocidental, a Alemanha e a França têm um papel, mas a China também tem. E aí é que você tem que entender que, num outro contexto, o Brasil também teria. O Brasil faz parte de um grupo de países com a Índia, com a África do Sul, com um grupo grande de países africanos, que veem o mundo não dessa maneira bipolar. Estão fazendo 40 anos desde que foi lançada essa ideia da Nova Ordem Econômica Internacional, que eram os países em desenvolvimento. É isso que temos que trabalhar, sem hostilizar ninguém, sem diminuir a importância da relação com os países desenvolvidos. As pessoas dizem que o Brasil fez uma opção Sul-Sul em relação a outros países, mas não é verdade. O Brasil teve parceria estratégica com a União Europeia, teve diálogo normal com os EUA.

Você diz isso nos governos do PT, certo?

Não só nos governos do PT. O governo do PT aprofundou laços e fez alianças qualitativas, mas seguindo uma tradição que é a que está na Constituição brasileira. A forma como fizemos aquilo que nos difere, creio eu, de outros governos em que eu trabalhei como ministro, como embaixador. Não é que mudou 180º, mas tivemos uma maneira mais ativa e altiva de levar adiante os nossos interesses e os nossos valores.

Você considera acertado o embargo à Rússia?

Não, sanções não resolvem nada. Eu acompanhei de muito perto sanções na ONU, que eram autorizadas com relação ao Iraque, e via as consequências trágicas. As pessoas falam de sanções como se fossem medidas taxativas, mas sanções matam. E no caso da Rússia, além de matar, como matavam no Iraque, elas têm um efeito sistêmico imenso na realidade da Europa. É um imenso tiro no pé, os países estão começando a dizer que precisa racionar, administrar restritivamente o consumo de energia, nós estamos enfrentando uma crise de alimentos. E aí falam sobre “a guerra do Putin”, mas não adianta nada dizer isso e fazer sanções que agravam. O que é preciso em relação a essa guerra é ter urgência em relação à paz, como o papa Francisco tem falado, como outros têm falado. O que eu sinto, e que me aflige muito, é a falta de urgência na negociação da paz. As pessoas ficam mais procurando como conviver em uma situação de guerra, mas é preciso avançar, é preciso haver um entendimento. Nós vivemos uma pandemia, nós temos o aquecimento global, nós temos a desigualdade, são problemas globais que exigem cooperação. Pode até haver uma competição, mas não uma rivalidade de vida ou morte. Volto a dizer, eu não estou defendendo, o Putin errou ao invadir a Ucrânia, porque são dois princípios fundamentais: a integridade territorial do Estado e a renúncia ao uso da força. Não sei os casos específicos que fazem parte da cartilha da ONU. Ele errou, mas isso não quer dizer que a gente não tenha urgentemente que buscar a paz. As sanções afetam muito mais países em desenvolvimento. Você vai ver como votaram os países em desenvolvimento nessa Assembleia Geral, não digo todos, mas principalmente na África. Não é uma opção ideológica, nem de rivalidade e agressividade, é uma postura de defesa do interesse deles.

Se o Lula sair vencedor nas eleições, como as pesquisas apontam hoje, haverá, por parte do PT, uma caça às bruxas no Itamaraty, contra os atuais diplomatas que estão à frente do ministério?

Primeiro que o governo não é do PT, é uma coligação, mas o governo será institucional e não haverá caça às bruxas, mas obviamente cargos mais importantes têm que ser preenchidos por pessoas que gozem da confiança, isso ocorre em qualquer governo. Sem necessariamente estar perseguindo, sem ter que perseguir ninguém. As pessoas também têm que assumir as responsabilidades que elas tiveram, digamos assim, que adotaram posturas que feriram o próprio decoro diplomático. O Itamaraty sempre foi uma instituição muito respeitada. Eu fiz o exame para o Rio Branco em 1962 ou 1963, eu comecei no Itamaraty em 1963. No final de 1964 houve o Golpe Militar, em raríssimas exceções que ocorreram, as pessoas foram mais ou menos respeitadas. Não houve essa coisa insensata e totalmente louca. Essa ofensa que foi feita ao meu grande conterrâneo Alexandre de Gusmão, de fazer seminários sobre o terraplanismo. Isso é uma coisa louca. O chanceler Carlos França, graças a Deus, diminuiu essa sanha, mesmo eu não concordando com várias coisas feitas por ele. As pessoas tinham medo de falar umas com as outras. Uma vez um embaixador me procurou para falar sobre um assunto, que ele sabia que eu conhecia bem, e ele disse assim: “Sabe embaixador, os meus colegas dizem que sou louco de me encontrar com o senhor”. Para você ver que existia um medo, e isso nunca aconteceu. Claro que você pode colocar pessoas em lugares estratégicos que estão na sua linha, mas é muito diferente dessa sanha que ocorreu, que procuraram mentir sobre a realidade e que foram publicados por embaixadores de grande projeção. E outras coisas absurdas em relação aos direitos humanos, ao direito da mulher, dos negros… O Brasil passou a ser uma vergonha e isso tem que ser corrigido, mas tem que corrigir com jeito. Eu não sei quem vai ser o chanceler, mas penso que tem que ser conduzido com jeito, como sempre foi o Itamaraty. Toda transição tem uma mudança, mas sem violências, sem absurdos, sem humilhação.

Queria falar individualmente da relação com alguns países. Hoje, temos quase que uma não relação com a Argentina. Essa relação já esteve até pior do que está agora, mas a impressão que tenho é que há um grande vazio nessa avenida. Você concorda com essa premissa? Quais deveriam ser os primeiros atos para retomar alguma relação com a Argentina?

Eu concordo totalmente. A relação com a Argentina recebeu um grande impulso com a redemocratização e assim foi seguindo, nos mais diversos governos, de governos neoliberais à esquerda. Eu diria que é preciso restabelecer a confiança que não existe hoje em dia. Não temos uma relação de confiança com nenhum país da América Latina, não é só com a Argentina. Talvez sejamos um pouco menos hostis com governos conservadores, mas não é uma relação de confiança. Essa retomada virá com muita naturalidade, é uma amizade daquela época. Que ocorra no Brasil o que todos nós esperamos. É claro que existem alucinações, o Uruguai está com um governo conservador, mas o conjunto da região está mais progressista hoje do que era em 2003. Isso vai ajudar.

Qual o rumo que deveria tomar, na sua visão, a relação entre Brasil e Venezuela?

O maior erro do início do governo do Bolsonaro foi romper relações com Venezuela. Você pode concordar ou não, você pode ter uma aproximação maior ou menor, isso é normal, mas romper relação com um vizinho como a Venezuela… Os parlamentares da base governamental estão indo a Caracas, é claro, é um vizinho que você tem que conviver, isso é absolutamente normal e fundamental. E veja bem, no momento de crise da Venezuela, o país que ajudou controlar foi o Brasil, com o presidente Lula, que criou o Grupo de Amigos da Venezuela. O Grupo de Amigos, contrariamente ao que pretendia o [ex-líder venezuelano Hugo] Chávez, não era um grupo de amigos do Chávez. O Brasil era o coordenador junto com os Estados Unidos. Você tinha Espanha e Portugal, que eram governos conservadores, e foi graças a esse grupo de amigos e a essa pluralidade que conseguimos assegurar a realização do referendo reformatório com observação internacional. Esse tipo de caminho, com diálogo, é um caminho importante. O Brasil esteve à beira de uma guerra com a Venezuela no início do governo, porque não houve aquela alegada intervenção humanitária. O ministro queria atravessar a fronteira, mas vai que leva um tiro de guarda nacional? Aí pronto. É assim que começam as guerras. O Brasil tem uma tradição de paz, o Brasil contribuiu para a paz entre Colômbia e Venezuela, entre Colômbia e Equador… O Brasil teve uma atuação pacificadora no governo Lula, essa é a nossa tradição. O governo Lula teve mais, mas o governo FHC também contribuiu para a pacificação entre Bolívia e Equador. Essa é a tradição brasileira, e com o governo Bolsonaro foi ao contrário. Tivemos atitudes bélicas, veio aqui um secretário de Defesa indo visitar o teatro de batalha. Donald Trump falava que iria invadir e mandou esquadra dele, uma coisa louca, uma coisa contrária. Veja você, você está falando muito do o governo Lula e, é óbvio, tenho muito orgulho de ter trabalhado pelo governo Lula e a respeitabilidade internacional dele é algo que não precisa falar, as imagens falam por si mesmas. Mas deixa eu dizer, a realidade do governo Bolsonaro foi tão fora da tradição brasileira que foi possível ter um grande artigo ocupando uma página inteira, assinado por todos os ex-ministros das Relações Exteriores ou pessoas com condições equivalentes desde a democratização, incluindo ministros lá de trás, do Sarney, até os ministros do Temer. Nunca tinha ocorrido um afastamento tão grande dos princípios constitucionais brasileiros.

Quais oportunidades de relação com a Colômbia, por ter pela primeira vez um governo de esquerda, caso o vitorioso seja o ex-presidente Lula?

Quando penso na integração da América Latina e Caribe, muitas vezes ficavam de fora os países que são nossos vizinhos amazônicos, porque a relação é menos estreita do que é com os nossos vizinhos aqui embaixo do Prata. A Colômbia tem o segundo maior PIB da América do Sul, é maior que o da Argentina inclusive, então é uma relação importantíssima. Podem ter muitas semelhanças na formação cultural e étnica com o Brasil. Vai ser muito importante. Agora, não podemos deixar de valorizar a relação com outros presidentes que são muito importantes. Para citar um exemplo, o próprio presidente da Argentina, da Colômbia, do Chile, uma relação pessoal com o presidente da Bolívia, que haverá certamente com Lula. No caso do Peru também…

Num eventual governo Lula, qual seria o melhor approach com Equador e Uruguai, dois países governados pela direita?

Isso não será um problema. É claro que gostamos dos governos com que temos mais afinidade, mas, como eu lembrei, no começo do governo Lula, o Uruguai tinha um presidente de direita, muito conservador. No Peru havia um governo de centro-direita, mas o Peru ajudou a dar impulso nos acordos da Argentina com o Mercosul. Sem falar no próprio Uribe, que não era uma pessoa extremista, mas estourou como mais direitista com o tempo, embora fosse um homem direito e muito centrado nas questões internas da Colômbia. Era uma pessoa que nos dávamos bem. Eu me lembro da chanceler dele, quando nós fizemos o acordo do Mercosul com a comunidade Andina, ela dizia: “com esse acordo nós estamos criando o livre comércio na América do Sul”. Vamos trabalhar corretamente, sem discriminações, e quando você tem afinidade, você não precisa ficar discutindo, vai direto. Você não mencionou o Paraguai, também com um governo conservador, e nós também tivemos uma boa relação. Claro que um governo progressista facilita num projeto de longo prazo, uma visão integracionista, mais forte. E isso é muito importante, no momento em que o mundo está se organizando em blocos e o Brasil, que é um país muito grande, poderá até ombrear com os principais países europeus, embora não seja grande o suficiente para ombrear com os Estados Unidos ou com a China. Na América do Sul e na América Latina, essa integração se tornará cada vez mais importante nesse mundo fragmentado que estamos vivendo, e digamos, a formação de uma opinião comum progressista será muito importante.

Leia amanhã a segunda parte da entrevista com Celso Amorim.

https://www.metropoles.com/colunas/guilherme-amado/celso-amorim-brasil-deve-ser-contrario-a-influencia-de-eua-e-china

segunda-feira, 7 de março de 2022

Diplomatas da gestão Bolsonaro celebram “apoio” de chanceler de Lula - Igor Gadelha (Metrópoles)

 Itamaraty abandonou a defesa do Direito Internacional, por pressão do Planalto, e essa postura une a direita bolsonarista e a esquerda petista, numa aliança de conveniência e oportunista que acaba se traduzindo numa postura "tucana", isto é, em cima do muro, indiferente, portanto, à Carta da ONU e às tradições, valores e princípios de nossa política externa. Fica feita minha denúncia.

Paulo Roberto de Almeida

Diplomatas da gestão Bolsonaro celebram “apoio” de chanceler de Lula
Atual gestão do Itamaraty comemora semelhanças entre sua posição sobre a Rússia e a de diplomatas ligados a opositores do governo Bolsonaro
Igor Gadelha
Metrópoles, 07/03/2022
Diplomatas brasileiros do alto escalão do Itamaraty têm celebrado, nos bastidores, as semelhanças entre as posições da atual gestão do Ministério das Relações Exteriores e de diplomatas ligados a partidos de oposição ao governo Jair Bolsonaro em relação à invasão russa na Ucrânia.
Integrantes da gestão Bolsonaro no Itamaraty ressaltam, principalmente, a posição do ex-ministro Celso Amorim, diplomata que foi chanceler brasileiro durante o governo Lula. Em entrevista à colunista Bela Megale, de O Globo, Amorim se colocou contra a adoção de sanções econômicas aos russos.
“Sou contra as sanções. Não vão resolver nada e criarão mais problemas para o mundo. O que tem que haver é a abertura do diálogo. Alguém que o presidente Vladimir Putin ouça precisa entrar nisso, talvez a China. Todos vamos ser afetados com o aumento de preços de fertilizantes, alimentos, entre outros itens”, disse o ex-chanceler.
A declaração de Amorim foi vista por atuais integrantes da cúpula do Itamaraty como um “apoio” à posição adotada pela atual gestão sobre o conflito. Em entrevistas recentes, o chanceler Carlos França defendeu que a posição do Brasil tem sido de “equilíbrio”, e não de “neutralidade”, como disse o próprio Bolsonaro.
Diplomatas que atuam na gestão Carlos França também destacam, nos bastidores, declarações dadas pelo ex-embaixador Rubens Barbosa, que comandou a embaixada do Brasil nos Estados Unidos durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Na semana passada, Barbosa elogiou a atual postura do Itamaraty.
Segundo o ex-embaixador, “o Itamaraty está fazendo prevalecer a linha tradicional da chancelaria” perante o conflito no Leste Europeu. “O Itamaraty está atuando dentro de suas linhas, com uma posição muito clara sobre questões essenciais, como soberania e integridade territorial”, afirmou Barbosa ao jornal O Globo.
“Caminho certo”
Na avaliação da atual cúpula do Itamaraty, diante da “polarização política” existente no Brasil, as semelhanças de posicionamento e os elogios feitos por diplomatas ligados a opositores de Bolsonaro seriam demonstrações de que o Ministério das Relações Exteriores adotou “o caminho certo” perante o conflito na Ucrânia.
Essa comparação, no entanto, não agrada a todo mundo no atual governo. Como mostrou a coluna, auxiliares presidenciais que dão expediente no Palácio do Planalto admitem, nos bastidores, que a possível semelhança de posições apontada por adversários políticos tem repercutido mal na base bolsonarista.
Críticas a Bolsonaro
Tanto Rubens Barbosa quanto Celso Amorin, no entanto, fizeram críticas à postura e às falas de Bolsonaro em relação à Rússia. Logo antes da invasão da Ucrânia, o presidente brasileiro foi a Moscou e declarou, ao lado de Putin, que os brasileiros eram “solidários à Rússia”.
Bolsonaro também tem evitado condenar diretamente a Rússia pela invasão. Até agora, o Brasil condenou a ação russa em território ucraniano apenas por meio de posições no Conselho de Segurança, no Conselho de Direitos Humanos e na Assembleia-Geral da ONU.
Diplomatas da atual gestão do Itamaraty minimizam as críticas. Dizem que o que importa é a posição oficial do Brasil nos organismos internacionais, sobretudo no Conselho de Segurança, instância adequada para se discutir questões de conflitos entre nações. “O resto é procurar pelo em ovo”, diz um diplomata.

quinta-feira, 1 de abril de 2021

Celso Amorim sobre os militares e a antidiplomacia bolsolavista - Deutsche Welle

O ex-chanceler de Itamar e de Lula e ex-ministro da Defesa de Dilma, e eterno candidato a voltar ao Itamaraty, caso Lula volte ao poderá diz algumas quantas mentiras nesta entrevista à Deutsche Welle, mas acerta na maior parte das vezes em que critica a antidiplomacia e a não-política externa do desgoverno do genocida e seu patético chanceler acidental... PRA

ENTREVISTA, Deutsche Welle, 1/04/2021

"Nosso erro foi ter tido condescendência", diz Celso Amorim

Ex-ministro da Defesa no governo Dilma faz autocrítica sobre a falta de uma postura mais firme em situações de desrespeito de generais à prevalência do poder civil. "Eu não teria indicado o Villas-Bôas."

Celso Amorim

Celso Amorim chefiou Ministério da Defesa entre 2011 e 2015, no governo Dilma, e pasta das Relações Exteriores entre 2003 e 2010, sob Lula

O ex-ministro da Defesa Celso Amorim, que ocupou a pasta no primeiro mandato de Dilma Rousseff, acredita que os governos petistas erraram ao ter "condescendência” com posturas consideradas inadequadas de generais da ativa.

Sem especificar quais teriam sido os comportamentos acima do tom, Amorim defende que uma posição mais firme deveria ter sido tomada em situações de desrespeito à prevalência do poder civil.

"Deixaram pessoas com uma visão menos afinada com a prevalência do poder civil. É uma dificuldade intrínseca deles, que se expressou não por ser governo do PT”, afirma, em entrevista à DW Brasil.

Em entrevista à DW Brasil, o ex-ministro afirma que não teria indicado o general Villas-Bôas para o comando do Exército. A nomeação ocorreu em fevereiro de 2015, quando já havia deixado o cargo.

"Menos por uma percepção política de que ele ia fazer o que fez, e mais por eu ver nele uma pessoa que queria aparecer um pouco demais”, comenta. "Acho que a discrição é uma qualidade de um general. O militar não pode falar muito, pois está armado”.

Aos 78 anos, Amorim acompanha com preocupação o movimento "arriscado” do presidente Jair Bolsonaro que resultou na saída conjunta dos três comandantes das Forças Armadas. Ressaltando a dificuldade de decifrar as movimentações internas dos militares, ele não vê qualquer sinalização golpista entre os generais até agora.

Tendo chefiado o Itamaraty entre 1993 e 1995, no governo Itamar Franco, e nos dois mandatos do governo Lula, o ex-ministro diz acreditar que levará muito tempo para que o Brasil consiga reconstruir sua imagem internacional após os danos diplomáticos provocados no governo Bolsonaro, assim como se observou no pós-ditadura.

"Agora, o problema é mais grave, porque se trata de um governo eleito. Certas posições afetam a credibilidade do país. Quando um representante nosso, seja um jovem embaixador ou secretário, levanta a plaquinha nas assembleias, ali não está escrito ‘governo Bolsonaro', está escrito ‘Brasil'”.

DW: O livro de memórias do general Villas-Bôas explicita que havia um desconforto interno com os governos petistas, que atingiu seu ápice com a Comissão Nacional da Verdade. Isso era sentido por você à frente da Defesa?

Celso Amorim: A Comissão da Verdade realmente mexeu muito com as pessoas da reserva, sobretudo por ser um tema que lida com relações humanas e parentesco. Tem muitos formados da mesma família, às vezes o professor. Sem querer de forma alguma justificar, foi um assunto que pegou nervos expostos em vários setores. Eu não sentia nos comandantes uma oposição à Comissão. Obviamente que eles talvez não fossem elogiar. Mas a questão principal deles era a barganha por um equilíbrio a partir da Lei de Anistia, de investigar a verdade sem punir. A lei que criou a Comissão da Verdade reafirma a Lei de Anistia. Eu acho que eles absorviam, mas sofriam pressões externas, de ex-chefes, e deixavam a coisa delicada.

Mas nunca perdemos o diálogo a esse respeito. Eu fui intermediário entre a Comissão e eles em alguns momentos. A coisa me parecia bem manejada, mas isso tudo aflorou porque as instituições civis se debilitaram, sobretudo com o impeachment da Dilma. Uma parte importante da elite econômica e da mídia brasileira foi atrás deles, aí eles apoiaram. Não acho que nasceu lá. Podia haver descontentamento, mas, pouco antes do fim da Comissão, os jornais trouxeram como manchete um documento muito importante, em que eles admitem que violações de direitos humanos podem ter ocorrido nas organizações militares. Não é tudo, quem conhece um pouco de psicanálise sabe que a não negação é o primeiro passo para você chegar ao entendimento.

Houve ingenuidade dos governos petistas em relação aos militares e ao próprio general Villas-Bôas, nomeado comandante do Exército pela então presidente Dilma?

Não vou criticar a Dilma nem meus sucessores, mas eu não teria indicado o Villas-Bôas. Menos por uma percepção política de que ele ia fazer o que fez, e mais por eu ver nele uma pessoa que queria aparecer um pouco demais.

O comandante do Exército naquela época, assim como o chefe do Estado Maior e o comandante de Operações Terrestres eram pessoas muito discretas. E acho que a discrição é uma qualidade de um general. O militar não pode falar muito, pois está armado. Mas é uma questão de julgamento, as pessoas podem errar, assim como podem ter visto outros méritos que eu pessoalmente não veria. Ao mesmo tempo, não teria certeza, não diria "não ponha de jeito nenhum”. Não tivemos qualquer problema pessoal. Quando ele era comandante da Amazônia e eu tiver que ir lá, fui muito bem tratado.

Fui surpreendido quando o general Sérgio Etchegoyen assinou um manifesto contra a inclusão do pai dele no relatório da Comissão, sem por o nome como general, e sim como familiar. Deixaram pessoas com uma visão menos afinada com a prevalência do poder civil. É uma dificuldade intrínseca deles, que se expressou não por ser governo do PT. Acho que muitos realmente guardaram um ranço, mas o governo do Lula e da Dilma investiram muitíssimo. É só pegar projetos como o submarino nuclear, os caças Gripen, tudo aconteceu no governo do PT. Não houve falta de atenção na tarefa organicamente importante deles que é defender o país. 

No conjunto da obra, sem pensar em uma ação específica, acho que o nosso erro foi ter tido um pouco de condescendência nesses aspectos. Não em temas como a remuneração e condições adequadas para defender o país. Isso é justo e tinha que ser reivindicado. Mas, em algum momento, você tem que adotar uma posição mais firme.

Como ex-ministro de duas pastas importantes em que ocorreram trocas no início da semana, como você observa essas mudanças?

Pensando internacionalmente, até, eu não me lembro de ver a demissão dos ministros da Defesa e das Relações Exteriores no mesmo dia. São dois pilares do Estado. E ainda trocaram o ministro da Justiça, o terceiro pilar. Este foi numa espécie de dança de cadeiras, mas não deixa de ser um fato importante. É um movimento muito ousado, que deve ser lido com atenção.

O Bolsonaro é uma pessoa que luta principalmente pela sobrevivência. Seu objetivo, como ele mesmo enunciou, é desconstruir a realidade. Não é só contra os governos petistas. O chanceler que acaba de sair critica a política externa dos últimos 45 anos, do período Geisel para cá já não serve. O presidente fala o que agrada ao clã. Ele fez isso num momento em que se sentiu enfraquecido, com o manifesto dos banqueiros, a volta do Lula, os efeitos da pandemia e a derrubada do ministro das Relações Exteriores pela unanimidade do Senado. Era uma pessoa de quem ele gostava, e não teve uma voz que se levantasse para o defender.

Com esse movimento super arriscado, o Bolsonaro pode achar que ganha tempo. E, talvez, tenha razão. Para ele chegar a 2022, tem que passar pelos meses que faltam. Nesse período, pode ser que a pandemia arrefeça, por força da natureza ou avanço da vacinação. A economia mundial pode progredir, já há um crescimento da China e há muita expectativa sobre os EUA. Tudo isso pode fazer o preço das commodities subir, o que já está ocorrendo. Na expectativa dele, pode ser que a situação não seja tão ruim após uns cinco, seis meses.

Com que grau de preocupação você acompanha a crise entre o comando das Forças Armadas e o presidente Bolsonaro?

É complicado, entrar lá exige uma senha especial. Como estive lá por três anos e meio, tive alguns desses códigos, mas é sempre um pouco difícil. Por exemplo, eu não tenho certeza sequer se eles foram demitidos porque se sabia que iriam renunciar, ou se renunciaram porque sabiam que seriam demitidos. É uma coisa intrincada. Seja como for, é uma crise muito grande. Nunca houve um fato como este na história do Brasil.

Ele sentiu que precisava ter uma iniciativa, numa área que para ele é fundamental, a da segurança. O Bolsonaro tem muita confiança que poderá usar as polícias e outras forças que possam surgir. Ele próprio mencionou que poderia haver no Brasil um episódio como a invasão do Capitólio, nos EUA. O Bolsonaro precisa das Forças Armadas para agirem em seu favor, em face de uma dessas situações, ou para ao menos estarem neutralizadas. Foi esse conjunto de coisas que o levou a esse gesto totalmente inusitado, que não ocorreu nos governos militares nem em qualquer governo civil.

Você concorda com a leitura de que o comando das Forças Armadas sinalizou que não haverá endosso a iniciativas golpistas?

Sim, mas só estou falando com base em informações que saem na imprensa. Não fico chateando os poucos militares que conheço, pois sei que é uma situação muito difícil para eles. Uma das coisas que dizem é que o Bolsonaro esperava uma manifestação da Defesa, do Alto Comando ou do Exército crítica ou manifestando preocupação sobre a decisão do Supremo que trouxe o Lula de volta ao cenário político. Aparentemente, teria havido uma negativa do general Pujol de ir nessa direção. Obviamente, é algo que o incomoda muito e denota o respeito à institucionalidade.

Por um lado, é verdade que muitos militares se deixaram envolver pelos cargos, benefícios, e isso obviamente acaba tendo um reflexo na postura deles, mas o Alto Comando teve a preocupação de manter uma certa independência. Minha leitura até agora é de que iria acabar como na fábula em que o coelho começa a bater para pegar o melado e, no final, acaba grudado no melado, sem ter mais como sair. Mas a visão que eu tenho com esses últimos acontecimentos é que ele não estava totalmente grudado.

Qual é o legado deixado pela política externa conduzida pelo ex-ministro Ernesto Araújo ao longo de mais de dois anos?

É um desastre absoluto, de qualquer ângulo que você puder olhar. A própria percepção do Senado, de que uma má diplomacia estava tendo efeitos danosos para a vida das pessoas, nunca se viu antes. Havia interesses específicos. Às vezes, a agricultura achava que você podia fazer uma coisa, e a indústria não. Mas nunca houve uma unanimidade como desta vez em relação ao efeito danoso. E este é só o efeito interno. Em termos de substância e posicionamentos internacionais, o Brasil vai levar muito tempo para recuperar a credibilidade. Eu digo isso com muito pesar, porque queria que recuperasse rápido. Mas não é assim, no dia seguinte.

Após a ditadura militar, até o Brasil voltar a ter um papel importante na área de direitos humanos e voltar a ter uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU, levou um tempo. E olha que a ditadura, em matéria de política externa, não foi tão ruim assim, sobretudo do Geisel para cá. Basta lembrar o Acordo Nuclear com a Alemanha, à revelia dos EUA. Com um governo militar de direita, o Brasil foi o primeiro país a reconhecer o governo auto-proclamado marxista-leninista em Angola, pensando nos seus interesses estratégicos com este país, entre outros aspectos.

Agora, o problema é mais grave, porque se trata de um governo eleito. Certas posições afetam a credibilidade do país. Quando um representante nosso, seja um jovem embaixador ou secretário, levanta a plaquinha nas assembleias, ali não está escrito "governo Bolsonaro”, está escrito "Brasil”.

A política externa adotada pelos governos petistas, na qual você teve papel central, também é apontada como "ideológica” por grupos mais moderados, de centro-direita. Como você reage?

Não se trata apenas de uma interpretação errada. É uma mentira. Dizem que o Brasil virou as costas para os EUA e a Europa. O Brasil assinou uma parceria estratégica com a União Europeia em 2007, a convite deles, uma coisa que a Europa só tinha com quatro ou cinco países.

Tomamos inciativas conjuntas com França,  Noruega, Portugal e Espanha. Mantivemos, ainda, uma excelente relação com a Alemanha. A Angela Merkel me recebeu para conversar sobre a Organização Mundial do Comércio (OMC). Vá perguntar quantas vezes um chefe de Estado da Alemanha recebeu um ministro brasileiro. Não deve ter havido muitas. Eu não tenho registros. É porque davam importância ao Brasil nas negociações da OMC. O Brasil era central em muitas coisas que estavam acontecendo no mundo.

Com relação aos EUA, o Bush veio aqui duas vezes nos seis anos de coincidência de mandato, uma frequência incomum. E convidou o Lula também duas vezes, além das demais ocasiões em que o presidente foi lá por outros motivos. Um dos convites foi para Camp David, casa de campo do presidente norte-americano. Eu nem ligo para esses símbolos, mas quando as pessoas dizem que a gente virou as costas, é preciso lembrar essas questões.

No governo Dilma, por um bom trabalho feito pelos meus sucessores e ela própria, reflexo de um capital acumulado, elegemos os diretores-gerais da OMC e também da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura). São inclusive organizações que se chocam, mas do primeiríssimo time do sistema internacional. Se você olhar, não vai encontrar com frequência duas pessoas da mesma nacionalidade exercendo esses dois cargos ou equivalentes ao mesmo tempo. Isso reflete o peso imenso que o Brasil tinha entre os países da África, Ásia e América Latina, sem perder prestígio com a Europa.

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