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quarta-feira, 30 de agosto de 2023

O tamanho da crise econômica da China - Paul Krugman (NYT, OESP)

O Brasil seria mais impactado por uma crise chinesa do que os EUA (pouco) ou o Japão e a Alemanha, que vendem muito para a China. Ou seja, o Brasil é um perdedor se a China entrar em recessão. 

O tamanho da crise econômica da China
Paul Krugman

O Estado de S. Paulo | Internacional
30 de agosto de 2023
Paul Krugman 
É colunista e ganhador do prêmio Nobel de Economia de 2008
The New York Times

Graças à baixa exposição da economia dos EUA, é difícil que problemas chineses se tornem globais

O efeito da crise seria maior em países que vendem mais para a China, como Alemanha e Japão

A s agruras econômicas dos anos pós-pandêmicos têm ocasionado intensos debates intelectuais e sobre políticas. Algo com que quase todos concordam, porém, é que a crise póscovid se assemelha pouco à crise financeira de 2008. Mas a China – segunda maior economia do planeta – parece balançar à beira de uma crise muito parecida.

Eu não confio no meu próprio entendimento sobre a China para julgar se o país vive seu momento Minsky, o ponto em que todos de repente se dão conta de que uma dívida insustentável é, de fato, insustentável. E, de fato, duvido que alguém ? incluindo as autoridades chinesas ? saiba responder a essa questão.

Mas acho que somos capazes de responder a uma pergunta mais condicional: se a China realmente passa por uma crise em estilo 2008, ela transbordará para o restante do mundo? E a resposta é clara: não. Por maior que seja a economia chinesa, os EUA estão pouco expostos aos problemas chineses. Antes de chegar aí, contudo, falemos sobre por que a China de 2023 se assemelha às economias americana e europeia de 2008.

BOLHA. A crise de 2008 foi ocasionada pelo estouro de uma bolha imobiliária transatlântica. Os efeitos foram amplificados por perturbações financeiras, especialmente o colapso dos ditos "shadow banks" – instituições que agiam clandestinamente como bancos, criando riscos de uma corrida bancária, mas prescindindo de regulamentações e de redes de segurança.

E agora chega a China, com um setor imobiliário ainda mais inchado que o dos países ocidentais em 2008. A China também tem um atribulado setor de "shadow banking", além de problemas peculiares, como dívidas enormes de governos locais.

A boa notícia é que a China não é a Argentina ou a Grécia, que deviam quantias imensas a credores estrangeiros. A dívida em questão aqui é de dinheiro que a China deve para si mesma. E deveria ser possível, em princípio, para o governo nacional resolver a crise por meio de alguma combinação entre resgates de devedores e abatimentos para credores.

Mas o governo da China tem competência para gerir o tipo de reestruturação financeira? As autoridades chinesas têm determinação ou clareza intelectual para fazer o que é necessário? Eu me preocupo especialmente com a segunda questão.

A China precisa substituir o investimento imobiliário insustentável por maior demanda de consumo. Mas alguns relatos sugerem que autoridades chinesas mais graduadas continuam suspeitas em relação a gastos de consumo "supérfluos" e resistem à ideia de "dar poder para os indivíduos tomarem mais decisões a respeito de como gastar seu dinheiro".

E não é nada tranquilizador o fato de as autoridades chinesas estarem respondendo à possível crise pressionando os bancos para emprestar mais, basicamente continuando a política que levou a China à situação em que ela se encontra.

EXPOSIÇÃO. Portanto, a China poderá entrar em crise. Se entrar, como isso afetará os EUA? A resposta, até onde eu consigo perceber, é que a exposição dos americanos a uma possível crise chinesa é surpreendentemente pequena.

Quanto os EUA têm investido na China? O investimento direto é de US$ 215 bilhões. Investimentos em carteira – ações e obrigações –, pouco mais de US$ 300 bilhões. Então, estamos falando de um total de US$ 515 bilhões.

Este número pode parecer grande, mas, para uma economia enorme, não é. Considerem uma comparação. Neste momento, há muitas preocupações a respeito do setor imobiliário comercial dos EUA, especialmente em relação aos prédios de escritórios ? que provavelmente encaram uma redução permanente na demanda em virtude do aumento do trabalho remoto. Os prédios de escritórios dos EUA valem hoje US$ 2,6 trilhões, aproximadamente cinco vezes mais que o nosso investimento total na China.

Por que uma economia tão grande atraiu tão pouco investimento dos EUA? Basicamente, porque, dadas as arbitrariedades das políticas chinesas, muitos possíveis investidores temem a possibilidade de a China se tornar uma armadilha: você consegue entrar, mas não consegue sair.

Mas o que dizer da China enquanto mercado? A China é uma importante jogadora no comércio mundial, mas não compra muito dos EUA – apenas US$ 150 bilhões, em 2022, menos de 1% do nosso PIB. Portanto, uma crise não surtiria muito efeito direto na demanda por produtos americanos.

O efeito seria maior em países que vendem mais para a China, como Alemanha e Japão, e algo poderia ricochetear nos EUA por meio das vendas a esses países. Mas o efeito geral ainda seria pequeno.

DIFERENÇAS
Uma crise poderia até surtir um pequeno efeito positivo nos EUA, porque reduziria a demanda por matérias-primas, especialmente petróleo, o que reduziria a inflação. Nada disso significa que devamos aplaudir a possibilidade de uma recessão chinesa ou tripudiar sobre os problemas de outro país.

Mesmo que por razões puramente egoístas, devemos nos preocupar com o que o regime chinês poderá fazer para distrair a atenção de seus cidadãos dos problemas domésticos. Mas, em termos econômicos, parece que estamos diante de uma possível crise interna na China, não de um evento global em estilo 2008. 

TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSS


terça-feira, 29 de agosto de 2023

Uma família de mascates ou de larápios? Bolsojoias, Micheques e outras coisas - Monica Gugliano (OESP)

 Uma família de mascates ou de larápios? (PRA)


Vêm aí novas e fortes emoções para quem acompanha os capítulos do seriado das joias do ex-presidente Jair Bolsonaro e de sua cônjuge Michelle. 

Monica Gugliano
O Estado de S. Paulo, 29/08/2023

    Até o fim do mês de setembro, o Tribunal de Contas da União (TCU) deve ter em mãos uma relação completa de todos os presentes que ele recebeu nas viagens em quatro anos de governo, e que até agora não foram declarados publicamente e se desconhece o paradeiro deles. 
    O levantamento está quase terminado e deverá trazer novas e contundentes provas do hábito presidencial de guardar para si mesmo objetos de alto valor, alguns dos quais acabaram sendo revendidos e recomprados em estranhíssimas transações levadas a cabo em Miami. E o TCU ainda desconhece o total, mas cresce a suposição de que há muitos mais relógios e “lembrancinhas” valiosas voando por aí. 
    É que, como se sabe, as comitivas que acompanhavam Bolsonaro também eram presenteadas. Certamente com menos brilhantes, mas não com grifes menos valorizadas, como Cartier e Piaget. 
    Até o final do mandato de Bolsonaro, apenas três ministros haviam devolvido seus mimos: Onyx Lorenzoni (que passou pela Casa Civil e pelo ministério do Trabalho); general Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional – GSI) e o diplomata Carlos França, que foi ministro das Relações Exteriores. A devolução envolveu uma história peculiar. Na prática, segundo fontes ouvidas pelo Estadão, a ideia de entregar os relógios para a Comissão de Ética teria partido dos três ministros presenteados. 

    Mas, na verdade, também de acordo com assessores que participaram da operação, eles queriam que um diplomata do Ministério das Relações Exteriores carregasse em sua mala os objetos e os levasse para Brasília, pois não havia intenção de devolvê-los. O funcionário do Itamaraty, uma das carreiras mais tradicionais do serviço público brasileiro, achou que não era conveniente ser o portador da carga e se recusou a trazê-los. Já de volta ao Brasil, consultou, por sua própria conta e risco, a Comissão no Palácio do Planalto. Foi informado que ninguém estava autorizado a manter o relógio no pulso, devolveu o seu e avisou os outros três ministros. 
    Na semana passada, o ex-presidente anunciou, em tom de bravata, que buscaria as joias e relógios que estão em posse do governo federal porque lhe pertenciam. Segundo fontes que acompanham o caso, não há nada de novo em relação às joias e o que Bolsonaro estaria tentando fazer seria mobilizar seus seguidores. Esses mesmos interlocutores do Estadão observaram que tudo não passa de uma jogada política, talvez para criar contradições que lhe permitam levar todo processo para a primeira instância. 
    O problema é que, por mais que o ex-presidente queira reaver os presentes ou procure justificativas para isso, é de 2016 o decreto 4.344/2002 com a determinação para que, a exceção dos itens de natureza personalíssima ou de consumo próprio – como finas caixas de tâmaras que a comitiva bolsonarista trouxe de países árabes – sejam incorporados ao patrimônio da União. 
    Nessa época, os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff devolveram objetos que estavam com eles. Da mesma forma, o acórdão 443/2023, relatado pelo ministro Augusto Nardes, determinou ao ex-presidente da República Jair Messias Bolsonaro que, “nos termos do item 3, inciso, III, da Resolução 3, de 23 de novembro de 2000, da Comissão de Ética Pública, entregue os itens em seu poder oriundos dos presentes recebidos na visita da comitiva presidencial à Arábia Saudita e também as armas recebidas dos Emirados Árabes Unidos à Secretaria-Geral da Presidência da República no prazo de 5 (cinco) dias úteis, devendo ser juntado, de imediato, a este processo o correspondente comprovante da entrega”. 
    Como já se sabe, foi aí que a coisa complicou. Boa parte dos objetos já havia sido vendida em Miami numa operação que envolveu o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, tenente-coronel Mauro César Cid – que está preso – e seu pai, o general de Exército na reserva, Mauro Lourena Cid. Coube ao advogado do ex-presidente Frederick Wassef – que conforme o Estadão acumula dívidas no total de R$ 60 mil – recomprar um dos relógios Rolex, pagando por ele quase R$ 300 mil. Ele ainda nem explicou direito a razão de tamanho altruísmo. 
    Pelo andar das investigações e a quantidade de “surpresinhas” que aparecem, a história das joias ainda está longe de acabar. 

https://www.estadao.com.br/politica/monica-gugliano/lista-de-presentes-preciosos-para-bolsonaro-e-michelle-e-maior-e-vem-surpresa-por-ai/

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Venezuelanos fogem desesperados da narrativa lulista (OESP)

 1.100 venezuelanos na fonteira da Colômbia com o Panamá, na tentativa de chegar à fronteira dos Estados Unidos, onde vão ser parados na frinteira mexicana, e dai a um fututo incerto, talvez a morte, numa travessia aleatória, pelo rio ou por terra. Mas deve ser apenas uma narrativa, segundo Lula, ou uma simples foto, segundo seu assessor internacional, o que não deve provar nada, sobretudo que a Venezuela NÃO é uma ditadura miserável.




quinta-feira, 20 de julho de 2023

Conflito na Ucrânia revive batalhas da Segunda Guerra, 80 anos depois - Andrew E, Kramer (NYT, OESP)

 Conflito na Ucrânia revive batalhas da Segunda Guerra, 80 anos depois 

Andrew E. Kramer
THE NEW YORK TIMES, 19/07/2023

 Em meio a rochas enormes, pneus usados e restos de lata-velha, Oleksandr Shkalikov aventurou-se no leito seco do vasto reservatório. Um lembrete perturbador, de batalhas sucedidas há muito neste mesmo local no sul da Ucrânia, jazia na paisagem desolada: uma suástica esculpida em pedra apareceu no fundo do lago depois que as águas baixaram. O ano de “1942′', indicando o momento do entalhe, estava escrito ao lado.

“É a história se repetindo”, afirmou o piloto de tanques Shkalikov, que estava de licença do Exército ucraniano, a respeito do entalhe da época da Segunda Guerra. Ele notou a coincidência: a suástica ficou visível em razão de um ato de guerra mais recente; a explosão da Represa de Kakhovka, em junho, drenou um reservatório do tamanho do Grande Lago Salgado de Utah.


“Nós estamos travando esta guerra no mesmo local e com as mesmas armas” da Segunda Guerra, afirmou ele, evocando a artilharia pesada e os tanques que ainda forjam o curso dos combates.

A Segunda Guerra tem constituído um campo de batalha ideológico no atual conflito na Ucrânia, com a Rússia acusando falsamente o governo em Kiev de neofascismo e citando essa mentira como justificativa para sua invasão. O histórico de guerra no território ucraniano também brota no campo de batalha — e não apenas na forma de artefatos encontrados no solo, mas também nas lições que a Ucrânia aprendeu com uma guerra travada muito tempo atrás.

Um monumento em homenagem aos soldados que morreram na Segunda Guerra Mundial perto da linha de frente na região de Zaporizhzhia, Ucrânia, em 6 de julho de 2023.
Um monumento em homenagem aos soldados que morreram na Segunda Guerra Mundial perto da linha de frente na região de Zaporizhzhia, Ucrânia, em 6 de julho de 2023.  Foto: David Guttenfelder / NYT

Contornos do terreno e leitos de rios com frequência direcionam os Exércitos de hoje para os mesmos locais em que algumas das mais ferozes batalhas da Segunda Guerra ocorreram quando tropas nazistas e soviéticas varreram vales e vastidões de planícies abertas na Ucrânia.

De fato, os locais de algumas batalhas cruciais da guerra atual coincidiram tanto com áreas de batalhas da Segunda Guerra, afirma o Exército da Ucrânia, que seus soldados chegaram a buscar abrigo em bunkers de concreto construídos 80 anos atrás no entorno de Kiev. E descobriram ossos de soldados alemães e cápsulas de projéteis usados pelos nazistas enterrados quando cavaram trincheiras no sul do país.

O começo da Segunda Guerra foi em 1939 em território que pertence atualmente à Ucrânia, quando a União Soviética invadiu uma região então controlada pela Polônia, no oeste ucraniano, num momento em que os soviéticos e a Alemanha nazista compunham uma aliança. Quando seu pacto se rompeu, em 1941, os alemães atacaram a União Soviética de oeste para leste através da Ucrânia. A maré da guerra mudou em 1943, quando a Alemanha foi derrotada na Batalha de Stalingrado; e o Exército Vermelho atacou, então, os nazistas de leste para oeste, novamente atravessando a Ucrânia.

Um dos primeiros sucessos dos alemães no início da guerra ocorreu na Batalha do Mar de Azov, em 1941, quando as tropas nazistas avançaram de Zaporizhzhia para Melitopol. Ao longo de três semanas, as forças alemãs atravessaram esse terreno para se posicionar para atacar a Crimeia e cercar os soldados do Exército Vermelho na região de Kherson.

A Ucrânia ecoa atualmente aquela ofensiva da Segunda Guerra, combatendo em linhas a sudeste de Zaporizhzhia num trajeto que os militares ucranianos chamam de “direção Melitopol”. O objetivo estratégico é o mesmo de oito décadas atrás: isolar os soldados inimigos na região de Kherson e ameaçar a Crimeia; mas as tropas ucranianas estão se movimentando muito mais vagarosamente, ganhando poucos quilômetros em mais de um mês de operações.

“Paralelos históricos, infelizmente ou felizmente, não param de emergir”, afirmou conselheiro do generalato ucraniano Vasil Pavlov, que estuda em profundidade as semelhanças entre as duas guerras. Estrategicamente, afirmou ele, os generais da Ucrânia tiveram como exemplo direto a história da Segunda Guerra ao definir a defesa da capital, Kiev, no ano passado.

Dos primeiros dias da guerra atual, o Exército russo avançou por Belarus na direção das várzeas do Rio Irpin — mas logo as forças russas souberam que os ucranianos tinham explodido uma represa e inundado uma vasta área de planícies, bloqueando seu avanço. Foi uma reprise de um truque soviético de 1941, quando Moscou explodiu uma represa no Rio Irpin para bloquear um ataque de tanques alemão, afirmou Pavlov.

Uma granada da época da Segunda Guerra Mundial no rio Dnipro foi revelada quando as águas baixaram após a destruição da barragem de Kakhovka, na região de Zaporizhzhia, Ucrânia, em 11 de julho de 2023.
Uma granada da época da Segunda Guerra Mundial no rio Dnipro foi revelada quando as águas baixaram após a destruição da barragem de Kakhovka, na região de Zaporizhzhia, Ucrânia, em 11 de julho de 2023.  Foto: David Guttenfelder / NYT
“Os generais sempre se preparam para combater a guerra anterior”, afirmou ele. “Mas os generais russos nem isso fizeram.” As forças alemãs conseguiram capturar Kiev em 1941; os russos combateram um mês nos subúrbios da capital na primavera (Hemisfério Norte) do ano passado e bateram em retirada.

Quando a guerra atual mudou de direção, de Kiev para o leste, suas batalhas percorreram os mesmos caminhos dos combates da Segunda Guerra. Naquela época, assim como hoje, o curso sinuoso do Rio Siverski Donets tornou-se linha de frente — com suas margens elevadas e várzeas lamacentas servindo de barreira natural enquanto Exércitos rivais lutaram por cidades e vilarejos ao longo de sua extensão.

Na Segunda Guerra, o rio formou uma porção da chamada Linha Mius, uma posição defensiva que os nazistas construíram para conter contra-ataques soviéticos após a Batalha de Stalingrado.

Na guerra atual, várias cidades e vilarejos ao longo do Siverski Donets entraram em disputa. As forças ucranianas usaram as ribanceiras altas do rio e suas planícies alagadiças, por exemplo, tentando defender a cidade de Lisichansk, o que não conseguiram, e para evitar que os russos atravessassem nas proximidades de Bilohorivka.

Ambas as guerras deixaram cidades e vilarejos às margens de rios em ruínas. Os atuais combates também danificaram com estilhaços monumentos erguidos para marcar batalhas da Segunda Guerra.

O vilarejo de Starii Saltiv, na região de Kharkiv, foi castigado por ambas as guerras; e acabou gravemente destruído nas duas ocasiões.

Lidiia Pechenizka, de 92 anos, que viveu sua vida inteira no vilarejo, recordou que em ambos os conflitos os combates foram definidos principalmente por projéteis de artilharia disparados do outro lado do rio contra soldados abrigados no vilarejo. Para os civis, as experiências foram similares: esconder-se em porões de casas e adegas subterrâneas. “É horrível”, disse Pechenizka em entrevista nesta primavera.

A contraofensiva ucraniana ao sul da cidade de Zaporizhzhia é, segundo Pavlov, “uma analogia direta” da ofensiva alemã de setembro de 1941. Os objetivos foram similares: atravessar as planícies, cortar linhas de abastecimento das tropas russas na margem oriental do Rio Dnipro e alcançar posição para ameaçar o istmo da Península da Crimeia.

Mas os paralelos não passam daí.

Na Segunda Guerra, o Exército Vermelho não teve tempo de fortificar linhas defensivas nas planícies; os alemães avançaram rapidamente até o Mar de Azov, cercando dezenas de milhares de soldados soviéticos em um bolsão no norte.

Na guerra atual, os russos tiveram meses para se entrincheirar. Como resultado, a contraofensiva da Ucrânia empacou diante das formidáveis fortificações, que contam com campos minados, redes de trincheiras e bunkers.

Os combates de hoje também se distinguem de outra maneira. Os Exércitos nazista e soviético se enfrentaram na Ucrânia movendo-se perpendicularmente ao fluxo norte-sul dos principais rios. Em sua contraofensiva, Kiev está movendo suas forças principalmente em paralelo aos cursos dos rios, o que lhes proporciona uma vantagem militar: suas tropas não têm de cruzar águas com tanta frequência.

Um soldado ucraniano em cima de um tanque russo abandonado no rio Siversky Donets, em Bilohorivka, Ucrânia, em 24 de maio de 2022. (Ivor Prickett/The New York Times)
Um soldado ucraniano em cima de um tanque russo abandonado no rio Siversky Donets, em Bilohorivka, Ucrânia, em 24 de maio de 2022. (Ivor Prickett/The New York Times) Foto: Ivor Prickett / NYT

No inverno de 1943-44, a União Soviética perdeu torrentes de soldados cruzando o Rio Dnipro de leste a oeste. Alguns corpos foram encontrados décadas depois pela ONG ucraniana Memória e Glória, que localiza cadáveres de ambos os lados para lhes oferecer sepultamentos dignos. Desde sua fundação, em 2007, o grupo afirma ter encontrado na Ucrânia mais de 500 corpos de soldados que lutaram na Segunda Guerra.

No ano passado, membros da ONG se juntaram ao Exército ucraniano para vasculhar campos de batalha em busca de soldados desaparecidos em combate e encontraram mais de 200 corpos de militares mortos na guerra atual — com frequência nos mesmos locais que cadáveres da Segunda Guerra tinham sido encontrados, afirmou o diretor da entidade, Leonid Ignatiev.

“Quando nós cavamos” à procura de corpos de soldados mortos recentemente, afirmou ele, “nós encontramos trincheiras da Segunda Guerra”.

Próximo à cidade de Novi Kamenki, na região de Kherson, o grupo procurava recentemente um soldado ucraniano desaparecido em combate, mas acabou encontrando a ossada de um soldado alemão, afirmou Ignatiev. Os ossos foram enviados para sepultamento em um cemitério destinado a alemães mortos em combate na Ucrânia.

“Os terrenos elevados e as posições para instalação de defesas são os mesmos”, afirmou Ignatiev.

Zaporizhzhia, uma grande cidade industrial à margem do Reservatório de Kakhovka, que se esvazia, foi ocupada por forças nazistas na Segunda Guerra é uma das atuais linhas de frente, onde sirenes de alerta para ataques aéreos soam várias vezes ao dia e mísseis russos explodem ocasionalmente.

Mas quando a água retrocedeu após o rompimento da represa em relação às margens originais, diante da cidade, foram projéteis não detonados que representaram a pior ameaça. O serviço de emergência da Ucrânia afirmou que os bancos de areia e as novas ilhas que emergiram no leito do reservatório “se revelaram surpreendentemente abarrotados de artefatos explosivos da  Segunda Guerra”, informou a agência.

Shkalikov, o piloto de tanques, que vive a uma curta caminhada de distância do leito exposto da represa, combateu no início da contraofensiva ucraniana em campos a sudeste da cidade. Depois que seu tanque atingiu uma mina, ele foi dispensado da unidade, voltou para casa e começou a explorar o fundo do lago seco. Encontrar a suástica emergindo da água, afirmou ele, “não me surpreendeu absolutamente”. Décadas separam as guerras, mas “a paisagem natural não mudou”, afirmou ele. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

sexta-feira, 14 de julho de 2023

Como lidar com Vladimir Putin - Nicholas Kristof (OESP)

 Como lidar com Vladimir Putin, segundo especialistas no assunto 

Nicholas Kristof
O Estado de S. Paulo, 14/07/2023

VILNA, Lituânia — Muitos americanos e europeus trocam lisonjas por perceber a guerra na Ucrânia através de um prisma falso. Com bastante frequência nós pensamos que estamos nos sacrificando pelos ucranianos, trocamos tapinhas nas costas por fornecer armas caras e pagar contas de gás mais altas para ajudar os ucranianos a lutar por sua liberdade — e nós desejamos que eles alcancem seu objetivo.

Mas na realidade, o que fica claro aqui nos Países Bálticos é que ocorre o inverso: os ucranianos que estão se sacrificando por nós; são eles que nos fazem um favor ao desgastar o Exército russo e reduzir o risco de uma guerra na Europa que consumiria vidas de nossos soldados.

“Por meio do apoio à Ucrânia, estamos defendendo a nós mesmos”, afirmou Egils Levits, que concluiu este mês seu mandato como presidente da Letônia. Ele usou sua última entrevista antes de deixar a função para argumentar que o Ocidente deveria fornecer à Ucrânia mais armas para garantir que Kiev recupere todo o território ucraniano, incluindo a Crimeia, para que a agressão de Vladimir Putin seja absolutamente descreditada.

A cúpula da Otan em Vilna, esta semana, movimentou-se para adicionar a Suécia ao jogo, manteve todos os membros unidos e, em geral, foi bem. A única perdedora é a Rússia. Mas o teste verdadeiro não é conseguir oferecer palavras lustrosas diante das câmeras, mas se os países ocidentais irão aumentar ou não as transferências de armas para a Ucrânia e melhorar a perspectiva de que a guerra possa realmente se encerrar.

“Todos nós temos de fazer mais”, disse-me a primeira-ministra da Estônia, Kaja Kallas. Ela está correta, mas eu não tenho certeza se todos no Ocidente compreendem isso. O presidente Joe Biden tem feito um ótimo trabalho em administrar a aliança — uma das razões que explica a cúpula ter ido tão bem — mas eu acredito que ele tem sido cauteloso e reativo demais no fornecimento de armas que a Ucrânia necessita, como mísseis precisos de longo alcance e caças de combate.

Considerando as duas décadas recentes, muitos na Alemanha e em toda a Europa Ocidental e EUA foram enganados com a ficção de que a Rússia pós-comunista seria um urso mais gentil. Em contraste, os Países Bálticos — Lituânia, Letônia e Estônia — foram os primeiros a expressar alertas a respeito de Putin, portanto nas preparações para a cúpula eu viajei aos três países para colher suas impressões sobre Ucrânia e Rússia.

Francamente, eles ainda pensam que nós somos algo ingênuos.

“Nós deveríamos dar mais apoio agora, para que a Ucrânia possa vencer”, insistiu Levits, alertando que seria um grande erro pôr fim à guerra com um pacto que dê à Rússia a Crimeia ou outras regiões ucranianas. “Isso é uma péssima ideia, porque provocaria a guerra seguinte”, afirmou ele. “A conclusão para Moscou seria clara: o Ocidente é fraco.”

Os Países Bálticos são lúcidos a respeito da Rússia em razão de sua história. Os soviéticos se apoderaram das três nações durante a 2.ª Guerra e as governaram com pulso de ferro até sua independência, em 1991. A mãe da primeira-ministra Kallas foi deportada para a Sibéria num vagão de gado.

Mas a Rússia nunca acertou as contas com esse passado, o que pode explicar por que 70% dos russos afirmaram em uma pesquisa de 2019 que aprovam Stálin — e por que eles afirmam hoje em pesquisas que aprovam Putin.

Se Putin terminar a guerra com uma fatia da Ucrânia, afirmou ela, ditadores receberão a mensagem de que agredir vale a pena, e “Ninguém mais poderá se sentir realmente seguro”.

Os Estados Bálticos são motivados por temer que, se a Ucrânia cair, eles poderão ser os próximos a ser derrubados. A Estônia contribuiu mais para o esforço de guerra ucraniano em relação ao próprio PIB do que qualquer outro país — fornecendo obuses e até saunas móveis (os estonianos adoram suas saunas). Kallas lamentou que outros países não tenham se esforçado mais para acelerar envios de armas para os ucranianos, em vez de optar por fornecer-lhes gradualmente os equipamentos.

“Às vezes eu penso que o desfecho poderia ter sido diferente se nós tivéssemos lhes dado já em março do ano passado toda a ajuda militar que estamos lhes dando agora”, refletiu Kallas. “Porque a Rússia poderia ter percebido mais cedo que estava cometendo um erro.”

Uma razão para Biden demorar para enviar mísseis de longo alcance e caças de combate para a Ucrânia é a preocupação a respeito de motivar Putin a usar armas nucleares táticas. Levits e Kallas rejeitam esse argumento e, dado seu histórico recente em estar corretos, vale a pena lhes dar ouvidos.

“A Rússia ou Putin são motivados pela fraqueza, não pela força”, afirmou Levits, notando que, mesmo que não saibamos ainda da história completa, ao que parece o chefão mercenário Ievgeni Prigozhin cruzou todos os limites e desafiou diretamente Moscou — e a resposta de Putin foi negociação, conciliação e desescalada.

Kallas, da mesma forma, quer ver o Ocidente fornecer mais armamentos — incluindo bombas de fragmentação — para ajudar a Ucrânia a vencer.

“Se dermos sinais de que nos ameaçar com uma bomba nuclear realmente lhe dará o que ele quer, todos os ditadores vão querer uma”, acrescentou ela. “Isso faria despertar um mundo muito mais perigoso.”

Nós estamos certos em celebrar uma cúpula da Otan bem-sucedida. Mas especialmente se a Ucrânia tiver dificuldades para recuperar grandes fatias de território nesta contraofensiva haverá indivíduos irresponsáveis resmungando nas capitais ocidentais a respeito do preço que nós estamos pagando e dos favores que nós estamos fazendo pela Ucrânia. Qualquer um tentado a pensar desta maneira deveria escutar os líderes bálticos, porque eles aprenderam do modo mais difícil como lidar com ursos indomáveis. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

quinta-feira, 13 de julho de 2023

Lula, que já implodiu a Alca, ameaça agora implodir o acordo Mercosul-UE - Beatriz Bulla (OESP)

 Insistência do Brasil em debater compras públicas ameaça acordo Brasil- UE

Insistência do Brasil em debater compras públicas ameaça acordo Mercosul-UE, diz ala do governo

Setores apontam que texto encabeçado por Casa Civil e Itamaraty traz itens tecnicamente desnecessários, que remetem a outro texto de dez anos atrás e que podem atrapalhar negociação
Por Beatriz Bulla
O Estado de S. Paulo, 12/07/2023

A contraproposta que Brasília pretende fazer à União Europeia, se avalizada pelos demais parceiros do Mercosul, para avançar no acordo comercial entre os dois blocos, pode ter efeito contrário e travar as negociações, segundo uma ala do próprio governo. O texto deve ser apresentado ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva por integrantes do Itamaraty e da Casa Civil ainda nesta semana. Com a permissão de Lula sobre a nova proposta, o documento será compartilhado com Argentina, Uruguai e Paraguai para, então, ser levado aos europeus.

O texto que foi elaborado e que parte do governo diz ser fruto de um consenso entre todos os ministérios envolvidos está longe de ter agradado a ala que se diz mais liberal na Esplanada. A insistência de ministros mais próximos a Lula em reabrir as discussões com os europeus sobre o capítulo relativo a compras governamentais que poderão ser feitas após o acordo UE-Mercosul coloca, de acordo com fontes insatisfeitas com as negociações, o acordo em risco.

O acordo União Europeia-Mercosul abarca uma série de temas, como bens, serviços, facilitação de comércio e compras governamentais. No capítulo relativo às compras do governo, a intenção do acordo UE-Mercosul é permitir competitividade de estrangeiros em contratações públicas e limitar aquelas feitas sem licitação. Assim, empresas europeias não poderiam ser discriminadas nos processos de licitação no Brasil, por exemplo, salvo em determinados casos. Essa disposição é alinhada com a lei de licitações de 2021, que prevê que estrangeiros devem poder participar das contratações.

Antes de assinar o acordo de 2019, o Brasil negociou com os europeus situações e áreas em que o governo poderia se isentar dessa obrigação assumida com os europeus e usar as compras governamentais para promover políticas públicas. Estatais, por exemplo, podem ter preferência na contratação pelo governo. Compras de pequenas e médias empresas, para incentivar empreendedorismo social, compras para o setor de defesa e compras que sejam consideradas estratégicas para a área de saúde já estão entre as exceções previstas.

O debate sobre reabrir a discussão a respeito do tema colocou, de um lado, os ministérios da Indústria e Comércio, Planejamento, Defesa e Agricultura, e, de outro, Casa Civil, Itamaraty, Saúde e Gestão. Interlocutores do primeiro grupo disseram, internamente, que parte das exceções pleiteadas pela Casa Civil para serem incluídas na contraproposta é tecnicamente desnecessária, remete a um texto de dez anos atrás e atrapalhará o processo de negociação com europeus, podendo inclusive inviabilizar uma conclusão rápida do acordo.

Um dos debates mais recentes girou em torno da possibilidade de incluir, no acordo, exceção para o governo contratar empresas nacionais para serviços de construção civil. O governo Lula tenta estimular o setor através de um novo PAC. Técnicos com conhecimento do texto já assinado em 2019, no entanto, ponderam que esse tipo de debate é infrutífero, pois o acordo não afetaria políticas do PAC por oito anos. O pedido de Lula para proteger pequenas e médias empresas, de acordo com os mesmos técnicos, também já faz parte do acordo e pode ser feito sem novas alterações ou pedidos adicionais.

De outro lado, no entanto, a ponderação feita no governo é a de que é preciso incluir no desenho final do acordo UE-Mercosul temas caros para a atual administração, como ampliar o espaço para o governo poder usar as compras públicas para induzir uma política nacional de industrialização em setores importantes, como o da saúde. O principal argumento, aqui, é o de que o cenário mundial mudou desde 2019, quando o texto foi fechado, para cá. Pandemia e guerra na Ucrânia fizeram os países repensarem suas cadeias de produção para torná-las mais próximas e menos dependentes de China e Índia, por exemplo, no tema da saúde.

O Estadão ouviu pessoas de cinco ministérios, que pediram para não ser identificadas.

Parte do setor industrial, que seria beneficiado com a maior flexibilização no capítulo sobre compras governamentais, no entanto, também não acha boa ideia estender a discussão. Em entrevista recente ao Estadão, o presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Robson Braga de Andrade, defende que o governo se empenhe em aprovar com celeridade o acordo, em vez de insistir em ampliar possibilidades de exceção para compras governamentais (um ponto que poderia beneficiar a indústria).

“O acordo já foi discutido por muitos e muitos anos, é o momento de virarmos essa página. Precisamos urgentemente desse acordo. A questão das compras governamentais, que envolve principalmente a micro e pequena empresa, tem formas de desenvolvermos no Brasil sem interferência com o que está no acordo Mercosul-UE. Precisamos avançar no acordo, é fundamental para a economia toda do País. Não temos mais tempo para ficar discutindo e gastar mais anos e anos”, defende Andrade.

A crítica principal que vem da ala considerada liberal é a de que argumentos técnicos foram desconsiderados no texto final e que a Casa Civil, ao lado do Itamaraty, acabou liderando esse debate sem participação ampla como havia sido prometido. Afirmam, também, que o Brasil já tem acordos de comércio com as cláusulas incluídas no UE-Mercosul, como o assinado com o Chile. A outra ala do governo, no entanto, considera que é importante que Lula deixe seu DNA no acordo, que foi assinado pela gestão passada, de Jair Bolsonaro.

O desconforto e a divisão de opiniões foram colocados às claras dentro do governo, embora, com o texto considerado fechado, haja agora uma tentativa de minimizar a cisão interna por parte do entorno do presidente.

Nesta quarta-feira, 12, Lula mostrou, mais uma vez, resistência às imposições da União Europeia e afirmou que o Brasil não irá abrir mão das compras governamentais no acordo. “Nós vamos ter que ter uma disputa”, disse.

O presidente quer que a contraproposta esteja pronta e seja enviada aos parceiros do Mercosul antes de embarcar, no final de semana, para Bruxelas, onde participará de encontro da Comunidade dos Estados da América Latina e Caribe (Celac) com a União Europeia. Ele não irá apresentar o documento aos europeus, mas quer indicar que o Brasil já fez a sua parte e aguardará o retorno dos parceiros regionais para dar andamento às tratativas. Na Europa, Lula também deve fazer comentários sobre parte das propostas brasileiras apresentadas para Uruguai, Paraguai e Argentina.

A expectativa de negociadores é que a rodada de tratativas com europeus aconteça entre agosto e setembro, já com o Brasil na presidência pro tempore do Mercosul.

O Ministério da Fazenda tem tentado colocar panos quentes na divisão. A despeito de, internamente, o ministro Fernando Haddad ter dado sinais de que é favorável a uma conclusão rápida do acordo, a pasta não tem encabeçado um movimento mais crítico às sugestões da Casa Civil.

A leitura de assessores de Haddad consultados pela reportagem do Estadão é a de que as condições políticas para assinatura do acordo de forma rápida não estão presentes — e não é por causa do Brasil, mas sim da Europa. Resistências públicas do governo francês ao acordo e a possibilidade de eleição de um governo de direita ou extrema direita na Espanha, no fim de julho, estão entre os desafios no cenário internacional.

O acordo de livre comércio entre Mercosul e UE foi firmado em junho de 2019, depois de duas décadas de negociação. A conclusão completa do texto e o começo do processo para sua implementação ficaram travadas nos últimos anos, pois os europeus resistiam em tratar do assunto com o governo Jair Bolsonaro, diante da piora nos índices de desmatamento na Amazônia. Agora, apesar do trabalho dos dois lados para concluir o acordo ainda neste ano, há negociações adicionais colocadas à mesa pelos europeus e pelo governo Lula.

Os sinais de boa vontade dos dois lados para tirar o acerto do papel foram dados no início deste ano, com o estabelecimento de um cronograma para encerrar até julho todas as pendências, um prazo que não será cumprido. Em março, no entanto, a União Europeia enviou ao Mercosul um protocolo adicional, com novas condicionantes na área ambiental.

O movimento foi considerado “desbalanceado” por Brasília, que discorda da ideia de ter um acordo adicional vinculante, do enfoque considerado punitivista e da abordagem sobre meio ambiente feita pela União Europeia. Do outro lado, Brasília quer aproveitar a negociação aberta para incluir a possibilidade de mais exceções para manter produtos nacionais nas compras governamentais, tema defendido publicamente por Lula.

Procurada, a Casa Civil não retornou contatos feitos pelo Estadão até a publicação desta reportagem. O Itamaraty informou que quem se pronuncia sobre o acordo é a Presidência da República./Com Sofia Aguiar e Bruno Luiz

terça-feira, 11 de julho de 2023

Defesa Nacional: desafios externos e internos - Rubens Barbosa (OESP)

 DEFESA NACIONAL: DESAFIOS EXTERNOS E INTERNOS


Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 11/07/2023


O cenário internacional vem passando por profundas transformações que terão impacto nos esforços brasileiros para alcançar objetivos relacionados ao seu desenvolvimento econômico e social e, também, à preservação de sua soberania e projeção externa. 

A geopolítica voltou a ocupar o centro das atenções das grandes potências. Os principais atores com capacidade militar e vontade para usá-la, como a OTAN, liderada pelos EUA, a Rússia e a China, encontram-se claramente em rota de colisão. Os EUA deixam cada vez mais claro a intenção de conter os avanços da China no cenário internacional, apesar de atitudes táticas de estabilizar as relações bilaterais e reduzir as tensões. A perspectiva de um conflito entre esses atores não deve ser descartada. A confrontação entre os EUA e a OTAN com a Rússia, por meio da guerra na Ucrânia dividiu o mundo. O Brasil, nas duas crises, definiu sua posição como de autonomia estratégica, de equidistância ativa entre os dois lados. Deve ser lembrado que os países ocidentais estão adotando uma posição muito proativa em questões de clima, inclusive no contexto da Defesa, como evidenciado por declaração da OTAN em sua última reunião na Espanha em 2022. O Brasil tem sido alvo da atenção desses países e reiteradamente criticado pela política ambiental e pela devastação da Amazônia.

Por outro lado, cabe apontar que uma nova era de operações bélicas com o uso de alta tecnologia já começou tornando obsoletos os sistemas de armas usados nos conflitos e os sistemas de defesa para a proteção das fronteiras. Se o Brasil não dispuser de capacidade tecnológica para utilizar meios robóticos e de inteligência artificial estará em grande desvantagem em seu poder de dissuasão, caso tenha de enfrentar qualquer ameaça para a defesa de seus interesses, seu território, sua extensão marítima ou seu espaço aéreo.

Em qualquer desses cenários, o Brasil necessitará de uma capacidade militar crível e muito superior à que hoje possui, para dissuadir possíveis ameaças e para aumentar sua projeção externa. As três áreas ressaltadas na END (cibernética, energia nuclear e espaço) deveriam merecer estímulos, como ocorre nos EUA e na OTAN, para que a produção nacional supere as vulnerabilidades cada vez maiores de nossos materiais bélicos e responda aos novos desafios da inteligência artificial. Nenhum país de grande porte, como o Brasil, pode prescindir de uma capacidade industrial, tecnológica e de inovação própria para manter FFAA modernas e capazes de enfrentar qualquer tipo de ameaças. O Brasil possui uma base industrial de defesa muito pequena e incapaz de atender às necessidades de suas FFAA. Quase todos os meios existentes, e/ou os seus principais componentes e tecnologias críticas, são fornecidos por países da OTAN. É necessário atentar para a qualidade dos investimentos em Defesa já que mais do que 3/4 dos gastos são com bens e serviços de origem estrangeira. É fundamental criar condições para aumentar o conteúdo nacional dos sistemas de Defesa de forma a potencializar a reindustrialização e a geração de empregos. Esta dependência de meios e tecnologias dos países da OTAN se constitui em enorme vulnerabilidade, especialmente no momento que estamos atravessando. Nesse contexto, parece claro que o Brasil necessita começar imediatamente um grande e continuado esforço para desenvolver, da forma mais autônoma possível, sua capacidade militar. É necessário estabelecer uma agenda positiva para a Defesa de curto, médio e longo prazo, que inclua a Defesa como uma das vertentes da reindustrialização do país. A agenda de curto prazo deveria incluir, entre outros aspectos, o fortalecimento da Base Industrial da Defesa por meio de sua crescente nacionalização, da atuação do BNDES e Banco do Brasil para o financiamento do comprador de produtos da BID e outorga de performance bonds e para a criação de empresas críticas de defesa.

Os acontecimentos político-militares recentes e as desconfianças criadas no mais alto nível do atual governo, é importante ressaltar, estão sendo contrabalançados pelo fato de   que, apesar das tentativas da presidência anterior e do envolvimento de militares da ativa em ações político-partidárias, as FFAA, como instituição, nos últimos quatro anos, reafirmaram seu profissionalismo e evitaram qualquer interferência que colocasse em risco a democracia.

Dentro desse contexto, torna-se urgente discutir dois temas: uma grande estratégia para o Brasil, uma estratégia de segurança nacional de médio e longo prazo, a exemplo dos documentos recentes da Alemanha, EUA e Reino Unido. Nesse contexto, deverão ser levadas em conta as atuais vulnerabilidades das FFAA e estimulada, no âmbito das políticas de reindustrialização, o fortalecimento da indústria de defesa. E, com base na nova atitude profissional das FFAA, examinar, de forma transparente, a normalização do relacionamento entre civis e militares com a definição de regras e práticas de um efetivo controle do executivo, legislativo e judiciário sobre os militares, como em muitos países.

Com a palavra a sociedade civil e o Congresso Nacional.

Rubens Barbosa, presidente do Centro de Estudos de Defesa e Segurança Nacional (CEDESEN)

 

quinta-feira, 29 de junho de 2023

Derrota de Putin na Ucrânia pode ter consequências inimagináveis - Thomas Friedman (NYT, OESP)

 Derrota de Putin na Ucrânia pode ter consequências inimagináveis 

Thomas Friedman, THE NEW YORK TIMES
O Estado de S. Paulo, 29/06/2023

Os acontecimentos recentes na Rússia se parecem com o trailer do próximo filme de James Bond: o ex-chefe, hacker e mercenário de Vladimir Putin, Ievgeni Prigozhin se rebela. Prigozhin, parecendo com um personagem saído diretamente de ‘Doctor No’, lidera um comboio de ex-detentos e mercenários em uma corrida excêntrica para tomar a capital russa, derrubando alguns helicópteros no caminho. Eles encontram tão pouca resistência que a internet está cheia de imagens de seus mercenários esperando pacientemente para comprar café pelo caminho, como se dissessem: ‘Ei, podem colocar uma tampa no café? Não quero sujar meu blindado.”

Ainda não está claro se o frio e calculista Putin dirigiu qualquer ameaça direta a seu velho amigo Prigozhin, mas o líder mercenário, sendo um velho laranja de Putin, claramente não estava assumindo riscos. E com razão. O sempre útil presidente de Belarus, Alexander Lukashenko, que abrigou Prigozhin, relatou que Putin compartilhou consigo o desejo de matar o mercenário e “esmagá-lo como um inseto.”

Como o sinistro Ernst Stavro Blofeld, o vilão dos filmes de James Bond que lidera o sindicato internacional do crime Spectre e sempre era visto acaraciando seu gatinho branco enquanto tramava algum ardil, Putin é quase sempre visto em sua longa mesa branca, com as visitas geralmente sentadas no lado oposto da peça, onde, é possível suspeitar, uma armadilha espera pronta para engolir qualquer um que saia da linha.

A minha reação inicial ao ver o drama se desenrolar na CNN foi questionar se tudo aquilo era real. Não sou fã de teorias da conspiração, mas 007 — Viva e Deixe Morrer não tem nada a ver com esse motim com um roteiro escrito em Moscou — um roteiro ainda em produção, enquanto um Putin analógico tenta alcançar com a TV estatal russa um Prighozin digital que o cerca com sua comunicação via Telegram.

Responder a pergunta que muitos me fazem — O que Putin fará agora — é impossível. Eu seria cauteloso, no entanto, em tirá-lo de cena tão rápido. Lembrem-se: Blofeld apareceu em seis filmes do James Bond até que o 007 finalmente o derrotasse.

Tudo que se pode fazer por enquanto, creio, é tentar calcular os diferentes equilíbrios de poder envolvidos nessa história e analisar quem, nos próximos meses, pode fazer o quê.

As fraquezas de Vladimir Putin
Permitam-me começar com o maior equilíbrio de poder em questão, que nunca pode ser deixado de lado. E o presidente Biden merece os aplausos por ele. Foi graças à ampla coalizão reunida pelo presidente dos Estados Unidos para enfrentar Putin na Ucrânia que expôs a face do vilarejo Potemkin do líder russo.

Gosto da argumentação de Alon Pinkas, ex-diplomata israelense sediado nos EUA, em um artigo publicado no Haaretz nesta semana. Segundo ele, Biden entendeu desde o começo que Putin é o epicentro de uma constelação antiamericana, antidemocrática e fascista que precisa ser derrotada. E com ela, não há negociação possível. O motim de Prigozhin fez na prática o que Biden tem feito desde a invasão da Ucrânia: expôs as fraquezas de Putin, ferundo sua já abalada aparência de invencibilidade e sua suposta condição de gênio estrategista.

Putin, há muito, governa com dois instrumentos: medo e dinheiro, cobertos com uma capa de nacionalismo. Ele comprou quem poderia comprar e prendeu ou matou quem não podia. Mas agora alguns observadores do que acontece na Rússia argumentam que o medo está se dissipando em Moscou. Com a aura de invencibilidade de Putin abalada, outros poderiam desafiá-lo. Veremos.

Se eu fosse Prigozhin ou um de seus aliados, ficaria longe de qualquer um que passasse na calçada em Belarus com um guarda-chuva em um dia de sol. Putin tem feito um trabalho bastante efetivo eliminando seus críticos e ninguém pode subestimar o temor profundo dos russos sobre qualquer retorno ao caos do período pós-soviético, no início dos anos 90. Muitos deles ainda são gratos a Putin pela ordem que ele restaurou no país.

Um plano que pode dar certo
Quando analisamos o equilíbrio de poder de Putin com o resto do mundo as coisas ficam complicadas. No Ocidente, temos de temer as fraquezas de Putin tanto quanto tememos suas forças.

Ainda não há um sinal de que o motim de Prigozhin ou a contraofensiva ucraniana tenham levado a qualquer colapso significativo das forças Rússias na Ucrânia. Apesar disso, ainda é cedo para qualquer conclusão.

Fontes do governo americano dizem que a estratégia de Putin é exaurir o Exército ucraniano até o ponto em que ele não tenha mais suas peças de artilharia howitzer de 155 milímetros nem seus sistemas antiaéreos cedidos por Washington. Essas peças são a principal arma das forças terrestres ucranianas. Sem elas, a Força Aérea Russa teria alguma supremacia até que os aliados ocidentais tenham seus recursos exauridos, ou até Donald Trump voltar à Casa Branca e Putin conseguir algum acordo sujo com ele que salve sua pele.

A estratégia não é maluca. A Ucrânia gasta tanto esse tipo de munição — cerca de 8 mil por dia — que o governo americano está tentando encontrar reposição para elas antes que novas entregas industriais dessas peças cheguem no ano que vem.

Além disso, a logística é importante numa guerra. Também é importante se você está no ataque ou na defesa. Atacar é mais difícil e os russos estão entrincheirados e com toda sua linha defensiva minada. É por isso que a contraofensiva ucraniana tem sido tão lenta.

Como me disse Ivan Krastev, especialista em Rússia e diretor do Centro de Estatégias Liberais na Bulgária: “No primeiro ano da guerra, quando a Rússia estava no ataque, todo dia sem uma vitória era uma derrota. No segundo ano, todo dia em que a Ucrânia não está vencendo é uma vitória para os russos.”

Nós não devemos subestimar a coragem dos ucranianos. Mas também não podemos superestimar a exaustão do país como uma sociedade.

E como a história ensina, o Exército da Rússia tem aprendido com seus erros. John Arquilla, professor da Escola Naval de Pós-Graduação na Califórnia e autor de Blitzkrieg: os novos desafios da guerra cibernética, “os russos sofrem, mas aprendem.”

Segundo o professor, o Exército de Putin ficou melhor em manter a hierarquia da tropa no front. Além disso, segundo Arquilla, eles aperfeiçoaram o uso de drones em combate. Ao mesmo tempo, os ucranianos mudaram sua estratégia inicial, de usar unidades móveis menores, armadas com armas inteligentes, para atacar um imóvel Exército russo, para um perfil mais pesado e maior, com tanques e blindados.

“Os ucranianos agora estão cada vez mais parecidos com o Exército russo que estavam derrotando no ano passado”, disse Arquilla. “O campo de batalha nos dirá se essa é a melhor estratégia.”

Os riscos de uma Rússia sem Putin
Isto posto, devemos nos preocupar tanto com a perspectiva de uma derrota de Putin quanto de qualquer vitória. E se ele for derrubado? Não estamos mais na época do fim da União Soviética. Não há ninguém bonzinho ou decente ali. Nenhum personagem inspirado em Yeltsin ou Gorbachev está à espreita para assumir o poder.

“A velha União Soviética tinha algumas instituições estatais que eram responsável por manter o funcionamento da burocracia, bem como alguma ordem de sucessão. Quando Putin entrou em cena, ele destruiu ou subverteu todas as estruturas sociais e políticas além do Kremlin”, me explicou Leon Aron, especialista em Rússia do American Enterprise Institute, cujo livro sobre a Rússia de Putin sai em outubro.

No entanto, a História da Rússia traz algumas reviravoltas surpreendentes, ele diz. “Apesar disso, numa perspectiva histórica, os sucessores de líderes reacionários no país costumam ser mais liberais: o czar Alexander II depois de Nicolas I, e na URSS, Kruschev depois de Stalin, e Gorbachev depois de Andropov. Então, se houver uma transição pós-Putin, há esperança.

Apesar disso, no curto prazo, Se Putin for derrubado, podemos acabar com alguém pior. Como você, leitor, se sentiria, se Prigozhin estivesse no Kremlin desde hoje cedo comandando o arsenal nuclear da Rússia?

Um outro cenário possível é a desordem ou uma guerra civil e a consequente implosão da Rússia nas mãos de diversos oligarcas e grupos armados. Por mais que eu deteste Putin, eu odeio o caos ainda mais, porque quando um Estado do tamanho da Rússia colapsa é muito difícil reconstruí-lo As armas nucleares e a criminalidade derivadas dessa catástrofe mudariam o mundo.

E isso não é uma defesa de Putin. É uma expressão de raiva pelo que ele fez a seu país, tornando-o uma bomba-relógio continental. Ele fez o mundo inteiro refém.

Se Putin vencer, o povo russo perderá. Mas se ele perder e for substituído pelo caos, o mundo inteiro sairá derrotado.


segunda-feira, 26 de junho de 2023

Como será o dia em que Putin desligar todos os cabos submarinos? - Moisés Naim (OESP)

Como será o dia em que Putin desligar todos os cabos submarinos?

Moisés Naim

O Estado de S. Paulo, 25/06/2023

 É fácil imaginar a internet como um fenômeno etéreo, imaterial. Nestes tempos é normal, por exemplo, conectar-se à rede sem necessidade de cabos, guardar dados na “nuvem” e supor que a informação flui sem “sujar-se” no mundo tátil.

Pena que essas suposições sejam errôneas. A rede da qual dependemos é alarmantemente física e eminentemente vulnerável. Segundo o marechal Edward Stringer, ex-diretor de operações do Ministério de Defesa britânico, 95% do tráfego internacional de dados passa por um pequeno número de cabos submarinos. Estamos falando de meros 200 cabos, cada um da grossura aproximada à de uma mangueira de jardim e capaz de transferir cerca de 200 terabytes por segundo.

Por essa rede física trafegam US$ 10 trilhões em transações financeiras a cada dia. Como explica Stringer, nos últimos 20 anos, a Rússia investiu fortemente em sistemas capazes de atacar essa rede de cabos submarinos. O Kremlin conta hoje com uma frota de sofisticados submergíveis não tripulados projetados especificamente para esses fins. E a China também.

De fato, não se trata de uma ameaça teórica. Em outubro de 2022, o cabo submarino que conecta as Ilhas Shetland com o restante do mundo foi cortado em dois pontos. Poucos dias antes, havia sido detectada presença nessa região de um barco russo de “investigação científica”.

Não é possível vincular a presença do barco com o corte do cabo. De fato, na maioria das vezes os cortes se devem a acidentes com embarcações pesqueiras ou a eventos sísmicos no leito marinho. Mesmo assim, essa coincidência preocupou muito as agências de segurança das potências ocidentais, que perceberam o incidente como uma advertência enviada pelo Kremlin.

Outro evento relevante nesse sentido foi a decisão tomada em fevereiro de 2023 pelas duas maiores empresas de telecomunicações chinesas, que decidiram se retirar do consórcio internacional encarregado de desenvolver uma rede de 19,2 mil quilômetros de cabos submarinos que conectam o sudoeste da Ásia e a Europa Ocidental.

Os impactos de um ataque coordenado contra os principais cabos submarinos em nível global seriam incalculáveis. Um ataque simultâneo paralisaria o comércio global, os mercados financeiros, o trabalho remoto e as indústrias de tecnologia e comunicação, provocando uma recessão mundial.

Mas o problema não seria meramente financeiro: as cadeias de fornecimento do século 21 dependem da transferência constante de dados para coordenar a entrega de bens e produtos. A interrupção deste fluxo poderia causar um efeito dominó de atrasos e cancelamentos que restringiria a integração econômica, política e até cultural de diferentes zonas geográficas.

Ainda mais, a crise financeira e econômica que um ataque desse tipo precipitaria nem sequer seria o maior dos problemas. “Desconectar” os cabos de potências rivais desembocaria numa crise inadministrável, especialmente se for possível atribuir a responsabilidade a algum ator estatal específico, o que poderia provocar conflitos e reconfigurar alianças. Os países que dependem em grande medida da infraestrutura digital seriam os mais afetados, e aqueles com capacidades autônomas de comunicação e tecnologia poderiam obter vantagens estratégicas.

Desafortunadamente, tais cenários não podem ser ignorados, porque no alto-mar reina a anarquia. Os tratados internacionais existentes sobre direito de navegação não cobrem satisfatoriamente o caso dos cabos submarinos. Trata-se de um exemplo emblemático de uma realidade global que, apesar de ser de grande interesse público, não está adequadamente protegida nem física nem legalmente.

Até agora, as potências marítimas se abstiveram de atacar em grande escala as infraestruturas submarinas. Obviamente, atacar os cabos e conexões submarinas do rival provocaria custosas retaliações. Mas o equilíbrio atual é instável e inerentemente suscetível a perturbações que podem desestabilizar o sistema mundial da noite para o dia.

Quando imaginamos que eventos seriam capazes de suscitar uma escalada entre o Ocidente e seus rivais, nós tendemos a nos esquecer dessa realidade. As sociedades contemporâneas não podem funcionar sem a transmissão de dados facilitada pela internet que, por sua vez, não pode funcionar sem infraestruturas muito difíceis de defender.

A sensação de invulnerabilidade do Ocidente é ilusória, e seus rivais entenderam bem que certas infraestruturas — começando pelos cabos submarinos — são seu calcanhar de Aquiles. Essa realidade sublinha a necessidade de manter relações minimamente funcionais na arena internacional.

A interdependência entre os países não é apenas um conceito usado por diplomatas. É uma realidade que define o mundo de hoje. Este é um mundo no qual os problemas, riscos e ameaças se fazem cada vez mais internacionais, enquanto as respostas dos governos seguem sendo predominantemente nacionais. Há problemas que nenhum país consegue resolver atuando sozinho. A necessidade de coordenar respostas e responder coletivamente com eficácia às ameaças é um objetivo para o qual o mundo não está preparado. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

https://www.estadao.com.br/internacional/como-sera-o-dia-em-que-putin-desligar-os-cabos-da-internet-mundial-leia-a-coluna-de-moises-naim/

segunda-feira, 12 de junho de 2023

Como a Economia global pode ajudar novamente o governo Lula - Luiz Guilherme Gerbell (OESP)

 Como a Economia global pode ajudar novamente o governo Lula

Por Luiz Guilherme Gerbelli
O Estado de S. Paulo, 11/06/2023

O início da nova gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem tido uma ajuda inesperada da economia global. Na virada do ano, o que boa parte dos analistas esperava era uma atividade mundial bem mais fraca do que os últimos indicadores têm revelado.

A conjuntura mais positiva deve fazer com que o Brasil colha um novo ano de bom resultado da balança comercial. Uma parte dos bancos e consultorias prevê um superávit acima de US$ 70 bilhões em 2023, o que marcará um recorde se confirmado.

O estágio atual da economia está longe de ter como pano de fundo a forte expansão observada na primeira década dos anos 2000, fundamental para sustentar o crescimento econômico nos dois primeiros mandatos de Lula (2003-2010). Mas o fato de o mundo ter se mostrado resiliente neste início de ano pode ajudar a repetir, ainda que em uma escala menor, o ambiente internacional favorável enfrentado pelo petista no passado.

“Há sinais de desaceleração na atividade global, mas não é um colapso”, afirma Julia Passabom, economista do Itaú Unibanco.

Os analistas ainda tentam entender o que explica essa força acima do esperado na atividade global. O mundo lida com um cenário pouco comum. Enquanto a confiança de consumidores e empresários está em queda - o que indica uma menor propensão para investir e comprar –, os dados de atividade, sobretudo no setor de serviços, ainda não apresentaram uma desaceleração tão acentuada.

“Há sinais de desaceleração na atividade global, mas não é um colapso”, afirma Julia Passabom, economista do Itaú Unibanco.

Os analistas ainda tentam entender o que explica essa força acima do esperado na atividade global. O mundo lida com um cenário pouco comum. Enquanto a confiança de consumidores e empresários está em queda - o que indica uma menor propensão para investir e comprar –, os dados de atividade, sobretudo no setor de serviços, ainda não apresentaram uma desaceleração tão acentuada.

A economia brasileira começou a registrar robustos resultados comerciais no início dos anos 2000, quando o gigante asiático ingressou no comércio internacional e passou a crescer de forma mais acelerada - em alguns anos, o avanço do PIB superou 10%. De 2001 a 2022, as exportações de produtos básicos do Brasil cresceram de US$ 23,8 bilhões para US$ 158,9 bilhões, de acordo com dados tabulados pela Fundação Centro de Estudos do Comércio Exterior (Funcex).

Hoje, os sinais de desaceleração da economia global levam a uma queda nos preços, que subiram de forma acelerada depois de superada a fase mais aguda da crise sanitária. O Brasil, no entanto, tem conseguido compensar essa redução com o aumento na quantidade de produtos vendidos. O País colheu uma supersafra de grãos e é dono de um agronegócio que se destaca pela sua elevada produtividade.

“O Brasil está performando bem por conta própria, pelos próprios méritos”, afirma Fabio Akira, economista-chefe da BlueLine Asset. ”Houve um choque de oferta no setor exportador. É o que chamo de milagre de multiplicação. Consegue dar uma turbinada no PIB, simultaneamente alivia a inflação e beneficia as contas externas.”

Nos últimos anos, a subida da cotação das commodities ajudou a colocar o comércio internacional do País em outro nível. Um estudo feito pelo Bradesco mostra que o peso da corrente de comércio (soma da importação e exportação) no Produto Interno Bruto (PIB) ultrapassou a marca de 30% desde 2021, o maior patamar desde o início da série histórica, em 1960 - em média, essa relação sempre rondava os 20%.

“É verdade que esse movimento foi fruto do efeito da explosão de preços na pandemia, mas o fato é que houve um efeito multiplicador no crescimento da economia”, avalia Honorato, do Bradesco. “Parte importante da surpresa de crescimento tem a ver com o fato de a força do preço das commodities ter sido subestimada.”

Setor externo melhor
Os resultados da balança comercial devem contribuir para melhorar o resultado do setor externo brasileiro como um todo. Nas contas do Itaú, o déficit em conta corrente do País deve recuar dos atuais 2,7% do PIB no acumulado em 12 meses para 1,7% do PIB ao fim de 2023. “É um número melhor do que a média recente. Nos últimos três anos, ficou ao redor de 2,5% do PIB”, afirma Julia, economista do banco.

O setor externo brasileiro também se beneficia de uma situação confortável no volume de investimentos diretos no País (IDP). Em 12 meses até abril, o IDP somou US$ 82 bilhões (ou 4,17% do PIB), um pouco abaixo do apurado em março (US$ 89,7 bilhões ou 4,57% do PIB), mas muito superior ao verificado em abril de 2022 (US$ 54,3 bilhões ou 3,12% do PIB).

“Bem ou mal o Brasil se livrou dos desequilíbrios externos há algum tempo”, diz Barbosa, do Bradesco. “Hoje, o nosso déficit, comparativamente aos países da América Latina, não chega a chamar tanta atenção.”

O Brasil é um nova Suíça?
Nas últimas semanas, os resultados da balança comercial levaram o economista-chefe do Instituto de Finanças Internacionais (IIF, na sigla em inglês), Robin Brooks, a afirmar que o Brasil caminha para se tornar “a Suíça da América Latina”.

“Está surgindo um enorme superávit comercial, diferente de qualquer outro país da região. Isso vai dar ao Brasil estabilidade externa e uma moeda forte”, publicou o economista no Twitter.

Os números positivos mais recentes do setor externo não apagam o início confuso da gestão Lula na economia. Os ataques do governo ao Banco Central e a incerteza fiscal assustaram os investidores. A nova gestão petista ainda tentou rever o marco do saneamento e questionou a privatização da Eletrobras, o que não foi bem visto. No diálogo com o agronegócio, também houve entraves, com os atos do Movimento dos Sem Terra, que culminaram numa Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). O ministro da Agricultura foi desconvidado da Agrishow, a maior feira do setor.

Do lado positivo, os fatores que ajudam a mitigar essas preocupações e ainda colocam o Brasil no radar do comércio internacional vêm da aprovação na Câmara dos Deputados do arcabouço fiscal - que reduziu o temor com o forte aumento do endividamento do País nos próximos anos -, a investida na reforma tributária, e o discurso ambiental.

“É um governo percebido pela comunidade internacional como tendo um compromisso com o meio ambiente e que tem falado mais da agenda de transição energética. Para o fluxo futuro, isso deve ser importante”, diz o economista-chefe do Bradesco.