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quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Videocast Rio Bravo: As Instituições Estão Funcionando? - Paulo Roberto de Almeida fala sobre o Itamaraty a Fábio Cardoso

Fui entrevistado pelo jornalista Fabio Cardoso para uma série que já teve outras emissões – uma com Gustavo Franco, por exemplo – sempre em torno da funcionalidade das instituições. 

A entrevista tem o seu link abaixo. Mas antes da entrevista, eu tinha preparado algumas notas em torno do assunto principal, que transcrevo abaixo. 

4464. “Itamaraty: uma instituição de Estado, pouco independente de governos”, Brasília-São Paulo, 27-30 agosto 2023, 6 p. Nota elaboradas para entrevista na Rio Bravo Investimentos, com o jornalista Fábio Cardoso, em 1/09/2023; revisão: Brasília, 9/09/2023. Divulgada no dia 13/09/2023, sob o título de “Videocast Rio Bravo: As Instituições Estão Funcionando? - Paulo Roberto de Almeida” (29m-56s; link: https://www.youtube.com/watch?v=1JJC4Q9eB7E); disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/106584032/4464_Itamaraty_uma_instituição_de_Estado_pouco_independente_de_governos_2023_). Relação de Publicados n. 1522.  



Itamaraty: uma instituição de Estado, pouco independente de governos

  

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Nota para entrevista na Rio Bravo Investimentos em 1/09/2023.

  

O Itamaraty, conhecido por esse nome apenas a partir da República, é uma das mais antigas e importantes instituições de Estado, tanto no regime colonial português, como na transição da coroa portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, e nos dois séculos desde o estabelecimento do Estado brasileiro independente. A antiga secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros sempre disputou com Marinha, Fazenda e Justiça a primazia entre os ministérios mais relevantes para a preservação do Estado e seu funcionamento normal em face de tantas ameaças internas e externas nas diversas dinastias lusitanas, até chegar aos Braganças, que ainda governaram os dois reinos até o final do século XIX. 

As relações exteriores sempre foram estratégicas na defesa dos interesses e da própria sobrevivência do Estado português, desde antes e sobretudo após a Restauração de 1640. Tanto foi que um dos tratados de defesa possivelmente mais antigos teoricamente ainda em vigor foi aquele contraído entre os dois soberanos, o de Portugal e o da Inglaterra, poucos anos depois da retomada da soberania portuguesa em face dos vizinhos espanhóis, do tempo dos Habsburgos. Registre-se, também, que o território da América portuguesa representava menos de 1/3 das atuais dimensões do Brasil, sendo que significativos ganhos territoriais foram adquiridos pacificamente pela excelente diplomacia portuguesa, no caso pelo súdito santista Alexandre de Gusmão, que negociou o tratado de Madri, de 1750, aposentando a linha de Tordesilhas e adquirindo vastos espaços no planalto central, na Amazônia e no Sul (com a exceção da Colônia do Sacramento, fundada pelos portugueses, mas por esse tratado cedida definitivamente aos espanhóis). 

O tratado de Madri conformou o Brasil no mapa que conhecemos hoje, com outras pendências arbitradas ou negociadas diretamente com os vizinhos sul-americanos, acordos geralmente alcançados pelo Barão do Rio Branco, inclusive a compra do Acre à Bolívia. O Barão chegou inclusive a fazer um tratado preventivo de limites com o Equador – seguido de um tratado secreto de defesa mútua –, não implementado pelo fato de o país amazônico, andino e pacífico ter perdido terras interiores para seus dois grandes vizinhos. As relações exteriores do Brasil, durante tudo o Império e no começo da República, foram justamente dominadas por questões de fronteiras, felizmente resolvidas pacificamente, não incluída aqui a guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai, que se deu por outros motivos, e certamente provocada pelo ditador paraguaio Solano Lopes. Outras pendências que nossa primeira diplomacia teve de resolver logo em seus primeiros momentos foi a guerra da Cisplatina e os conflitos com a Grã-Bretanha em torno do tráfico escravo, duas heranças portuguesas que ocuparam os diplomatas – vários nascidos em Portugal – durante o primeiro Reinado. 

José Bonifácio, nosso primeiro chanceler, além de ministro do Império, tinha concebido uma política externa brasileira e americanista, mas os interesses de D. Pedro na sucessão portuguesa desviaram a atenção da Secretaria dos Negócios Estrangeiros durante o seu período, finalmente terminado em 1831; vários historiadores acreditam que esse foi o ano em que finalmente se consolidou a independência do Brasil. As regências conduziram efetivamente uma política americanista, enviando encarregados de negócios para várias repúblicas sul-americanas, mas as pendências com a Grã-Bretanha sobre o tráfico, e com outras potências em torno de acordos comerciais, continuaram ocupando a diplomacia até o início do Segundo Império. Agiganta-se, nos anos 1840 e 1850, a figura de Paulino José Soares de Souza, o visconde do Uruguai, que moldou institucionalmente o corpo diplomático, inclusive instituindo concursos de seleção – não muito diferentes dos que são feitos ainda hoje – e resolvendo a questão do tráfico com a Lei de 1850, conjuntamente com Eusébio Queiroz; Paulino também atuou nos conflitos do Prata, entre o ditador Rosas, da Argentina, e os demais caudilhos da região, inclusive na própria Argentina e no Uruguai. 

A diplomacia imperial foi muito eficiente, tanto nas relações regionais, como no confronto com as grandes potências, pois que chegamos a romper relações diplomáticas com a principal potência da época, a Grã-Bretanha, nosso principal parceiro comercial. A dependência financeira não foi afetada, porque contratos de empréstimos e investimentos estrangeiros eram resolvidos diretamente com os banqueiros ingleses da City, em especial os Rothschild, banqueiros oficiais do Brasil até praticamente as vésperas da Segunda Guerra Mundial (quando saímos da esfera da libra britânica para a do dólar). O Visconde do Rio Branco e outros estadistas do Segundo Reinado conduziam as principais negociações externas, havendo, de toda forma, uma grande rotação de chanceleres, dada a sucessão de gabinetes. Aliás, Rio Branco foi um dos únicos chanceleres diplomatas (ele era originalmente apenas cônsul, até ser designado ministro em Berlim em 1990, como prêmio à sua atuação), pois todos os demais chanceleres eram parlamentares eleitos, segundo o modelo inglês.

O serviço exterior estava segmentado em três carreiras: a diplomática propriamente dita, que circulava principalmente entre postos no exterior; a dos funcionários da Secretaria de Estado, trabalhando no Rio de Janeiro, e raramente indo servir em postos no exterior; e, finalmente, a classe consular, exclusivamente dedicada a assuntos consulares típicos (vistos, permissões e documentos de direito internacional privado), além de assunto comerciais, como estampilhas em notas e faturas de comércio, dando direito ao recebimento de uma fração dos emolumentos consulares. Rio Branco, por exemplo, foi cônsul durante 20 anos em Liverpool, o mais ativo do comércio exterior britânico e mais importante no comércio bilateral com o Brasil, o que lhe facultava receber emolumentos suficientes para manter casa e família em Paris, para onde viajava frequentemente.

Procedimentos e métodos de trabalho foram evoluindo paulatinamente à construção do Estado brasileiro no século XX, notadamente a partir da era Vargas. Ao longo do século XX, o Itamaraty aperfeiçoou o processo de seleção dos quadros do Serviço Exterior, embora o próprio Barão do Rio Branco não tenho feito nenhum concurso: ele preferia, ele mesmo, selecionar os candidatos, entre muitos “indicados” pelas autoridades costumeiras. Importante reforma institucional ocorreu entre o governo provisório, sob o chanceler Afrânio do Melo Franco, e o Estado Novo, sob o chanceler Oswaldo Aranha, no sentido de unificar as três vertentes das carreiras do Serviço Exterior: o pessoal diplomático, servindo no exterior, os funcionários da Secretaria de Estado e o pessoal consular. Numa primeira etapa, sob o governo provisório, se procedeu à unificação dos funcionários diplomatas lotados em postos no exterior e o pessoal da Secretaria de Estado; mais adiante, os cônsules passaram a ser equiparados aos diplomatas, 

O Estado Novo instituiu o DASP, Departamento Administrativo do Serviço Público, que passou a organizar processos de seleção para cargos públicos, inclusive para o Itamaraty. Roberto Campos, por exemplo, passou no primeiro exame de seleção do Itamaraty pelo DASP, em 1938, com a peculiaridade de que não se exigia diploma de curso superior: ele só tinha feito seminário e estava dando aulas no interior de São Paulo. Seu colega José Oswaldo de Meira Penna, que passou no mesmo concurso, afirmou que além dos que passaram no concurso, entraram alguns “pela janela”, por indicação política. Ao final do Estado Novo, em 1945, ocorreram falcatruas similares, seja pelas mãos do ditador – que só foi derrubado em outubro desse ano, pelo fato de que pretendia se manter na presidência, como comprovado pelo movimento “queremista”, “Queremos Vargas” –, seja pelo presidente interino, José Linhares, presidente do STF. Este, no espaço de poucos meses, colocou dezenas de amigos e familiares em cargos públicos, inclusive no Itamaraty. Na época se repetia o bordão, segundo o qual “os Linhares eram milhares”. 

Mas, nesse mesmo ano de 1945, na data comemorativa dos 100 anos de nascimento de Juca Paranhos, filho do Visconde do Rio Branco, foi criado o Instituto Rio Branco, que passou a exercer o monopólio da seleção, formação e treinamento dos candidatos à carreira, constituindo seu corpo de professores, que no Rio de Janeiro incluíam grandes nomes da intelectualidade nacional: José Honório Rodrigues, Carlos Delgado de Carvalho, Américo Jacobina Lacombe, Afonso Arinos de Melo Franco e grandes sumidades do Direito e da Magistratura, da própria Academia Brasileira de Letras e do IHGB. 

Essa seleção, primeiro dentro de um círculo mais restrito, de grandes famílias tradicionais e nas metrópoles mais importantes, depois, sobretudo a partir de Brasília, com pessoas recrutadas em estratos mais amplos e socialmente mais representativos da sociedade brasileira (filhos de imigrantes, por exemplo, pessoas de classe média-média, ou até baixa) aproximou o Itamaraty do universo estatal da fase nacional-desenvolvimentista (inclusive durante o regime militar) e imprimiu ao corpo profissional a mesma ideologia do desenvolvimento nacional que marcou o cerne do pensamento político e econômico das elites dominantes e dos setores dirigentes do Brasil.

O Itamaraty, como instituição nacional no Brasil do pós-guerra, combina elementos tradicionais, retirados da memória da Casa – os grandes estadistas do Império, a patrono incontornável na figura de Rio Branco – e os novos padrões criados a partir da fase do desenvolvimentismo nacionalista, que também reforçaram a endogenia típica do Itamaraty, sobretudo depois que os militares – irmãos estatais dos diplomatas – deixaram a Casa dirigir-se a si própria, nomeando funcionários da carreira como chanceleres (um ao início do regime, Vasco Leitão da Cunha, depois três na sequência: Gibson Barbosa, Azeredo da Silveira e Saraiva Guerreiro). FHC e Lula preservaram esse encapsulamento burocrático, o que, de certa forma, reforçou o ethos corporativo dos diplomatas.

Por outro lado, a intensa competição interna também atuou no sentido de reforçar a dependência da trajetória individual dos diplomatas ao sabor das maiorias políticas ocasionais no plano congressual e do executivo, com o recurso ao tradiciona “pistolão” nos momentos das promoções (duas vezes por ano) e nas designações para os bons postos no exterior. Por outro lado, a estrutura decisória da Casa – que reproduz a hierarquia típica da carreira militar – e os comportamentos pessoais a ela subordinados – a disciplina, que lhe é associada – foram elevados a dogmas intocáveis no ethos coletivo, o se revela no caráter híbrido do Itamaraty: ele é, ao mesmo tempo, weberiano, no sentido de serem os rituais e métodos de trabalhos altamente formalizados e burocratizados, e feudal, no sentido em que os barões da Casa têm o comando incontestável e incontestado de todos os demais funcionários do Serviço Exterior. Desde os bancos escolares do Instituto Rio Branco, os jovens secretários são primeiro instruídos, depois relembrados, em praticamente todas as cerimônias oficiais do Itamaraty, dos dois dogmas sobre os quais supostamente se funda a excelência do corpo da diplomacia profissional: a hierarquia e a disciplina, exatamente como na vida militar. A estrita obediência aos cânones de comportamento explica a postura submissa da Casa.

Tais características contribuem para uma notável coesão interna no Itamaraty, uma adesão praticamente obrigatória aos métodos de trabalho e uma grande eficiência uma vez adotada uma linha de trabalho pelas autoridades dotadas de poder: o presidente e o chanceler. O resultado é que o Itamaraty se converte num operador muito obediente de toda e qualquer ordem que venha do chefe de Estado, o formulador da diplomacia, e do operador-condutor da diplomacia, ou seja, o chanceler. Raramente se desenvolvem, ou ganham corpo, dissensões internas, divergências ou contestações diretas às orientações dadas, mesmo se elas discrepam, por vezes fortemente, das práticas e opções anteriormente em curso. 

É verdade que as continuidades são mais presentes do que as rupturas no itinerário da política externa, em função de compromissos firmados, de tratados assinados e da imagem de credibilidade institucional da própria diplomacia, mas elas também existem. A mais notável, desde a redemocratização, foi a orientação partidária e a condução ideológica sob o chamado lulopetismo diplomático, ainda assim combinadas aos padrões habituais de trabalho do Itamaraty: multilateralismo, desenvolvimentismo, nacionalismo, protecionismo, soberanismo e um antiamericanismo moderado. O lulopetismo partiu dessa base para construir suas prioridades, centradas não apenas no terceiro-mundismo dos anos 1960, mas também na visão sindicalista marcada pela oposição entre ricos e pobres, poderosos e oprimidos, centro e periferia, burgueses e proletários, daí a inclinação míope por uma diplomacia Sul-Sul e até a preferência por regimes de esquerda no continente e alhures.

A maior ruptura foi obviamente representada pelo mal designado de bolsonarismo diplomático, mas ele não correspondeu a nenhuma ideologia formalmente estabelecida, apenas a uma mixórdia de preconceitos emprestados a teorias conspiratórias da extrema-direita americana, importada acriticamente pela franja lunática que dominou o Itamaraty durante a primeira metade do governo Bolsonaro. No plano interno da Casa, se tratou de movimento marginal, que não ganhou a adesão sincera de praticamente nenhum diplomata profissional, a não ser dos poucos oportunistas de ocasião, que sempre existem. 

O fato é que o lulopetismo combina bem mais com a propensão dos diplomatas de serem condutores de iniciativas na frente externa, dado o grande protagonismo da diplomacia presidencial, falando a seus pares do mundo em desenvolvimento, um perfil mais parecido com o do próprio Brasil do que o dos países avançados da OCDE. Por sinal, os diplomatas se sentem bem mais confortáveis com a ideologia desenvolvimentista – e seus derivativos, como o cepalianismo, com o unctadianismo, o terceiro-mundismo, a latino-americanidade – do que com o mundo aparentemente distante das potências ocidentais, a cujo universo civilizatório estamos vinculados, mas numa posição de relativa inferioridade, dados os patamares insatisfatórios de desenvolvimento econômico e social. Os diplomatas continuam aderentes à divisão onusiana do mundo entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, fazendo questão de defender o princípio do tratamento diferencial e mais favorável a estes últimos, como se devêssemos pertencer eternamente a este universo dicotômico.

Finalmente, o patrimonialismo inerente à sociedade brasileira, o peso das oligarquias econômicas e políticas, o compadrio e o nepotismo característicos de relações baseadas mais em vínculos afetivos do que na impessoalidade burocrática das normas legais fazem com que o Itamaraty seja especialmente sensível a padrões de conduta fundados no “quem manda?” e no “quem indica?”, em lugar da autoridade racional-legal da dominação weberiana pura. Por isso mesmo, o Itamaraty continuará a ser esse corpo eficiente de funcionários colocados a serviço das ideias politicamente dominantes ao sabor da conjuntura vivida pela nação. 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília-São Paulo, 4464, 27-30 de agosto de 2023, 6 p.; revisão: Brasília, 9/09/2023

 

quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Saraiva Guerreiro foi um grande diplomata e um chanceler equilibrado: muito diferente de outros que estavam antes ou vieram depois - Elio Gaspari

O efeito Milei e o Itamaraty

Elio Gaspari

Folha de S. Paulo, 15.ago.2023 às 23h15 

 

A encrenca argentina é séria, mas não é inédita. Lá, o general Jorge Rafael Videla, ditador deposto em 1981, morreu num banheiro da cadeia em 2013. Em 2001, o presidente civil Fernando de la Rúa fugiu da Casa Rosada e em duas semanas o país teve três presidentes.

O governo do presidente Alberto Fernández está bichado. Cumpriu-se parcialmente uma profecia de Jair Bolsonaro, impropriamente enunciada durante a campanha eleitoral de los hermanos. Fernández e Lula aproximaram-se. Javier Milei, por sua vez, aproximou-se de Bolsonaro.

Com as cartas que estão na mesa, é forte o efeito gravitacional que levaria o Brasil a se meter na encrenca argentina. Se Bolsonaro não deveria ter se metido na campanha de 2019, o governo de Lula não deve se meter na disputa de 2023. À primeira vista isso parece impossível, até injusto. Seria como tirar o sapato sem tirar a meia.

Para diplomatas competentes, não só isso é possível, como em circunstâncias piores, o Itamaraty já fez a mágica.

Em 1982, os presidentes Leopoldo Galtieri e João Baptista Figueiredo eram bons amigos. Militares brasileiros sequestravam exilados argentinos no Brasil e militares argentinos sequestravam brasileiros em Buenos Aires. O general Galtieri (um bebum) teve sua ideia: invadir as ilhas Falklands, terras perdidas no meio do oceano, governadas pelos ingleses.

A primeira parte foi fácil e ele tomou as Malvinas. Restava a segunda: o que faria a Inglaterra, governada pela primeira-ministra Margaret Thatcher? No dia 23 de abril de 1982, o embaixador do Brasil em Londres, Roberto Campos, informava: "Especula-se que as propostas britânicas estariam divididas em três fases: retirada argentina, período de transição, onde o Reino Unido faria algumas concessões no sentido de uma administração partilhada, e de uma negociação da situação final das ilhas, inclusive da questão da soberania".

No dia seguinte, foi além: "Vários observadores vêm insistindo em que seria muito pouco provável que o Reino Unido inicie operações militares contra a Argentina enquanto estão em curso negociações".

Ilusão do doutor. Thatcher desceu a frota, retomou as ilhas e Galtieri, humilhado, foi mandado para casa. No Itamaraty, estava o chanceler Ramiro Guerreiro, de sapatos e meias. Ele sabia que a aventura militar acabaria em desastre. Tratava-se de dissociar-se da maluquice, sem colocar o Brasil na condição de aliado dos ingleses numa questão sensível para todos os argentinos.

Guerreiro conteve os ímpetos de Figueiredo e dos militares brasileiros aliados da ditadura argentina, com suas dezenas de milhares de mortos. O chanceler Guerreiro era um diplomata discreto. Seu colega Araújo Castro dizia que ele era a única pessoa capaz de dormir durante o próprio discurso.

Por calado, Guerreiro não deixou registro público da sua mágica. Seus detalhes estão nos arquivos do Itamaraty. Passados 41 anos, eles estão disponíveis para quem sente o impulso de se meter na encrenca argentina e na alma aventureira de Javier Milei.


domingo, 23 de julho de 2023

Dois pesos e nenhuma medida: a diplomacia brasileira está realmente de volta? - Paulo Roberto de Almeida

Dois pesos e nenhuma medida: a diplomacia brasileira está realmente de volta?

Paulo Roberto de Almeida


O Itamaraty costuma soltar notas de solidariedade a propósito de qualquer inundação mais forte em cantos remotos do planeta. 

Não entendo por que, até aqui, não soltou NENHUMA nota a propósito dos ataques desumanos cometidos por Putin na Ucrânia, até a Odessa, um patrimônio da Unesco. 

Por que isso?

Alguma bronca em relação a um país com o qual temos relações normais, até troca de embaixadores?

O Brasil exibe uma TOTAL indiferença ao mais devastador conflito militar que ocorre na Europa desde o final da Segunda Guerra Mundial.

Onde estão as credenciais universalistas da política externa brasileira?

Escondidas atrás de algum biombo de um neutralismo absolutamente hipócrita?

Continuarei cobrando notas do Itamaraty: pelo menos para pedir alguma coerência do corpo profissional de diplomatas: me parece que estão sendo incoerentes no presente momento.

O que devo concluir?

(Não espero respostas de diplomatas, nominais ou anônimas.)

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 23/07/2023


sexta-feira, 12 de maio de 2023

Entre conselhos e controvérsias, Celso Amorim dá as cartas no Itamaraty - Ricardo Ferraz (Veja)

 Entre conselhos e controvérsias, Celso Amorim dá as cartas no Itamaraty


Assessor especial e amigo de Lula é ideólogo da diplomacia 'ativa e altiva'. A polícia externa, no entanto, vem ostentando mais pisadas na bola do que gols

Por Ricardo Ferraz 
Veja, 12 Maio 2023

Depois de encarar uma viagem de avião a Varsóvia, deslocar-se de lá para a fronteira da Ucrânia e percorrer de trem 700 quilômetros até Kiev — idêntico trajeto trilhado, sob segurança máxima, pelo americano Joe Biden e pelo francês Emmanuel Macron, entre outros —, o diplomata Celso Amorim, assessor especial da Presidência da República, foi conduzido, na quarta-feira 10, direto da estação para um encontro com o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, em lugar não revelado. Na bagagem, levava um plano de ação sabidamente incômodo para o anfitrião: decretação de cessar-fogo, seguida de abertura de negociações, de efeito imediato, com as tropas de Vladimir Putin ainda ocupando um naco do território ucraniano. A efetividade da proposta, que vem sendo repetida há meses pelo presidente Lula, é duvidosa, mas a reunião em Kiev deixa claros dois pontos vitais da política externa brasileira: o Brasil quer conquistar o protagonismo perdido no cenário internacional e Amorim é o idealizador deste e de outros movimentos d finidores no Itamaraty, e com pleno aval do presidente.

O encontro não resultou em avanços concretos nem se esperava que o fizesse. “Eu enfatizei que o único plano capaz de deter a agressão russa na Ucrânia é a Fórmula Ucraniana para a Paz”, postou nas redes o presidente Zelensky. “O diálogo foi positivo, de criação de confiança, visando explicar nossos objetivos para a paz”, declarou Amorim. Ou seja: continua tudo como está.

No papel de comandante de fato dos assuntos externos, Amorim busca implementar o que chama de “diplomacia ativa e altiva”, conceito que desenvolveu como ministro das Relações Exteriores nos dois mandatos anteriores de Lula. No caso da guerra na Ucrânia, essa política se traduz em uma posição ambígua: o Brasil condena a invasão promovida pela Rússia, uma agressão deliberada e injustificada, mas insiste em que, como diz Lula, “alguém precisa pensar na paz”. De preferência, ele, Lula. “É complicado dizer onde termina a esperteza e começa a ingenuidade”, alfineta um diplomata com posição de destaque no Itamaraty. Insere-se no clima geral de desconfiança dos reais interesses brasileiros o fato de o governo querer incluir os cinco integrantes dos Brics em um seleto grupo de nações encarregadas de “facilitar” um cessar-fogo, sem levar em conta que três deles — África do Sul, Índia e China — estão entre os 35 países que se abstiveram na votação da resolução da ONU que condenou a guerra (o quarto é a própria Rússia). Em vez de inspirar neutralidade, a iniciativa causa má impressão ns Estados Unidos e União Europeia, aliados relevantes do Brasil.

Na cruzada por protagonismo e liderança no cenário internacional, a política externa brasileira tocada por Amorim ostenta mais pisadas na bola do que gols. No começo do governo, navios militares do Irã, país boicotado por quase todo mundo, tiveram autorização para ancorar no Porto do Rio de Janeiro. O assessor especial de Lula esteve em Moscou há um mês para reuniões com altos funcionários e Putin em pessoa abriu espaço na agenda para recebê-lo. Lula, por sua vez, recepcionou o ministro das Relações Exteriores russo, Sergey Lavrov, no Palácio do Planalto. Em outra ocasião, responsabilizou os países ocidentais que ajudam a Ucrânia militarmente pela continuidade da guerra — uma declaração desastrada, reflexo de conversas ao pé do ouvido com Amorim, que foi considerada “um deslize fora de tom” pelo próprio Itamaraty e rendeu protestos nas escalas seguintes, Portugal e Espanha (Lula, como se sabe, não tira o pé da estrada desde que assumiu a Presidência). Aproveitando a recente estadia em Londres, para a coração de Charles III, o presidente gastou saliva justificando as posições brasileiras junto ao primeiro-ministro Rishi Sunak. Sem sucesso. O premiê britânico não tocou no assunto publicamente.

A visão de que o Brasil não deve “falar fino” com as potências mundiais, partilhada por Lula e Amorim, tem reflexo nas questões regionais. O presidente enviou seu ex-chanceler para reabrir a embaixada brasileira na Venezuela, fechada por Jair Bolsonaro, e Amorim aproveitou para estreitar as relações com Nicolás Maduro, em um encontro revelado pelo ditador em uma postagem nas redes sociais comemorando os “acordos de união e solidariedade” entre os dois países. “A busca por marcar diferenças com o governo anterior tem gerado controvérsias desnecessárias. O Brasil consegue se colocar como ator neutro trabalhando nos bastidores, sem precisar aparecer de maneira excessiva”, critica Leandro Lima, analista da consultoria Control Risks.

Lula e Amorim tiveram dois encontros casuais antes de serem devidamente apresentados, no início do primeiro mandato, em 2003, pelo então assessor da Presidência Marco Aurélio Garcia. Três outros diplomatas foram sondados para assumir o Itamaraty, mas o presidente se decidiu por Amorim por motivos vários, inclusive alguns prosaicos: os dois compartilhavam a inconveniência de caspas no couro cabeludo. E rindo se aproximaram ainda mais. Na ocasião, Amorim era filiado ao PMDB e ex-chanceler do presidente Itamar Franco, mas, 139 viagens depois, tornaram-se amigos próximos. Uma delas foi a missão no Irã, em 2010, quando o Brasil anunciou haver convencido Teerã a produzirenergia nuclear só para fins pacíficos. Pelo feito, Lula chegou a acreditar que ganharia o Nobel da Paz (o que, aliás, teria virado uma obsessão incansável), mas o tal pacto foi desfeito em menos de 24 horas pelos Estados Unidos. A amizade se consolidou de vez quando Amorim, que quase não bebe, se rendeu a uma dose de uísque e, língua destravada, queixou-se de não poder chamar o presidente de Lula, simples assim. Ele prontamente concedeu a intimidade, que só é usada, a bem da verdade, quando estão a sós.

Neste governo, Amorim indicou dois de seus ex-chefes de gabinete para posições centrais do Itamaraty: Mauro Vieira assumiu a pasta e Maria Laura da Rocha é secretária executiva. Indicações internas para embaixadas também passam por sua mesa, onde nomes já aprovados pelo chanceler têm sido riscados. Apesar da concentração de poder em mãos alheias, Vieira garante não sentir desconforto. “Eu e o Celso costumamos rir sempre que tentam criar intrigas entre nós. São especulações recicladas, que aparecem de tempos em tempos, ao longo de quarenta anos de amizade”, diz Vieira. Quando perguntado como quer ser tratado, Amorim recorre, em tom de brincadeira, a uma resposta irônica do ex-secretário de Estado americano Henry Kissinger: “Excelência serve”. Quem o conhece sabe que a piada tem lá seu fundo de verdade.


quinta-feira, 16 de março de 2023

Após denúncias contra diplomatas, Itamaraty realiza seminário para combater assédio - Julia Lindner (OESP)

Após denúncias contra diplomatas, Itamaraty realiza seminário para combater assédio

Por Julia Lindner
Estadão, 16/03/2023 | 06h00

O Itamaraty organizou um seminário interno sobre as condutas exigidas dos diplomatas em serviço no exterior. Proposto pela corregedoria do ministério, terá como um dos temas “Assédio moral e sexual: como evitar e como denunciar”.

No mês passado, o Ministério de Relações Exteriores (MRE) afastou embaixadores do Brasil em Mali e no Kuwait após acusações de assédio moral contra funcionários e ações inapropriadas.

https://www.estadao.com.br/politica/mariana-carneiro/apos-denuncias-itamaraty-realiza-seminario-para-combater-assedio-moral-e-sexual/ 

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Se posso oferecer alguma contribuição, seria este livro, no qual consta um capítulo meu, sobre o Itamaraty, mais algumas matérias sobre meu caso pessoal:

4051. “Assédio institucional no Itamaraty: breve abordagem e depoimento pessoal”, Brasília, 21 dezembro 2021, 25 p. Ensaio preparado como colaboração a livro a ser editado pela Afipea, sob coordenação de José Celso Cardoso: “Assédio institucional no Setor Público Brasileiro”, tratando do caso do Itamaraty. Revisão entre 24/12/2021 e 12/02/2022. Publicado in: José Celso Cardoso Jr., Frederico A. Barbosa da Silva, Monique Florencio de Aguiar, Tatiana Lemos Sandim (orgs.), Assédio Institucional no Brasil: Avanço do Autoritarismo e Desconstrução do Estado. Brasília: Afipea; João Pessoa: Editora da Universidade Estadual da Paraíba, 2022, capítulo 9, p. 389-427 (livro disponível no link: https://afipeasindical.org.br/content/uploads/2022/05/Assedio-Institucional-no-Brasil-Afipea-Edupb.pdf); divulgado no blog Diplomatizzando (4/07/2022; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2022/07/assedio-institucional-no-brasil-avanco.html). Relação de Publicados n. 1448.


3614. “Kafka no Itamaraty”, Brasília, 1 abril 2020, 3 p. Nota sobre a intimidação sobre diplomatas pela Administração do MRE. Divulgada no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/04/kafka-no-itamaraty-paulo-roberto-de.html), FaceBook (link: https://www.facebook.com/paulobooks/posts/3128277090569053?__cft__[0]=AZVQH0N6bVCmc6pj5lVtkLPG6lEBu1QZ66IBGy8T9XXw7rCaqc_BMEocYXK75Os6L-dw0DGS5gibOM67gEsC6_dOvBmSN0RmVYiMVQS3ommSBbJ0jAM_cahMHU8d6X4VSf4&__tn__=%2CO%2CP-R) e Twitter (https://twitter.com/PauloAlmeida53/status/1246137308098768896). Reproduzido no jornal GGN, de Luís Nassif, son o título “Como Ernesto, o idiota, se tornou chanceler” (3/04/2020, link: https://jornalggn.com.br/artigos/kafka-no-itamaraty-por-paulo-roberto-de-almeida/). Matéria na revista Veja, versão eletrônica, sobre o mesmo tema, “Embaixador vai à justiça contra assédio moral e perseguição no Itamaraty”, por Edoardo Ghirotto (3/04/2020; links: https://veja.abril.com.br/politica/embaixador-vai-a-justica-contra-assedio-moral-e-perseguicao-no-itamaraty/ e https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/04/embaixador-vai-justica-contra-assedio.html), que remete à matéria “Os veteranos encostados no Itamaraty”, por Denise Chrispim Marin(20/09/2019; link: https://veja.abril.com.br/mundo/itamaraty-veteranos-encostados/); matéria atual reproduzida no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/04/embaixador-vai-justica-contra-assedio.html) e em diversas ferramentas de comunicação social.


sexta-feira, 10 de março de 2023

Itamaraty e CRE do Senado preparam retirada de nomes bolsonaristas das embaixadas - Vinicius Doria (CB)

Itamaraty e CRE do Senado preparam retirada de nomes bolsonaristas das embaixadas

Por Vinicius Doria
10/03/2023 03:55


O Itamaraty e a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CRE) do Senado começam a preparar o terreno para uma mudança geral nas embaixadas brasileiras e em cargos de organismos multilaterais, com o objetivo de afastar da linha de frente da diplomacia do país os nomes ligados ao governo de Jair Bolsonaro (PL). O expurgo promete ser grande e vai atingir algumas das embaixadas mais importantes do Brasil e cargos estratégicos nas organizações internacionais.


A guinada na política externa brasileira faz parte da estratégia adotada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva de confrontar o bolsonarismo em todas as frentes possíveis. Para isso, o governo conta com um aliado fiel, o senador Renan Calheiros (MDB-AL), que assumiu, nesta semana, o comando da CRE.


O primeiro passo foi dado: o Palácio do Planalto retirou da comissão uma lista de 16 diplomatas indicados pelo governo anterior para assumir embaixadas que estão sem titular. Uma nova lista será encaminhada nas próximas semanas.


Conhecida como a comissão "dos punhos de renda", por adotar protocolos da diplomacia, como receber delegações estrangeiras e representar o Poder Legislativo em agendas internacionais, a CRE deverá ganhar um protagonismo inédito a partir deste ano. "A prioridade à frente da comissão, neste momento único da história, é a reconstrução, o resgate do papel que o Brasil sempre exerceu no cenário internacional", disse Renan Calheiros ao Correio.


Além das relações externas, em que a prioridade será a reinserção do país nas agendas globais, o novo presidente do colegiado pretende acompanhar de perto a atividade militar, cuja relação com os Três Poderes foi contaminada pela proximidade dos comandos das Forças Armadas com o projeto de poder de Bolsonaro. Os ataques golpistas de 8 de janeiro acenderam o sinal de alerta do novo governo.


O primeiro ato de Calheiros não poderia ser mais simbólico: ele vai pautar para apreciação da CRE o projeto da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19 que tipifica os crimes contra a humanidade, como o genocídio. O parlamentar presidiu a investigação do Senado que apontou as responsabilidades do governo anterior na condução da crise sanitária que provocou quase 700 mil mortes no país.


Recolocar a pandemia na pauta política também faz parte da estratégia de desconstrução do bolsonarismo e de responsabilização do ex-presidente por erros de comando. Dessa forma, a comissão também relembrará a participação do general Eduardo Pazuello (eleito deputado federal pelo PL do Rio de Janeiro) na condução do Ministério da Saúde.


A política externa é uma seara promissora para marcar diferenças entre os dois governos. Quando vem acompanhada de um escândalo que envolve militares, ganha contornos ainda mais urgentes, que vão ser explorados pelos aliados de Lula na CRE. É o caso do escândalo das joias que o ex-presidente recebeu na Arábia Saudita. Calheiros quer que o tema também faça parte da agenda da comissão, que deve acompanhar as investigações sobre a participação de militares, como o ex-ministro de Minas e Energia almirante Bento Albuquerque e o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro no Palácio do Planalto tenente-coronel Mauro Cid. Até por obrigação regimental, as primeiras autoridades ouvidas na comissão serão os ministros das Relações Exteriores, embaixador Mauro Vieira, e da Defesa, José Múcio Monteiro.


A reinserção do Brasil nos principais fóruns multilaterais — em especial, a Organização Mundial de Comércio (OMC) — e a reativação dos blocos econômicos que perderam importância no governo anterior, como o Mercosul (que deverá retomar as discussões com a União Europeia para retirada de barreiras comerciais) e o Brics (acrônimo da união entre Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), vão competir, em importância, com a chamada diplomacia ambiental, que envolve os debates sobre aquecimento global e sustentabilidade em todo o mundo.


Artilharia pesada

Enquanto a diplomacia caminha pela trilha da chamada "soft power" (poder suave, em tradução livre), Calheiros prepara artilharia pesada contra o governo Bolsonaro, reforçando o discurso da gestão Lula de que o período anterior não representa a tradição brasileira nas relações externas.


A imagem do país foi severamente comprometida por uma série de episódios que serão lembrados pelo senador, como o comentário do ex-chanceler Ernesto Araújo, em 2020, de que, se a "nova política externa (do governo Bolsonaro) nos faz ser um pária internacional, que sejamos esse pária".


"O Brasil sempre foi respeitado pelos pressupostos de sua chancelaria, e isso, infelizmente, foi dilapidado no governo anterior, ao ponto de nos tornarmos pária mundial. Mas o Brasil voltou ao centro das atenções, e o mundo demonstrou que estava com saudades do Brasil", disse Calheiros.


Com Bolsonaro, o país se aproximou de governos pouco democráticos (como Hungria e Polônia) e ditaduras de fato, como a da Arábia Saudita — agora, pivô do caso das joias (leia reportagem na página 4). Também criou embaraços na relação com o maior parceiro comercial do país, a China, quando Bolsonaro declarou que não confiava "na vacina chinesa (contra covid-19)", e se alinhou de corpo e alma ao governo de Donald Trump nos Estados Unidos, a ponto de não criticar a invasão do Capitólio e fazer do Brasil o último membro do G-20 a reconhecer a vitória de Joe Biden nas urnas, 38 dias depois de o democrata ser declarado ganhador das eleições presidenciais.


https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2023/03/amp/5079276-itamaraty-e-cre-do-senado-preparam-retirada-de-nomes-bolsonaristas-das-embaixadas.html

sábado, 4 de março de 2023

Um "Observador" (militar reformado) critica a política pró-Putin dos governos Bolsonaro e Lula e do próprio Itamaraty

 Plano de paz de Lula para a Ucrânia

Observador
DefesaNet, 04 Março 2023

https://www.defesanet.com.br/destaque/noticia/1048654/notas-estrategicas-br-plano-de-paz-de-lula-para-a-ucrania/

Nas últimas semanas a imprensa brasileira e estrangeira vem comentando sobre o plano de paz proposto pelo presidente brasileiro Lula para a Ucrânia. Sobre o assunto, é necessário salientar que a Ucrânia foi invadida por um país vizinho, uma das duas maiores potências nucleares do mundo. A Ucrânia não está em guerra, ela apenas foi obrigada a recorrer à Força Armada para se defender de uma invasão estrangeira, que busca decapitar seu governo democraticamente eleito, anexar territórios e destruir o país, como nação assim como seu povo.

O mundo não via um país enfrentar uma ameaça existencial desde a Segunda Guerra Mundial. A invasão russa da Ucrânia, uma grande nação europeia, soberana, democrática e pacífica (que entregou todas as suas armas nucleares à Rússia) foi a maior violação da Carta das Nações Unidas em toda sua história, e uma derrota ucraniana seria o fim das relações interestatais tal qual as conhecemos. Ou seja, a Rússia não pode vencer.

A Sistema Internacional moderno nasceu das cinzas da carnificina, do trauma e do aprendizado da Segunda Grande Guerra, e a derrota da Ucrânia seria a destruição desse sistema criado após a catástrofe de 1945.

Corremos o sério risco de uma reviravolta nas relações internacionais, com negociações diplomáticas e comerciais pautadas pela ameaça indiscriminada do uso da força militar, deixando países menores e mais fracos reféns do império da lei do mais forte, e o Brasil não está preparado para isso. Nunca esteve.

A soberania territorial e a inviolabilidade das fronteiras somente será assegurada por aquelas nações que têm poder e força para defendê-las, e novamente, não é o nosso caso.

Infelizmente, desde o governo de Jair Bolsonaro, o Itamaraty e o Governo Brasileiro têm tido uma posição vergonhosa com relação à Ucrânia. Da mesma forma no governo Lula, as ações geram desconfiança sobre as reais intenções.

Basicamente, nossas autoridades políticas e militares vem repetindo o discurso pró-russo veiculado como propaganda na Russia Today, que vão desde a expansão da OTAN a necessidade de acesso a fertilizantes.

A aproximação com Moscou, na contramão do resto do mundo, foi estratégia da  Secretária Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.

Neste sentido, Esquerda e Direita andam de mãos dadas já que as alas ideológicas do Bolsonarismo e do Lulo-PTismo sempre tiveram uma visão pró-Moscou. A primeira é antiglobalista e a segunda anticapitalista e ideológica. Essa visão geopolítica nada mais é que um olhar míope do que é a Rússia atual, o que ela representa e o quão fraca, decadente e corrupta é.

Se nenhum dos seus vizinhos confia na Rússia, porquê nos confiaríamos? Qual é o “case” de sucesso histórico das nossas relações bilaterais?

Dito isso, cabe ressaltar que, em prejuízo e colocando em risco a própria segurança nacional do Brasil, Vladimir Putin nunca fez uso das suas boas relações com Brasília para nos consultar se podia armar a Venezuela e alterar – ainda hoje – a balança do poder militar na região. Diga-se de passagem com a conivência do governo Lula e do chanceler Celso Amorim.

Não existe posição neutra quando se trata da invasão russa da Ucrânia. Foi uma violação territorial, uma invasão não provocada, com ataques indiscriminados e massacres à população civil, com bombardeios diários em uma milenar capital europeia.

Seja político ou general, civil ou militar, quem for neutro ou apoiar à Rússia neste momento estará avalizando uma futura guerra em nosso território, onde pseudos movimentos separatistas apoiados por uma potência militar estrangeira poderão criar uma secessão em áreas de fronteira e até a perda de partes significativas do território brasileiro, com ou sem uma guerra.

Lula disse que respeita a soberania e a integridade territorial da Ucrânia. Mas de qual território ele está falando? O território internacionalmente reconhecido, com as fronteiras anteriores a 2013, que inclui a Crimeia, Luhansk e Donetsk ou apenas deseja uma paz imediata, congelando o conflito e mantendo nas mãos de Moscou os territórios ocupados pelos russos e forçadamente anexados após eleições ilegais e ilegítimas organizadas pela força de ocupação, as quais ironicamente, contaram com observadores brasileiros membros de diretórios do Partido dos Trabalhadores?

Importante lembrar que o PT sempre condenou a revolução ucraniana (movimento Praça Maidan) e sempre apoiou as ações russas.

Em várias oportunidades nos últimos anos o Governo Ucraniano enviou cartas ao Governo Brasileiro convidando o país para integrar e comandar tropas de uma missão de paz sob a égide das Nações Unidas. Nunca houve uma resposta brasileira e uma concordância russa às iniciativas de paz ucranianas.

Volodymyr Zelenskyi, que de palhaço não tem nada, surpreendeu o mundo com um protagonismo e se mostrou ser o grande estadista do Século XXI. Ele sabe o que faz. Convidou Lula para visitar a Ucrânia, se reunir com ele em Kyiv, escutar o som das sirenes de alarme aéreo, ver com seus olhos a destruição e os massacres em Bucha, Irpin e Borodyanka. O estadista ucraniano só acreditará nas boas intenções do mandatário brasileiro quando este desembarcar na estação ferroviária de Kyiv.

Enquanto isso não acontece, esperamos que o plano de paz de Lula não seja apenas uma ação entre amigos e tenha sido combinado com os russos. Se isso for verdade, o isolamento internacional de Lula será ainda maior que o de Bolsonaro

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quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Itamaraty inicia nova gestão com adesão a acordo de migração e críticas a Israel (Brasil 247; Correio Braziliense)

 Mauro Vieira inicia gestão no Itamaraty com adesão a acordo de migração e críticas a Israel

Novo chanceler busca trazer o Brasil de volta ao mundo
Brasil 247, 5 de janeiro de 2023 

247 - O Itamaraty comunicou à Organização das Nações Unidas (ONU), nesta quinta-feira (5), que o Brasil voltará a fazer parte do Pacto Global para a Migração Segura. O País assinou o pacto em dezembro de 2018, mas, no mês seguinte, no início do mandato de Jair Bolsonaro, se retirou, alegando que o acordo lesava a soberania nacional.

O novo governo, que tem Mauro Vieira como chanceler, disse em nota que o Pacto está alinhado com a Lei da Migração brasileira, por exemplo, ao garantir o acesso de migrantes a serviços básicos. Ainda segundo a nota, “o retorno do Brasil ao Pacto reforça o compromisso do governo brasileiro com a proteção e a promoção dos direitos dos mais de 4 milhões de brasileiros que vivem no exterior”.

Política externa ativa e altiva
O Itamaraty já vem demonstrando que conduzirá uma diplomacia distinta do antigo governo Jair Bolsonaro. Em um comunicado divulgado na terça-feira (3), o MRE brasileiro criticou a visita do ministro de Segurança Nacional de Israel, Itamar Ben Gvir, à mesquita Al Aqsa, em Jerusalém.

Na mesma data, Gvir visitou o Monte do Templo, onde fica a mesquita Al Aqsa --um dos locais mais reverenciados pelo Islã. A visita provocou a condenação de grande parte do mundo muçulmano, incluindo Arábia Saudita, Catar, Jordânia e Emirados Árabes Unidos. O Monte do Templo é reverenciado como um local sagrado por todas as fés abraâmicas.

O comunicado do Itamaraty expressa a preocupação do Brasil com a incursão de Ben Givr na Esplanada das Mesquitas. “À luz do direito internacional e tendo presente o status quo histórico de Jerusalém, o governo brasileiro considera fundamental o respeito aos arranjos estabelecidos pela Custodia Hachemita da Terra Santa, responsável pela administração dos lugares sagrados muçulmanos em Jerusalém, tal como previsto nos acordos de paz entre Israel e a Jordânia, em 1994. Ações que, por sua própria natureza, incitam à alteração do status de lugares sagrados em Jerusalém constituem violação do dever de zelar pelo entendimento mútuo, pela tolerância e pela paz”, diz o Itamaraty.



Brasil volta ao Pacto para Migração da ONU, anuncia Itamaraty

Assinado pelo Brasil em 2018, o Pacto foi deixado de lado em 2019 pelo governo Bolsonaro. O texto prevê diretrizes para o trato aos migrantes

Victor Correia
Correio Braziliense, 05/01/2023 
   
O Ministério das Relações Exteriores anunciou nesta quinta-feira (5/1) o retorno do Brasil ao Pacto Global para Migração Segura, da Organização das Nações Unidas (ONU). O comunicado foi enviado pelo governo federal a dirigentes da ONU e da Organização Internacional para as Migrações (OIM).

"O retorno do Brasil ao Pacto reforça o compromisso do Governo brasileiro com a proteção e a promoção dos direitos dos mais de 4 milhões de brasileiros que vivem no exterior", disse o Itamaraty em nota à imprensa.

O Pacto Global para Migração Segura, Ordenada e Regular foi assinado em 2018 pelos 164 Estados-membro da ONU, inclusive pelo Brasil. Em 2019, porém, o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) declarou que não participaria. O chanceler à época, Ernesto Araújo, chegou a declarar que "a imigração não deve ser tratada como questão global, mas de acordo com a realidade e a soberania de cada país”.

"Compromissos já contemplados pela Lei de Migração Brasileira"
Segundo as Nações Unidas, o Pacto para Migração "não é vinculativo e fundamenta-se em valores de soberania do Estado, compartilhamento de responsabilidade e não-discriminação de direitos humanos". O texto estabelece diretrizes para o trato aos migrantes e cooperação internacional em prol do tema.

"O documento contém compromissos já contemplados pela Lei de Migração brasileira, considerada uma das mais avançadas do mundo, como a garantia do acesso de pessoas migrantes a serviços básicos", declarou também o Itamaraty

Empossada ontem, a secretária-geral do Ministério das Relações Exteriores, Maria Laura da Rocha, primeira mulher a ocupar o segundo cargo mais alto da pasta, declarou que "o Brasil terá de reconstruir pontes com países e grandes foros de debate, a começar pela sua própria região sul-americana, e na América Latina e Caribe, além de colocar em marcha uma nova dinâmica no relacionamento com a África, com a Ásia e com parceiros prioritários como a Europa, os Estados Unidos, a China e os demais membros do BRICS".


quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Uma transição pouco diplomática - Paulo Roberto de Almeida

Uma transição pouco diplomática

Paulo Roberto de Almeida


A cronologia histórica ocidental estabelece um AC e um DC. Nossa cronologia diplomática tem um AE e um DE.

No seu discurso de posse, o novo chanceler designado não fez nenhuma distinção entre as duas fases, bem distintas, da diplomacia que encerrou a desastrosa política externa ditada pelo mais inepto dirigente da história. 

No entanto, Carlos França fez o máximo que podia para tentar minimizar o amplo estrago diplomático deixado pelo antecessor, assim como para contornar a estapafúrdia política externa determinada pelo chefe.

Pelo menos por cortesia corporativa, caberia um gesto simpático ao colega que se esforçou para tourear os bárbaros que demoliram a imagem e a postura internacional do Brasil. 

Mas, o mesmo tipo de atitude descortês já tinha ocorrido na transição diplomática de FHC para Lula, em janeiro de 2003: além da mentirosa alegação da “herança maldita”, se acusou a antiga gestão da chancelaria de ter conduzido uma diplomacia submissa a Washington, o que era uma ofensa gratuita e desprovida de fundamentação.

Talvez, o discurso atual tenha tido o mesmo redator daquele anterior. É provável!

Paulo Roberto de Almeida

São Paulo, 4/01/2023

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Itamaraty, desbolsonarização e criação de um ‘Conselhão’ - Assis Moreira (Valor)

Itamaraty, desbolsonarização e criação de um ‘Conselhão’

Assis Moreira

É correspondente do Valor em Genebra desde 2005. Cobriu 20 vezes o Fórum Mundial de Economia, em Davos, e dezenas de conferências ministeriais em vários países.

Valor Econômico, 03.01.23, 18:23

 

Brasil de volta ao mundo – mas não pode improvisar

Novo chanceler prometeu um ‘enorme trabalho de reconstrução’ da política, desbolsonarização e participação social na política externa.

 

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva volta ao poder num momento internacional significativamente mais grave do que em 2003, quando assumiu pela primeira vez a presidência. Era um momento de relativo otimismo e moderação, fim da guerra do Iraque, hegemonia americana, China crescendo muito, boom de commodities, Brasil crescendo pela primeira vez em mais ou menos em linha com a média mundial, e a América Latina subindo junto. 

Hoje é o contrário, com efeitos persistentes da covid-19, acirramento da competição estratégica entre China e EUA, guerra na Europa, ameaça de recessão global, e securitização de todos os temas. Se em 2003 se estava negociando Rodada Doha de liberalização comercial, hoje o foco é em segurança energética, segurança alimentar, guerra e controle de exportação de chips, uso do argumento de segurança nacional para fechar as fronteiras, lógica de blocos em vez de multilateralismo. 

Em 2003, o mundo passava por um momento de estabilidade das relações internacionais. Estava tudo mais ou menos funcionando. Agora, há uma tremenda confusão e mais imprevisibilidade. É um cenário tenso, que trouxe a geopolítica para o dia a dia das considerações de cada governo e empresas. 

O Brasil é um país com boa complementaridade com a China, mas habita em outra vizinhança. A pressão vai persistir para nações como o Brasil se reposicionem. O que todo mundo tem feito é procurado evitar decisão, para um ou outro lado, americano ou chinês. Existem limites para a ação diplomática do novo governo Lula, mesmo em movimentos pequenos. 

Além dessa primeira grande condicionante, que é a situação internacional, tem a situação interna, altamente polarizada, com uma política externa que foi muito contestada muito contestada por causa do isolamento especialmente na área ambiental. Isso vai levar ao que parece ser a mais evidente correção de rumos. O risco, para certos analistas, é de um excesso de correção, fazer tudo o que parceiros exigem e passar de mau aluno para aluno modelo num cenário complicado. 

Basta ver que uma legislação da União Europeia para proibir commodities originárias de desmatamento, com alto risco de seletividade que aumentará o custo da produção agrícola. O mesmo ocorrerá na área industrial com a taxa de carbono na fronteira que a UE vai impor sobre siderurgia e outros produtos. Bruxelas usa unilateralmente sua capacidade regulatória como um fator de distorção do comércio. Uma questão é como o novo governo em Brasília vai conciliar os interesses do agronegócio e dos ambientalistas, e responder na prática aos europeus. 

O novo governo prioriza também aumentar a integração com a América do Sul e a retomada da cooperação com a África. Mas a capacidade brasileira de fazer coisas concretas é menor, hoje. O Brasil diminuiu de perfil mundial nos quatro anos de Bolsonaro. Agora, o governo Lula tem uma série de aspirações políticas, mas se defronta com restrições do mundo real. 

É preciso ver como o Itamaraty se encontra hoje. É uma instituição inchada no topo ao longo dos anos. Aumentou a idade da aposentadoria para 75 anos, colocou mais gente nos seus quadros e a soma das ambições individuais é muito maior do que o Itamaraty. Com isso, surgem brigas entre diferentes gerações de diplomatas, diferentes grupos de diplomatas, entre homens e mulheres diplomatas, e entre identidade de diplomatas (étnica, sexual etc). 

Uma frase repetida em Brasília é a de que a melhor tradição do Itamaraty é saber renovar-se. Mauro Vieira é considerado como tendo a experiência e sensibilidade para modernizar a instituição nesses tempos conturbados. Mas um artigo de um jovem diplomata em licença remunerada, e atualmente professor da Queen University of London, Felipe Antunes de Oliveira, mostra que a tarefa não será fácil. 

Para ele, mesmo se a desastrosa política internacional do governo Bolsonaro está prestes a acabar, o bolsonarismo continua vivo dentro do Itamaraty. ‘Há um bolsonarismo arraigado no Itamaraty. Enquanto não houver uma profunda reforma da política externa brasileira e da instituição responsável por sua implementação, qualquer combinação entre más ideias e péssima implementação continua possível’, escreveu Antunes. 

A base material do bolsonarismo latente no Itamaraty, segundo Antunes, se assemelha a uma grande linha de produção com quatro engrenagens articuladas entre si: elitismo sistêmico, formação continuada de baixíssimo nível, infantilização funcional permanente e falta de transparência e previsibilidade nas práticas de promoção e remoção, gerando uma série de incentivos negativos ao longo da carreira de todos os diplomatas – e tudo isso tem efeito sobre políticas públicas. 

A possibilidade de Ernesto Araújo ter chegado ao posto de chanceler e durar mais de dois anos, implementando a política externa que implementou, mostra que a sociedade não pode deixar o Itamaraty dirigindo a política externa em piloto automático, diz essencialmente Antunes. 

O reconhecimento da política externa como política pública, e inseparável da política interna, deveria levar ao estabelecimento de um mecanismo permanente de diálogo com a sociedade civil. A necessidade de institucionalização da abertura do Itamaraty à sociedade, com as devidas atenções à especificidade da diplomacia, já foi tema de tese no Itamaraty, como o da diplomata Vanessa Dolce de Faria. 

A ideia de um grande ‘Conselho’ para debater linhas gerais da política externa, com participação de diferentes setores da sociedade, chegou a ser explorada nas gestões dos ministros Antonio Patriota e Luiz Alberto Figueiredo. Proposta de criação de um Conselho Nacional de Política Externa também foi encaminhada a Mauro Vieira quando chanceler de Dilma Rousseff. Ele tem nova oportunidade de tratar do tema, agora, num novo governo que fala muito de transparência e participação social. 

 

 

Discurso de posse do chanceler Mauro Vieira (2/01/2023)

Um desses poetas ufanistas de outrora, tinha um mote, supostamente para um rebento, que dizia o seguinte: "Não verás nenhum país como este". O dito NÃO SE APLICA, ao discurso do atual chanceler, que foi perfeitamente na linha do que fizeram TODOS os chanceleres anteriores, em todas as épocas. O único discurso de posse absolutamente DEMENCIAL, foi o daquele chanceler acidental da EA, a Era dos Absurdos, em 2/01/2019; dele se pode dizer com total certeza: "Não verás mais nenhum discurso como aquele".


 Discurso de posse do chanceler Mauro Vieira

Rumo ao ‘grande palco das relações internacionais’

Minhas primeiras palavras são de gratidão ao Senhor Presidente da República pela confiança que em mim deposita para chefiar o Itamaraty e executar a política externa que reconduzirá o Brasil ao grande palco das relações internacionais.

Nada poderia honrar-me mais do que ser convocado para colaborar com esse trabalho, que será de todo o Brasil e em benefício de todos os brasileiros. Nada poderia dar-me mais certeza do privilégio que recebo do que recordar o papel único que o Presidente Lula exerceu, durante os seus dois mandatos prévios. Neles, com sua política externa ativa e altiva e a intensa diplomacia presidencial que conduziu, elevou o Brasil a um patamar inédito em sua necessária e insubstituível atuação internacional.

Ajudá-lo a retomar essa atuação, de forma criativa, inovadora e atenta às mudanças no Brasil e no mundo, é uma oportunidade sem par. Sobretudo, para mim, é também a culminação de uma carreira de quase 50 anos a serviço do Itamaraty e do Brasil.


Quero render uma homenagem agradecida a dois queridos chefes, estadistas de primeira grandeza, que marcaram profundamente a minha formação profissional e a minha vida pública. São eles os ex-Ministros Renato Archer e Celso Amorim.

O embaixador e ex-Ministro das Relações Exteriores Celso Amorim, amigo e inspiração de tantos anos, foi meu querido chefe em várias ocasiões e continuará sendo para mim um modelo de diplomata e de chefe desta Casa. É reconfortante saber que poderei contar com a sabedoria, a experiência, a colaboração e o olhar sempre construtivo de Celso Amorim, um dos maiores diplomatas da nossa história, para encarar a monumental tarefa de reconstruir nosso patrimônio diplomático.

Com o Ministro Renato Archer tive o privilégio de trabalhar no Ministério da Ciência e Tecnologia – inspirada, visionária e duradoura criação do Presidente José Sarney em 1985 -, sempre junto de Celso Amorim, e no Ministério da Previdência Social, também no governo Sarney. Aprender com um estadista do porte de Renato Archer foi uma etapa decisiva de minha formação e aqui o relembro com saudade, admiração e enorme gratidão.


Queria também dizer uma palavra de comovida recordação de meus pais, que já não estão mais perto de mim, mas que me acompanharam por décadas de minha vida e seguem inspirando-me e guiando-me. A memória doce e amorosa que deles cultivo justifica que agora peça, uma vez mais, suas bênçãos. Agradeço, ainda, minha família aqui presente.

Não é comum que a nós seja dada uma segunda oportunidade de voltar a fazer algo que foi brusca, involuntariamente interrompido.

Em maio de 2016, deixei o cargo a que hoje regresso, em meio a um doloroso processo de impeachment que fraturou o país e deixou marcas profundas.

Queria reiterar a gratidão que devo à Presidenta Dilma Rousseff, primeira mulher a ocupar a Presidência do nosso País, pela confiança que em mim depositou naquele período, lamentando que não tenhamos podido concluir, na política externa, as tarefas a que nos havíamos proposto.


Aceito agora o desafio de retornar a esse lugar e a essas tarefas, consciente de que mudanças importantes ocorreram no Brasil e no mundo nestes mais de seis anos e meio desde a minha saída. Consciente, também, de que o Brasil tem muito a fazer para reconstruir sua inserção no mundo e em sua própria região.

Não temos tempo a perder nesse trabalho que é de todos os brasileiros, de todos os Poderes, de todo o Governo, mas muito especialmente do Itamaraty, sob a condução experiente do Presidente Lula e contando com sua vivência e trânsito internacionais.

Quero também saudar a todos e cada um dos diplomatas, funcionários do quadro e funcionários locais do Itamaraty que, no Brasil e pelo mundo afora, defendem e representam o nosso país. São, nesse vasto mundo em que operam, às vezes em condições difíceis e em meio a crises e pressões, os guardiões da nossa soberania, dos nossos interesses e da nossa grande e crescente comunidade brasileira no exterior.


Em seu discurso de posse; em seu discurso em Sharm El-Sheikh, durante sua destacada participação na COP-27; em seu programa de governo; e na chancela que deu ao diagnóstico e propostas da equipe de transição, o Presidente da República traçou com clareza os desafios e os rumos que vê para a nossa política externa e para uma reinserção digna do Brasil no mundo.

Essa política externa é concebida como uma ampla tarefa que vai muito além da ação profissional e estatutária do Itamaraty, para alcançar o conjunto das políticas públicas brasileiras em matéria de crescimento econômico, meio ambiente, agricultura, educação, cultura, ciência, tecnologia e inovação, direitos humanos, desenvolvimento social e defesa.

Todas elas, associadas a uma política externa vigorosa, são indispensáveis para garantir e projetar a nossa soberania e a defesa dos nossos interesses. Só seremos fortes se atuarmos a partir da visão ampla de um país comprometido com o desenvolvimento sustentável, socialmente mais justo, politicamente mais maduro e reconciliado com suas melhores tradições de diálogo e de respeito.


Não será tarefa simples, nem fácil. Ela exigirá um esforço amplo de todos e a retomada de uma dose generosa do orgulho que sempre tivemos de nosso País atuando em sua região e no mundo.

Atravessamos um momento certamente dos mais conturbados no cenário internacional. Tensões entre grandes potências e uma guerra dolorosa na Europa ampliaram o risco de escaladas imprevisíveis, colocando em perigo a estabilidade política e econômica no mundo e exacerbando os efeitos negativos da pandemia da COVID-19 sobre a economia global, as cadeias de suprimento, o abastecimento de energia e a segurança alimentar. E deteriorando as condições de vida de milhões de pessoas que buscam na imigração mitigar seu sofrimento.

Teremos de saber operar nesse ambiente, com uma crise de governança global sem precedentes, agravada pela paralisação de mecanismos como a Organização Mundial do Comércio (OMC) e o próprio Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (CSNU). 

E em um momento complexo também para nossa região, que segue enfrentando problemas graves de desenvolvimento, de sustentabilidade, de pobreza e de governabilidade, mas que perdeu muito de sua capacidade de articular-se e agir em conjunto e solidariamente. Será necessário recuperar e ampliar essa capacidade.


O quadro é agravado pela emergência climática, que coloca em perigo o futuro do planeta, com consequências já sentidas hoje sobretudo pelos mais vulneráveis. Além disso, a pandemia de COVID-19 demonstrou a importância da diplomacia da saúde e de reforçar a cooperação internacional por meio da Organização Mundial da Saúde (OMS), mundialmente, e da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), regionalmente.

A boa notícia, como tem dito o Presidente Lula, é que o Brasil está de volta. Existe uma clara demanda do mundo pelo Brasil. O destaque dado pela mídia internacional à posse do Presidente Lula atesta o que acabo de dizer. Em seu discurso no Congresso Nacional, o Presidente saudou a vitória da democracia brasileira sobre as ameaças do autoritarismo e da desinformação. E reafirmou seu compromisso com a reconstrução do país e de suas pontes com o mundo. A primeira instrução que dele recebi foi a de reabrir canais de diálogo bloqueados.

Há, também, uma demanda do Brasil pelo mundo. Todos os temas prioritários para assegurar a prosperidade, o bem-estar e a justiça social no país estão sujeitos ao impacto de processos decisórios internacionais ou problemas globais.


Estivemos alijados do cenário internacional nos últimos anos por força de uma visão ideológica limitante. Com bom senso e muito trabalho e dedicação, reconquistaremos nosso lugar.

A principal tarefa da política externa diante desse quadro será de fato reinserir o Brasil em sua região e no mundo, como corresponde aos nossos valores e interesses. Isso vai requerer uso intenso de nossas capacidades diplomáticas e forte retomada da diplomacia presidencial.

Teremos de recompor relações bilaterais danificadas e retomar o protagonismo construtivo nos foros e organismos internacionais onde temos uma contribuição singular a oferecer. O Brasil será um parceiro confiável, um ator incontornável, uma liderança e uma força positiva em favor de um mundo mais equilibrado, racional, justo e pacífico.

A política externa voltará a traduzir em ações a visão de um país generoso, com mais justiça social, comprometido com os direitos humanos, apegado ao direito internacional e disposto a dar uma forte contribuição à sua região e ao mundo.

Para isso, o Brasil precisa reassumir a sua identidade de grande país sul-americano e em desenvolvimento, restabelecer a confiança na relação com nossos vizinhos e voltar a atuar como um país com interesses globais.

Para realizar essa política externa, nossa ação no mundo tem de ter coerência com a nossa ação interna.

Cabe à ação diplomática dialogar com a realidade do país que representa, bem como contribuir para a superação de seus desafios.

O Presidente da República deu o tom do que será sua política para a mudança do clima, reconstruindo as capacidades internas e retomando a cooperação internacional para alavancar o cumprimento de metas nacionais ambiciosas. Ao oferecer o país como sede da COP-30, em 2025, o Presidente Lula reforçou nossas credenciais internacionais na matéria e retomou a linha que havia começado em dezembro de 1988 com o sábio oferecimento, pelo Presidente Sarney, de sediarmos a Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Rio-92, verdadeiro divisor de águas na questão ambiental e do desenvolvimento sustentável.

O Brasil tem todas as condições de consolidar-se como modelo de transição energética e economia de baixo carbono. Isso exigirá esforço interno, mas também uma ativa política de atração de investimentos. Demandará recursos próprios, sem que deixemos de cobrar com firmeza a implementação, pelos países desenvolvidos, de seus compromissos em matéria de financiamento. E exigirá uma diplomacia ambiental e climática de primeira grandeza, ativa e determinada a defender nossos interesses e a desempenhar o papel de facilitador e de gerador de consensos que, desde a preparação da Rio-92, o Brasil sempre soube exercer até recentemente.

Nesse processo, seremos guiados por uma visão integrada do desenvolvimento sustentável em seus três pilares: econômico, social e ambiental – com especial atenção para a proteção da biodiversidade, para a preservação da Amazônia e de outros biomas, e para a geração de emprego e renda para milhões de brasileiros.

Fortalecer a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) será fundamental para reativar a cooperação nesses e em outros temas de interesse dos países amazônicos, bem como coordenar suas posições em foros mundiais. A proposta do Presidente Lula de uma Cúpula amazônica será elaborada com grande atenção.

O Brasil realinhará a política externa em direitos humanos aos parâmetros da Constituição Federal e do direito internacional dos direitos humanos, sobretudo na promoção da igualdade de gênero; no combate à discriminação e à violência em função de orientação sexual e identidade de gênero; na promoção da igualdade racial e o combate ao racismo e a xenofobia; e na defesa dos direitos dos povos indígenas.

Vamos retornar imediatamente ao Pacto Global de Migrações da ONU e dialogar com os membros do Congresso Nacional para avançar na aprovação expedita da Convenção da ONU sobre direitos dos trabalhadores migrantes.

O Brasil e os demais países emergentes querem ter vez e voz na cena internacional. Não podemos conviver com estruturas decisórias desatualizadas, que não refletem a contribuição que podem dar ao enfrentamento de desafios comuns. Atualizar a governança global na terceira década do século XXI é uma tarefa inadiável.

Seguiremos trabalhando para uma reforma e ampliação do Conselho de Segurança da ONU, órgão de que participamos em 2023, o segundo ano de nosso atual biênio como membro não-permanente.

Colaboraremos, no Conselho e na Assembleia-Geral, com as discussões sobre prevenção e solução negociada de conflitos, mediação, manutenção e construção da paz, cooperação humanitária e a implementação da Agenda de Mulheres, Paz e Segurança. Retomaremos nosso protagonismo em desarmamento e não-proliferação nuclear, valorizando o Tratado para a Proibição das Armas Nucleares em um mundo de exacerbadas rivalidades geopolíticas.

O Brasil retoma, ainda, seu compromisso de reforma das instituições financeiras internacionais, de modo a torná-las mais representativas, em particular dos países em desenvolvimento.

Será importante fortalecer e destravar a Organização Mundial do Comércio (OMC) nas vertentes de transparência, resolução de controvérsias e de negociação. Vamos buscar novos acordos comerciais e de facilitação do comércio.

Vamos manter a cooperação com as instâncias da OCDE que geram benefícios para o país e examinar, à luz do interesse nacional, o convite que nos foi feito para a ela aderirmos.

Vamos utilizar de maneira criativa o G-20, que o Brasil presidirá em 2024, o BRICS, cuja condução nos caberá em 2025, e outros mecanismos de concertação, como o IBAS, cuja presidência assumiremos já em 2023, para reforçar nossas posições e interesses concretos em temas da agenda internacional. E vamos aproveitar a oportunidade da direção brasileira de organismos internacionais, como a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), para avançar concretamente em iniciativas mais acordes com nossa visão de mundo.

A diplomacia é instrumento fundamental na busca da ampliação e diversificação de comércio e investimentos.

Somos e seguiremos sendo uma potência agroambiental, com papel crucial na segurança alimentar mundial.

Em sintonia com a prioridade conferida pelo Presidente Lula ao combate à fome, atuaremos para fortalecer todos os elos da cadeia mundial de suprimentos alimentares, desde a livre circulação de insumos e tecnologias de produção até o acesso a alimentos de qualidade. Seremos incansáveis nos esforços para abrir mercados e diminuir e neutralizar barreiras ao comércio agrícola.

O Brasil também é ator incontornável em outros temas estratégicos e emergentes. Nesse sentido, fortaleceremos a diplomacia da inovação e participaremos ativamente dos debates internacionais sobre governança digital.

Por outro lado, buscaremos fortalecer a capacidade institucional de instrumentos vitais de que dispomos, como a Agência Brasileira de Cooperação e o Instituto Guimarães Rosa. A ABC, com sólida experiência em programas e projetos de cooperação, será o fio condutor do intercâmbio com países em desenvolvimento e outros parceiros, com atenção especial à América Latina e o Caribe; à África; e aos países de língua portuguesa. O Brasil voltará a ser um país solidário e engajado. O Instituto Guimarães Rosa, por sua vez, nasce como articulador institucional da diplomacia cultural e educacional, bem como da difusão da língua portuguesa, e será parceiro de primeira hora do relançamento da política cultural brasileira.

De todas as ausências do Brasil, o abandono da América Latina e do Caribe talvez seja a que nos ocasionou maiores prejuízos.

O retorno do Brasil à sua própria região significará o engajamento e o diálogo com todas as forças políticas, para que possamos recuperar a capacidade de defender nossos interesses e contribuir para o desenvolvimento e a estabilidade regionais. Nossa ideologia na região será a ideologia da integração.

Daremos atenção especial à parceria estratégica com Argentina, Uruguai e Paraguai, fortalecendo os mecanismos bilaterais e a implementação de projetos de interesse comum.

O MERCOSUL deve ser aprofundado, juntamente com nossos três parceiros, nas vertentes que tenham impacto direto na vida das pessoas e no comércio intra e extrarregional, com ênfase no avanço da liberalização e facilitação do comércio dentro do bloco, da conclusão de acordos externos equilibrados, na promoção dos investimentos, no turismo, e na facilitação da circulação de pessoas e bens.

Em diálogo com nossos parceiros, buscaremos recuperar em novas bases a União de Nações Sul-Americanas (UNASUL), garantindo claro sentido pragmático e eficácia à organização. O pronto retorno à Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) e a sua dinamização serão, também, objetivos imediatos da política externa brasileira.

Seguiremos atentos à importância de fortalecer as instituições democráticas, contribuindo, pelo diálogo e os bons ofícios, para a superação de tensões internas, sempre com respeito à soberania dos países e sem nunca perder de vista o compromisso universal com os direitos humanos e com a democracia.

Coletivamente, a América Latina e o Caribe podem ser uma força a favor da multipolaridade e em benefício de ganhos reais para seus países.

Ao movimento de retorno à nossa região deve corresponder a retomada da política externa verdadeiramente universalista. A África, região da qual o Brasil esteve ausente nos últimos anos, voltará a ser prioridade. Continente dinâmico, a África tem avançado em seu processo de desenvolvimento; constrói, agora, uma gigantesca área de livre comércio; e abrigará, em alguns anos, quase metade da juventude mundial.

O diálogo político de alto nível com países africanos e suas organizações regionais será restabelecido para tratar de desafios comuns, como segurança alimentar, mudança do clima, comércio e investimentos e intercâmbio de tecnologias. Fortaleceremos a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul.

No Oriente Médio, o Brasil retomará sua tradição de boas relações com todos os países. Trabalharemos para avançar na implementação dos acordos do Mercosul com Egito, Israel e Palestina, bem como para explorar a possibilidade de novas frentes negociadoras. Buscaremos parcerias diversificadas, envolvendo produtos de maior valor agregado, investimentos e a ampliação do intercâmbio em tecnologia e inovação.


Com relação a Israel e Palestina, dois países amigos do Brasil, retornaremos à posição tradicional e equilibrada mantida há mais de sete décadas, apoiando a solução de dois Estados plenamente viáveis, coexistindo lado a lado em segurança, e com fronteiras internacionalmente reconhecidas. Nossa bússola nesse tema voltará a ser, como sempre foi, o direito internacional.

De extrema importância será desenhar e executar uma estratégia ambiciosa para a Ásia-Pacífico, a região mais dinâmica do mundo, e, em particular, para a China, Índia e Japão, além do conjunto da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN). Buscaremos novas áreas de cooperação em temas de interesse do Brasil, como mudança do clima; proteção do meio ambiente; ciência, tecnologia e inovação; além de ampliar e diversificar o comércio e atrair mais investimentos.

As relações com países europeus serão retomadas em novas bases.

Aprofundaremos a parceria estratégica com a União Europeia e cooperaremos em temas de interesse mútuo, como a dupla transição climática e digital, a inclusão social e a igualdade de gênero. Valorizaremos os ideais democráticos de parte a parte. Nos interessa um acordo MERCOSUL-União Europeia equilibrado e com ganhos reais para a economia brasileira, tanto em comércio como em investimentos, e evitando que o meio ambiente, tema muito caro ao Brasil, seja utilizado como pretexto para o protecionismo.

Com os Estados Unidos queremos relações em pé de igualdade, baseadas em valores e interesses comuns, sem qualquer tipo de preconceito sobre temas e assuntos, e isentas de alinhamentos automáticos. Desejamos dinamizar nosso relacionamento econômico e atrair investimentos, bem como continuar a fortalecer os laços humanos, culturais e educacionais que unem as duas sociedades. Trataremos de maneira madura eventuais diferenças, naturais em uma relação com essa importância e densidade.

Mais de 4 milhões de brasileiros vivem no exterior e um número crescente viaja a turismo, negócios ou estudos a cada ano. A maior presença dos nossos nacionais em outros países aumenta a expectativa sobre a atuação da nossa área consular, que precisa estar pronta a garantir assistência às cidadãs e aos cidadãos brasileiros no exterior.

Para além da fundamental prestação de serviços e do auxílio em situações de emergência, a formulação da política consular também deve considerar ações de longo prazo para promover a proteção dos direitos essenciais, o bem-estar e a prosperidade das comunidades brasileiras fora do país.

Para viabilizar esse ambicioso programa de política externa, o Itamaraty precisa revigorar, modernizar e coordenar os instrumentos de que dispõe. O primeiro deles, e mais valioso, é a relação com seu corpo de servidores, cujo empenho merece todo o nosso reconhecimento. Nenhuma política externa efetiva é possível sem um Serviço Exterior valorizado e motivado.

Temos a consciência de que, para responder aos desafios do século XXI, o Itamaraty precisa modernizar constantemente sua gestão e estimular a formação de servidores com capacidade técnica e de liderança, que, de um lado, aprendam e se inspirem com o passado da instituição, e, de outro, construam seu presente com olhos no futuro.

A condição para isso é proteger as prerrogativas constitucionais do Itamaraty, valorizando aqueles que são os três mais importantes atributos das carreiras do Serviço Exterior: a experiência, que deve refletir-se na hierarquia; a memória, uma das nossas fontes de sabedoria numa área em que a história e os antecedentes têm tanta importância; e a qualidade do nosso trabalho.

Essa excelência deve ser compreendida não apenas como um dado, mas sobretudo como objetivo a ser perseguido diligente e permanentemente. Por isso, investiremos na formação e treinamento contínuo dos servidores. A grade curricular dos cursos oferecidos pelo ministério, inclusive pelo Instituto Rio Branco, será examinada à luz dos desafios contemporâneos.

Quero dar uma palavra especial aos jovens diplomatas, que são, ademais do futuro, também o presente vivo da instituição, e que devem ter seus talentos aproveitados desde cedo, estimulando o exercício da criatividade e da inovação a serviço dos princípios e dos objetivos da política externa.

Reconhecemos que os diplomatas ingressados na carreira nos últimos anos viram reduzidas suas perspectivas de poderem vir a assumir posições de responsabilidade condizentes com sua formação, talento e dedicação. Será necessário buscar soluções para um fluxo progressivo e previsível e, ao mesmo tempo, garantir lotação adequada de postos C e D e, sobretudo, consulares.

Seremos incansáveis no combate a todo tipo de assédio, discriminação e abusos da função e prerrogativas em nosso Ministério, assegurando independência no tratamento disciplinar.

A Ouvidoria e a Corregedoria do Serviço Exterior passarão a responder diretamente à Secretaria-Geral das Relações Exteriores. Será publicado Guia de Conduta do Servidor Exterior Brasileiro, bem como fortalecida a Comissão de Prevenção e Enfrentamento do Assédio Moral, Sexual e da Discriminação.

Determinarei a recriação de canais de diálogo para que todas as categorias de servidores possam expressar anseios e formular sugestões tanto na área administrativa quanto em temas substantivos.

A sub-representação crônica de pessoas negras e mulheres distancia o perfil da diplomacia brasileira da sociedade que representa. Para reverter progressivamente esse quadro, instruirei a Secretaria de Estado a elaborar uma política de diversidade e inclusão no Itamaraty. Seus parâmetros serão a excelência do serviço exterior, o estudo de melhores práticas sobre o tema, e a institucionalização do diálogo com grupos de servidores interessados.

Buscaremos recrutar mais mulheres, negros, indígenas e pessoas de diversas regiões do Brasil para o Serviço Exterior, em particular para a carreira de diplomata. Ampliaremos sua presença em cargos de liderança e trabalharemos para superar barreiras à igualdade de oportunidades na ascensão funcional. Aperfeiçoaremos o programa de bolsas de ação afirmativa para negros e reativaremos o Comitê para a Promoção dos Direitos das Pessoas com Deficiência.

O diálogo interno deverá ser complementado por um diálogo estruturado e renovado com outros órgãos de governo, com a sociedade civil, e com a academia. Essa reabertura contribuirá para arejar a reflexão realizada no Itamaraty e dar sentido mais estratégico ao nosso planejamento diplomático.

Uma diplomacia pública ágil e consistente permitirá traduzir de modo mais eficiente, em um novo e complexo espaço informacional, os fundamentos das posições internacionais do Brasil, bem como transmitir de maneira clara os ganhos que uma chancelaria atuante e bem equipada assegura ao país.

Finalmente, a nova estrutura do ministério refletirá as prioridades da política externa, conferindo o devido relevo a temas como mudança do clima, tecnologia, integração regional, África, atenção às comunidades brasileiras no exterior, diversidade e participação social, entre outros.

Essa é a real dimensão do enorme trabalho de reconstrução que nos aguarda, depois de um retrocesso sem precedentes na nossa política externa. Estamos prontos a encará-la de frente e com confiança.

Tranquilizam-me a qualidade da nossa força de trabalho, a autoridade, a experiência, a sabedoria e a ampla visão do mundo e do Brasil que o Itamaraty e cada um de seus integrantes têm.

E alegra-me poder contar com o auxílio, na qualidade de Secretária-Geral do Itamaraty, da Embaixadora Maria Laura da Rocha nesta tarefa. Diplomata completa, de longa e variada carreira e impecáveis credenciais, ela possui vasta experiência na Secretaria de Estado, na Esplanada dos Ministérios, em postos bilaterais e multilaterais no exterior.

Após 104 anos do ingresso de Maria José de Castro Rebello, primeira diplomata e funcionária pública concursada do Brasil, uma mulher chega à mais alta função da carreira diplomática, a de Secretária-Geral do Serviço Exterior Brasileiro. Marco histórico e simbólico, a assunção da Embaixadora Maria Laura da Rocha ao posto de Secretária-Geral transmite duas mensagens. Uma de reconhecimento da trajetória das mulheres na diplomacia brasileira ao longo desses mais de cem anos. Outra de inspiração para jovens diplomatas, assim como para inúmeras meninas que sonham com a carreira: ao verem a si mesmas no rosto de embaixadoras em papel de liderança, ganha concretude sua aspiração legítima de protagonizar o presente e o futuro de nossa diplomacia.

Quero convidar a todos, dentro e fora do Itamaraty, a unir-se em torno desse grande projeto de política externa do Presidente Lula, que há de trazer o Brasil de volta a um intenso protagonismo internacional, para que todos os brasileiros voltem a orgulhar-se do seu País e a ver o mundo como um prolongamento das suas vidas, das suas lutas, dos seus valores e dos seus ideais e realizações.

Discurso de posse do embaixador Mauro Vieira no cargo de ministro das Relações Exteriores, em 2 de janeiro de 2023.