segunda-feira, 19 de junho de 2023

A grande ilusão do Brics e o universo paralelo da diplomacia brasileira: prefácio ao livro de Paulo Roberto de Almeida

 Brics: uma ideia em busca de algum conteúdo  

Prefácio ao livro de Paulo Roberto de Almeida:

A grande ilusão do Brics e o universo paralelo da diplomacia brasileira

Brasília: Diplomatizzando, 2022, 189 p.; ISBN: 978-65-00-46587-7

Disponível na Amazon.com

  

Agrupamentos econômicos ou políticos geralmente partem de algum projeto intrínseco à lógica instrumental de seus proponentes originais e tendem a seguir os objetivos precípuos de seus principais países membros. Eles geralmente são constituídos a partir de alguma ruptura de continuidade na ordem normal das coisas, ou seja, no plano diplomático, no seguimento de um evento ou processo transformador das relações de força. Por exemplo, a Grande Guerra de 1914-18, o mais devastador dos conflitos globais até então conhecidos, produziu a Liga das Nações, uma tentativa de conjurar enfrentamentos bélicos daquela magnitude nos anos à frente: o proponente original, contudo, a ela não aderiu, e a primeira entidade multilateral dedicada à manutenção da paz entre os Estados membros se debateu nos projetos militaristas expansionistas dos fascismos do entre guerras, até soçobrar por completo nos estertores da Segunda Guerra Mundial. Para Winston Churchill, os dois conflitos globais foram uma espécie de repetição daquilo que a Europa havia conhecido no século XVII, uma “segunda Guerra de Trinta Anos”. 

A tentativa seguinte começou com um exercício de conformação da ordem econômica do pós-guerra, realizado na reunião de Bretton Woods, em junho de 1944: ela partiu da constatação de que era preciso reconstruir as bases da interdependência econômica destruídas pela crise de 1929 e pela depressão da década seguinte, congregando quase todos os países que estavam então unidos pela ideia das “nações aliadas”, a maior parte em luta contra as potências do eixo nazifascista. A proposta foi relativamente bem-sucedida e resultou na criação do FMI e do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento, ainda que a União Soviética, presente ao encontro, tenha preferido não se juntar às demais economias de mercado que puseram em funcionamento as duas instituições a partir de 1946. 

Imediatamente após a conferência de San Francisco e a abertura dos trabalhos da ONU, seu Comitê Econômico e Social (Ecosoc) aprovou a constituição de comissões econômicas regionais, encarregadas de mapear e informar a nova organização multilateral sobre a situação econômica em cada grande região do planeta, sendo que a mais famosa delas, a Cepal, sob a direção de Raúl Prebisch, não se contentou em apenas coletar dados econômicos sobre os países latino-americanos e do Caribe; com sede em Santiago do Chile, ela logo virou uma verdadeira escola de pensamento econômico, com cursos e programas de estudo sobre os problemas estruturais do continente.

Da mesma forma, a primeira organização de coordenação econômica europeia, a Oece, predecessora, em 1948, da Ocde (1960), foi constituída para administrar o funcionamento do Plano Marshall, e deveria, em princípio, estender-se igualmente aos países da Europa central e oriental ainda ocupados pelo Exército Vermelho. O Secretário de Estado americano proponente da ideia, o próprio George Marshall, respirou aliviado quando Stalin vetou a participação de sua esfera de influência no esquema, pois que não haveria, provavelmente, recursos a serem distribuídos entre todos eles; o programa, coordenado a partir de Paris, ficou então restrito à Europa ocidental.

Nos anos 1950 e no início da década seguinte, os países em desenvolvimento, em grande medida impulsionados pelo Brasil e demais latino-americanos, constataram que os arranjos econômicos feitos no âmbito de Bretton Woods e das reuniões preparatórias em Genebra à conferência da ONU sobre comércio e emprego de Havana, das quais resultaram, preliminarmente, o Acordo Geral sobre Comércio e Tarifas Aduaneiras (Gatt, 1947), não tinham resolvido o problema básico das diferenças estruturais entre as economias avançadas e as “subdesenvolvidas”, como então eram chamados os países pobres, logo em seguida batizados conjuntamente de “Terceiro Mundo”. Levantou-se, então, um imenso clamor em torno dessa distinção julgada indesejável entre o Norte e o Sul do planeta, do qual resultou a convocação, pelo Ecosoc, da primeira conferência das Nações Unidas sobre comércio e desenvolvimento (Unctad, 1964), da qual resultou não só a criação do G77, o grupo dos países em desenvolvimento, mas um secretariado em Genebra, que passou a organizar reuniões quadrienais, das quais alguns dos resultados foram acordos sobre produtos de base e a criação de um Sistema Geral de Preferências, abolindo, na prática, o princípio da reciprocidade inscrito nos primeiros acordos comerciais, uma das cláusulas básicas do sistema do Gatt.

Quando, no seguimento da denúncia americana da primeira versão de Bretton Woods, feita pelo presidente Nixon em agosto de 1971, se instalou um “não-sistema financeiro mundial”, as principais economias de mercado avançadas estabeleceram um esquema informal de consultas entre elas para tentar conter a volatilidade dos mercados cambiais, o que deu origem ao G5 e, mais adiante, ao G7. Esse agrupamento perdura até hoje, com uma fase de G8 – não exatamente econômica, mas bem mais política –, com a inclusão da Rússia pós-soviética no esquema, situação que perdurou até a invasão da península da Crimeia, amputando-a da Ucrânia, em 2014. 

Paralelamente às reuniões anuais do G7, foi criada uma entidade privada, o Fórum Econômico Mundial, com encontros em Davos, na Suíça, com esse mesmo objetivo primário, de oferecer um espaço de discussões sobre a economia global, mais reunindo líderes de países e empreendedores privados; daquelas tertúlias nos Alpes suíços resultaram algumas boas iniciativas depois incorporadas às agendas de trabalho das principais organizações do multilateralismo econômico, primeiro o Gatt, depois a OMC, mas também as entidades de Bretton Woods, assim como as de várias agências especializadas da ONU; delas também participavam muitas ONGs de todo o mundo, a passo que, num sentido manifestamente oposto aos objetivos de Davos, começou a reunir-se, por breve tempo, o Fórum Social Mundial, um convescote anual das tribos confusas de antiglobalizadores – ou altermundialistas, como proferiam os franceses –, já com clara orientação anticapitalista.

De forma algo similar, no contexto das crises financeiras das economias emergentes, no final dos anos 1990, foi criado, no âmbito do FMI, um Fórum de Estabilidade Global, que, impulsionado por nova crise financeira, desta vez dos países avançados, em 2008, resultou na institucionalização do G20, reunindo as maiores economias do planeta. As reuniões anuais do G20 ingressaram numa repetitiva rotina de trabalho dos dirigentes desses países (incluindo a União Europeia e organizações pertinentes), relativamente satisfatórias no plano das proposições, mas que eram bem menos exitosas no terreno das realizações concretas, dada a diversidade natural de orientações de política econômica (e de postura política) entre seus membros, o que parece natural, uma vez que o G20 carece da unidade de propósitos que caracteriza, por exemplo, a Ocde. Alguns grupos informais, para meio ambiente, por exemplo, ou para outros temas globais, foram sendo instituídos, ao sabor das urgências de cada momento, sem exibir, contudo, o formalismo institucional de grupos estruturados em torno de um tema específico, com objetivos bem determinados. Estes são, grosso modo, os exemplos mais conspícuos – descurando a multiplicidade e a diversidade dos acordos e arranjos regionais ou plurilaterais que congregam interesses setoriais ou regionais, geralmente sob a forma de arranjos de liberalização do comércio ou organizações de escopo político, ou militar, como a Otan, no caso –, de agrupamentos surgidos a partir de um entendimento comum sobre objetivos compartilhados, que podem, ou não, evoluir para formatos institucionais, ou mais refinados, de agregação de valores e dotados de metas claramente definidas. 

Este não parece ser o caso do Bric-Brics, entidade híbrida, no universo dos agrupamentos conhecidos, sem um formato preciso quanto à sua institucionalidade e desprovido de metas objetivamente fixadas de acordo a um entendimento comum sobre seus objetivos básicos, ou seja, os elementos capazes de definir esse agrupamento em sua essência fundamental. Ele parece ter sido mais formado em oposição ao suposto “hegemonismo” do G7 do que em torno de propostas próprias sobre a ordem econômica e política mundial, com base em uma agenda de trabalho formalizada. Mas atenção, e aqui reside uma diferença relevante com respeito a todas as entidades mencionadas acima, ele não resultou de uma necessidade detectada internamente aos integrantes de seu primeiro formato, o Bric, mas se constitui a partir de uma sugestão totalmente alheia ao trabalho diplomático, ou de coordenação econômica entre países postulando objetivos comuns, com uma “inspiração” externa e estranha ao grupo, apenas para “aproveitar” a aproximação feita por um funcionário de uma entidade dedicada a finanças e investimentos, o economista Jim O’Neill, do Goldman Sachs. Por essa razão precisa, sempre o considerei um personagem anômalo, no universo de nossas tradições diplomáticas, mas basicamente em função de uma composição heterogênea, sem um foco preciso no leque dos interesses nacionais do Brasil no plano externo.

 

 

Este livro foi composto a partir de uma seleção de uma dezena, tão somente, de trabalhos, dentre uma lista de mais de duas dúzias de ensaios e artigos que escrevi explicitamente sobre o Brics – à exclusão, portanto, de diversos outros textos que pudessem igualmente abordar secundariamente esse grupo de países reunidos por uma ambição diplomática –, a partir de uma simples proposta econômica, e que se manteve navegando, entre ventos e marés, desde meados da primeira década do século, e que segue existindo mais como ideia do que como realidade. Os primeiros trabalhos nessa categoria foram escritos antes mesmo da constituição formal do grupo e se estenderam por mais de uma década, sobretudo durante a vigência do lulopetismo diplomático. A despeito de algo defasados no tempo, o que se reflete em alguns dados conjunturais, eles revelam uma preocupação fundamental do autor com a coerência da diplomacia brasileira – nem sempre respeitada em todos os governos – e com uma noção muito bem refletida sobre os chamados interesses nacionais – nem sempre bem interpretados por todos os governos –, o que fiz invariavelmente desde minha formação superior, nos campos da sociologia histórica e da economia política. A partir do momento em que passei a exercer-me na carreira de diplomata, nunca deixei de aplicar minhas leituras, minhas pesquisas, as experiências adquiridas em prolongadas estadas no exterior, em todos os regimes políticos e sistemas econômicos imagináveis, com exceção talvez de uma pura tirania ao velho estilo do despotismo oriental, ou o stalinismo do seu período mais sombrio. Percorri muitos países, ao longo de uma vida de estudos e de missões diplomáticas, sempre recolhendo impressões sobre suas formas de organização política e suas modalidades de organização econômica, o que me permitiu escrever centenas de artigos, duas dúzias de livros e incontáveis notas em cadernos, que se transformavam em trabalhos uma vez definido um objeto preciso de análise.

O Bric-Brics foi um desses animais estranhos na paisagem diplomática, ao qual apliquei o meu bisturi analítico, de forma bastante crítica como se poderá constatar pela leitura dos trabalhos selecionados e aqui compilados, o que obviamente se situava contrariamente à postura do Brasil em política externa nos anos do lulopetismo diplomático. Nunca fui de aderir a modismos de ocasião, nem me intimidei com os olhares estranhos que me eram dirigidos cada vez que eu me pronunciava com o meu olhar crítico sobre esse novo animal na paisagem de nossas relações exteriores. Sempre considerei que a atividade diplomática não pode ser dominada por esses princípios que só podem vigorar nas casernas, ou melhor, em situações de combate: a hierarquia e a disciplina. Acredito que um soldado não pode interromper as operações no terreno para ir discutir os fundamentos da paz kantiana com o seu comandante de pelotão, mas um diplomata tem, sim, o dever, de questionar, e de argumentar, sobre cada “novidade” que se apresenta na agenda das relações exteriores do Brasil. 

Como nunca me dobrei ao argumento da autoridade, sempre busquei invocar a autoridade do argumento ao discutir a rationale desse animal bizarro no cenário de nossas atividades, o que não foi bem recebido pelo grupo no poder. Não obstante estar privado de cargos na Secretaria de Estado, durante mais de uma década, continuei analisando criticamente as principais opções de nossas relações exteriores, aliás em todos os governos, desde a era militar até o arremedo de autoritarismo castrense a partir de 2019, o que se refletiu, precisamente, em todos os livros que publiquei desde 1993 (sendo os dois primeiros sobre o Mercosul) e em dezenas de artigos de corte acadêmico redigidos desde o período da ditadura militar. O último artigo desta coletânea, não tem a ver diretamente com a questão do Brics, mas se refere precisamente a essa postura de “minoria” contra certas posições dominantes, que nunca hesitei em proclamar, com base num estudo aprofundado de nossas relações internacionais. 

Esta compilação de artigos e ensaios tem por objetivo, assim, demonstrar na prática como se pode fazer diplomacia – ou, no caso, história diplomática – sem necessariamente rezar a missa pelo credo oficial. Ela demonstra, pelo menos para mim, que o dever do diplomata não é o de se curvar disciplinadamente às inovações que vêm de cima, mas o de questionar, com base num exame detido de cada questão, sua adequação a uma certa concepção do interesse nacional. A radiografia que aqui se faz do Brics tem por objetivo apresentar os dados da questão, examinar o interesse da ideia para o interesse nacional – com o objetivo do desenvolvimento econômico e social sempre em pauta – e de questionar o que deve ser questionado a partir de certos equívocos de posicionamento externo que podem discrepar daquele objetivo. Manterei minha opção de oferecer relatórios de minoria cada vez que a ocasião se apresentar. No momento, a intenção foi a de coletar trabalhos resultando uma década e meia de reflexões sobre o que eu chamei de “grande ilusão” de uma diplomacia paralela, que ainda exerce influência sobre nossas opções externas. 

 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 6 de maio de 2022

 

Índice

 

Prefácio: Brics: uma ideia em busca de algum conteúdo    9

1. O papel dos Brics na economia mundial        15

O Bric e os Brics         15

A Rússia, um “animal menos igual que os outros”  16

A China e a Índia         17

E o Brasil nesse processo?     20

 

2. A fascinação exercida pelo Brics nos meios acadêmicos    24

Esse obscuro objeto de curiosidade    24

O Brasil, como fica no retrato?      25

Russia e China: do comunismo a um capitalismo especial    26

O fascínio é justificado?      29

O que os Brics podem oferecer ao mundo?    31

 

3. Radiografia do Bric: indagações a partir do Brasil   33

Introdução: a caminho da Briclândia  33

Radiografia dos Brics     34

Ficha corrida dos personagens     35

De onde vieram, para onde vão?      37

New kids in the block       40

Políticas domésticas    43

Políticas econômicas externas    45

Impacto dos Brics na economia mundial        47

Impacto da economia mundial sobre os Brics      48

Consequências geoestratégicas     50

O Brasil e os Brics   53

Alguma conclusão preventiva?    57

 

4. A democracia nos Brics    59

A democracia é um critério universal?      59

Como se situam os Brics do ponto de vista do critério democrático?   60

Alguma chance de o critério democrático ser adotado no âmbito dos Brics?   62

 

5. Sobre a morte do G8 e a ascensão do Brics    63

Sobre um funeral anunciado    63

Qualificando o debate       64

O que define o G7, e deveria definir também o Brics e o G20      64

Quais as funções do G7, que deveriam, também, ser cumpridas pelo G20?   67

 

6. O Bric e a substituição de hegemonias     70

Introdução: por que o Bric e apenas o Bric?     70

Bric: uma nova categoria conceitual ou apenas um acrônimo apelativo?      71

O Bric na ordem global: um papel relevante, ou apenas uma instância formal?   73

O Bric e a economia política da nova ordem mundial: contrastes e confrontos    81

Grandezas e misérias da substituição hegemônica: lições da História  86

Conclusão: um acrônimo talvez invertido     95

 

7. Os Brics na crise econômica mundial de 2008-2009      98

Existe um papel para os Brics na crise econômica?     98

Os Brics podem sustentar uma recuperação financeira europeia?    100

A ascensão dos Brics tornaria o mundo mais multipolar e democrático?   103

 

8. O futuro econômico do Brics e dos Brics     106

Das distinções necessárias     106

O Brics representa uma proposta alternativa à ordem mundial do G7?   108

O que teriam os Brics a oferecer de melhor para uma nova ordem mundial?   109

O futuro econômico do Brics (se existe um...)       111

Existe algum legado a ser deixado pelo Brics?       114

 

9. O Brasil no Brics: a dialética de uma ambição     116

O Brasil e os principais componentes de sua geoeconomia elementar                   116

Potencial e limitações da economia brasileira no contexto internacional              122

A emergência econômica e a presença política internacional do Brasil                 127

A política externa brasileira e sua atuação no âmbito do Brics    131

O que busca o Brasil nos Brics? O que deveria, talvez, buscar?   136

 

10. O lugar dos Brics na agenda externa do Brasil   143

Uma sigla inventada por um economista de finanças     143

Um novo animal no cenário diplomático mundial      144

Existe um papel para o Brics na atual configuração de poder?    151

Vínculos e efeitos futuros: um exercício especulativo      156

 

11. Contra as parcerias estratégicas: um relatório de minoria   164

Introdução: o que é um relatório de minoria?  164

O que é estratégico numa parceria?       165

Quando o estratégico vira simplesmente tático  167

Parcerias são sempre assimétricas, estrategicamente desiguais  168

A experiência brasileira de parcerias: formuladas ex-ante       171

A proliferação e o abuso de uma relação não assumida      177

 

Posfácio: O Brics depois da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia   181

Indicações bibliográficas    187

Nota sobre o autor     189

 

 

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Atraso 'made in Brazil' - Editorial O Estado de São Paulo (05/12/2006)

Atraso 'made in Brazil' 

Fonte: O Estado de São Paulo, 05/12/2006, Notas e Informações, p. A3

Contrastando com a apagada e vil tristeza do noticiário político pós-eleitoral - dominado pelo ramerrame dos conchavos mofinos sobre o tal governo de coalizão e das brigas de praxe pelo controle das duas casas do Congresso, enquanto o presidente Lula confessa que não sabe como ¿destravar¿ o crescimento -, uma entrevista publicada ontem neste jornal traz para o primeiro plano os problemas que tirariam o sono das elites políticas brasileiras, não fossem elas o que são.

O entrevistado é o diplomata Paulo Roberto de Almeida, professor de Economia Política Internacional do Centro Universitário de Brasília (Ceub) e membro do Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Falando a título pessoal, com cortante clareza e sem receio de chamar as coisas pelos nomes, ele traça um quadro sombrio das possibilidades do País na ordem mundial, em razão das realidades made in Brazil, como diz, para que não se culpe por elas a globalização. 

Mesmo quando se refere a problemas que já freqüentam o limitado debate público sobre os verdadeiros obstáculos ao desenvolvimento nacional - no sentido pleno do termo -, o estudioso vai mais longe do que a maioria dos seus pares na identificação de suas conexões e consequências. Retomando o enfoque de sua palestra no recente Encontro Nacional de Estudos Estratégicos, no Rio, ele dissocia o Brasil da China e da Índia, os quais, além da Rússia, formariam o que ficou moda chamar Bric. 

O acrônimo designa o bloco dos principais países emergentes. Mas, para Almeida, isso não existe. "Eles não interagem, não atuam de forma coordenada. Cada um tem uma forma específica de inserção na economia mundial", esclarece. E, pelo que caracteriza essa forma no caso do Brasil, o professor tirou o B do Bric. Numa visão superficial, o País se distingue da China e da Índia por ser o único dos três que exporta commodities em larga escala, "o que é bom", e como grande fornecedor de energias renováveis, "o que é excelente".

Numa visão aprofundada, porém, o que em última análise afasta o Brasil dessas duas nações, pelo critério crucial do modo de participação na economia globalizada, é a dificuldade aparentemente insuperável de o País viver no tempo presente. A China se inseriu na divisão internacional do trabalho, descartando com uma velocidade espantosa o passado autárquico, e a Índia alimenta a nova economia do conhecimento - a primeira é "um laboratório, um ateliê ou uma fábrica", a segunda, "um escritório de concepção e desenho", sintetiza o pesquisador.

Já o Brasil "é um pouco avestruz, introvertido, recusa a competição, recusa acordo comercial". O resultado inexorável é o crescimento lento. O pior é que não se divisa a proverbial luz no fim do túnel. Exatamente devido ao predomínio dessa arcaica mentalidade de avestruz, o problema nem sequer é a falta de consenso entre a elite sobre a agenda de reformas modernizadoras. Na lúcida avaliação do diplomata, ¿não há consciência de que a reforma é necessária¿ - sobretudo na educação.

Já era tempo de alguém familiarizado com o tema dizer em público o que Almeida diz da educação nacional, sem medir palavras. "É pior do que possamos imaginar, muito pior do que as estatísticas revelam. Não é só do ponto de vista organizacional e de investimentos, mas no plano mental, de preparação de professores", aponta, com precisão cirúrgica. "A situação educacional é pavorosa." Não surpreende, portanto, o despreparo brasileiro, seja para capacitar a mão-de-obra, no plano puramente industrial, seja para enfrentar as exigências da modernidade.

Esse segundo aspecto é o mais assustador. Fala-se muito da má qualidade do ensino, mas não se fala tudo que se deveria. Sabe-se que cada nível do sistema exporta para o seguinte as suas deficiências. Não se ressalta, porém, que, acumuladas, elas limitam dramaticamente a capacidade de adquirir novos conhecimentos da minoria que já não desistiu no começo do percurso. A deseducação, em suma, contamina por inteiro a esfera produtiva e permeia o cotidiano dos brasileiros.

Por isso, para o diplomata Paulo Roberto de Almeida, o Brasil continuará tendo desenvolvimento lento e inserção na economia mundial limitada ao fornecimento de commodities e fontes renováveis de energia. 

Disponível na base de dados do Senado Federal; link: 

https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/324077/noticia.htm?sequence=1&isAllowed=y

O que impede os diplomatas de pensarem com suas próprias cabeças? - Paulo Roberto de Almeida

 O que impede os diplomatas de pensarem com suas próprias cabeças?

Respondo de maneira imediata: tal de “hierarquia e disciplina” e os equívocos de uma “diplomacia presidencial” mal concebida, seguida de forma submissa pela corporação da diplomacia profissional.
Desde 2006, ou seja, desde sua concepção original, eu afirmei que o BRIC diplomático era uma má ideia para o Brasil e para a sua diplomacia. Essa ideia básica, de simples constatação prima face, está consignada em entrevista que dei a Lourival Sant’Anna, em 9/11/2006, publicada no Estadão em 4/12/2006, e que foi objeto de editorial do jornal no dia seguinte(“Atraso made in Brazil”), muito mal recebido pelo então chanceler Celso Amorim, conforme sua própria declaração a mim pouco tempo depois. Nada preciso dizer do acolhimento generalizado nos meios acadêmicos.
No entanto, essa má ideia de unir o Brasil a duas autocracias e a uma outra democracia de baixa qualidade (como aliás a do Brasil) recebeu a adesão entusiástica da diplomacia profissional, apenas por essa adesão irrefletida à tal de hierarquia e disciplina.
Qualquer estudo técnico isento dos objetivos do Brasil nas áreas comercial, de cooperação ou até de prestígio internacional poderia confirmar que eles poderiam ser alcançados por sua atuação independente nos planos multilateral, regional ou bilateral, sem os incômodos de uma adequação a interesses de outros países sem qualquer convergência de valores, princípios e interesses nacionais próprios ao Brasil.
As evidências dessa minha oposição a uma aliança que eu já achava mal concebida desde o início estão aqui disponíveis:
“1686. “Os BRICs e a economia mundial: Algumas questões de atualidade”, Brasília, 13 novembro 2006, 3 p. Notas a partir de entrevista concedida ao jornalista Lourival Sant’Ana, do jornal O Estado de São Paulo, no Rio de Janeiro, em 9 de novembro de 2006. Entrevista publicada no jornal O Estado de São Paulo em 04/12/2006, caderno Economia, pág. B7, sob o título “O Bric é só um exercício intelectual”. Postado no Diplomatizzando (14/11/2019; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2019/11/o-bric-e-economia-mundial-2006-paulo.html).  
Essa entrevista foi objeto de editorial do jornal em 5/12/2006, sob o título “Atraso made in Brazil” (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2023/06/atraso-made-in-brazil-editorial-o.html), muito mal recebida pelo então chanceler Celso Amorim, como disse pessoalmente a mim, pouco tempo depois.
Continuo achando que a atual postura equivocada adotada pelo governo de Lula 3, em relação à guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, deriva desse “pecado original” cometido em 2006.
Transformei essas minhas ideias num livro em formato digital publicado em 2022:
A grande ilusão do Brics e o universo paralelo da diplomacia brasileira,  Apresentação no blog Diplomatizzando (11/06/2022; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2022/06/meu-proximo-kindle-sobre-miragem-dos.html); disponível na Amazon.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 19/06/2023

domingo, 18 de junho de 2023

Os militares na política, sempre eles. Resenha de Fernando Mello Barreto: Os sucessores do Barão, 1964-1985 - Paulo Roberto de Almeida

 O livro não é tanto sobre os militares, mas sobre a diplomacia da era militar, focando das relações exteriores do Brasil, tal como conduzidas pelos chanceleres do período, dois politicos e quatro diplomatas, por sinal. Como a resenha já não está mais disponível em nenhuma das três revistas nas quais foi originalmente publicada, eu a reposto aqui, para acesso amplo: 

1682. “Sucessores bem-sucedidos? Um balanço realista (e completo) da diplomacia na era militar”, Brasília, 4 novembro 2006, 6 p. Resenha de Fernando de Mello Barreto: Os Sucessores do Barão, 2: relações exteriores do Brasil, 1964-1985 (São Paulo: Paz e Terra, 2006, 519 p.; ISBN: 85-7753-004-3). Revista Política Externa (São Paulo: vol. 15, n. 3, dez. 2006-fev 2007, p. 191-196; ISSN: 1518-6660). Versão resumida publicada, sob o título de “Diplomacia durante a ditadura”, na revista Desafios do Desenvolvimento (Brasília: ano 3, nº 29, dezembro 2006, p. 63). Plenarium (Brasília: Câmara dos Deputados; ano V, n. 5, maio 2008, p. 310-315; ISSN: 1981-0865). Relação de Publicados n. 728, 729.



Sucessores bem-sucedidos? 

um balanço realista (e completo) da diplomacia na era militar

 

 

Fernando de Mello Barreto: 

Os Sucessores do Barão2: 1964-1985 - relações exteriores do Brasil

(São Paulo: Paz e Terra, 2006, 519 p.; ISBN: 85-7753-004-3)

 

 

A exemplo do primeiro volume desta obra – que cobria, de fato, o período pós-Barão, ainda que de modo lato: Os Sucessores do Barão: relações exteriores do Brasil, 1912-1964 (Paz e Terra, 2001) –, Fernando Mello Barreto oferece, no presente livro, uma história das relações internacionais e da política externa do Brasil, em seu sentido mais amplo, cobrindo tanto os episódios diplomáticos, estrito senso, como o quadro mais abrangente da economia e da política mundiais. A perspectiva é linear, método já adotado no volume precedente: seis chanceleres (dois políticos e quatro de carreira) sucederam-se de 1964 a 1985 à frente do Itamaraty, ou seja, durante o regime autoritário, quando cinco generais do Exército e uma junta militar (au complet) ocuparam o poder no Brasil. 

Da intervenção na República Dominicana à Guerra das Malvinas, da recusa do TNP e do Acordo Nuclear com a Alemanha à “pacificação nuclear” com a Argentina, do apoio ao colonialismo português ao reconhecimento dos novos regimes surgidos depois da “revolução dos cravos”, passando pelos tratados de cooperação com os países vizinhos (Bacia do Prata, Amazônia, Itaipu, entre outros), os principais episódios da diplomacia brasileira são tratados de forma minuciosa, fazendo desta obra uma referência indispensável para o conhecimento e o enquadramento cronológico desses anos cruciais de transformações geopolíticas no plano mundial e de grandes mudanças econômicas no próprio Brasil. Um sintético epílogo retraça as mudanças mais relevantes, na fase recente, em relação ao período militar, como por exemplo a aceitação do TNP e a inserção nos mecanismos de controle de tecnologias sensíveis. 

O prefácio de Rubens Ricupero já levanta uma primeira questão, pertinente, quanto ao título desta obra em três volumes, que vai da morte do Barão até a atualidade (estando seu autor ocupado agora na feitura do terceiro). Compreende-se a designação de “sucessores” para aqueles que ocuparam, na primeira metade do século XX, a chefia da chancelaria brasileira, quando a presença de Rio Branco era uma sombra gigantesca a apequenar a obra dos que lhe seguiram imediatamente. Mas, como atribuir a mesma classificação aos condutores das relações exteriores em meados da segunda metade desse século, quando os problemas regionais e internacionais enfrentados pelo Brasil eram bastante diferentes daqueles que tinham mobilizado a atenção do grande chanceler? Recorda Ricupero, a esse propósito, a frase de um humorista argentino sobre “los venidos a más”, como a sugerir que todos os chanceleres, depois do Barão, terão sido meramente “suplementares”. 

A rigor, os “herdeiros involuntários” enfrentaram problemas similares: as relações sempre delicadas com os vizinhos da América do Sul, a começar pela Argentina; a indiferença das grandes potências em face das pretensões do Brasil no sentido de querer ocupar um espaço mais afirmado na cena internacional (ou seja, a busca de um statuspreeminente na Liga das Nações e, depois e ainda hoje, no CSNU); o acesso a tecnologias sensíveis, geralmente cerceado pelas mesmas potências; o aproveitamento dos recursos energéticos no entorno geográfico; a defesa contra choques adversos vindos do cenário internacional (no plano financeiro, no comercial e no do, então indispensável, petróleo); o alinhamento, enfim, com os pequenos (países em desenvolvimento) ou o “desalinhamento” com os grandes, como opções basicamente políticas, quando não de origem econômica e tecnológica. Esses mesmos problemas ocuparam todos e cada um dos “seguidores” do Barão, em intensidade variável segundo as épocas, com destaque para os formidáveis desequilíbrios e as carências temporárias – nossa tradicional “vulnerabilidade externa” – introduzidos a partir de 1929 e, sobretudo, no decurso da Segunda Guerra Mundial. 

Mas, as condições externas, o ambiente regional, as circunstâncias históricas e, sobretudo, a situação econômica e a política doméstica foram fundamentalmente diferentes, para esses “sucessores” do período militar, do que elas tinham sido para os titulares da chancelaria brasileira na primeira metade do século XX. Estes não cabiam nos “sapatos” do Barão, tão impressionante tinha sido a sua presença à frente do Itamaraty entre 1902 e 1912 – e certamente desde antes, na resolução de várias pendências lindeiras –, mas os segundos, constrangidos pela geopolítica algo maniqueísta do período militar, foram, mais do que sucessores, um conjunto heteróclito de herdeiros distantes do Barão do Rio Branco. A sucessão, se o termo se aplica, se justificaria, provavelmente, pelo que Ricupero chama de “paradigma Rio Branco” – uma agenda institucional fixada pelo próprio Itamaraty, raramente deixada, portanto, ao humor mutável de políticos ignorantes em política internacional – e a notável continuidade que isso implicou para a nossa política externa. De fato, o termo sucessores só se compreende nessa perspectiva, a de uma mesma linha de atuação ao longo do tempo, o que nem sempre foi o caso de nossos vizinhos mais voláteis politicamente e, em conseqüência, mais erráticos em suas respectivas diplomacias. 

Lido o prefácio de Ricupero e a introdução do autor – que ressalta os elementos principais da cronologia econômica e política desses anos –, recomenda-se ao leitor saltar ao epílogo, pois ali se faz uma síntese das diferenças e particularidades daquela época em relação às ulteriores, o que permitirá começar a ler os capítulos vinculados a cada chanceler com uma noção do que é permanente e do que foi diferente no tocante aos problemas enfocados, seja no plano sincrônico, seja em perspectiva diacrônica. Permito-me transcrever dois trechos importantes desse epílogo: “Apresentar balanço da política externa executada pelos Sucessores do Barão durante o regime militar brasileiro constitui tarefa complexa, pois a leitura dos fatos ocorridos no período entre 1964 e 1985 não permite julgamentos categóricos, uma vez que não houve uniformidade nas ações diplomáticas, embora tenham se apresentado algumas características constantes. A falta de uniformidade se evidencia quando se compara, por exemplo, de um lado a prioridade dada ao relacionamento com os Estados Unidos durante o governo Castello Branco (especialmente com Juracy Magalhães) e, de outro, a distância entre Washington e Brasília durante os governos de Geisel e Carter. As diferenças aparecem também no relacionamento com Portugal e territórios de expressão portuguesa, bem como na política com relação ao Oriente Médio que passou de eqüidistância para claro apoio a várias das teses árabes e palestinas” (p. 439). Fernando Mello Barreto chama a atenção, logo em seguida, para a constância do binômio “segurança com desenvolvimento”, que seria o mote do governo militar, manifestada na vertente externa pela defesa acirrada da soberania nacional, embora comprometida esta pelas nossas limitadas possibilidades de mudar, de modo sensível, o sistema internacional. 

A transcrição do penúltimo parágrafo oferece um balanço honesto da diplomacia do período militar: “Apesar dos enormes obstáculos econômicos externos que enfrentou a diplomacia, sobretudo no final do período, a política externa do período militar alcançou os objetivos a que se propôs: o Brasil se manteve distante de conflitos internacionais (não enviou tropas ao Vietnã e sua ação militar se limitou à liderança de forças interamericanas na República Dominicana); aproximou-se de seus vizinhos (inclusive a Argentina no último governo do período); assegurou a cooperação amazônica; ampliou as exportações para além de fronteiras ideológicas; neutralizou as ações argentinas contrárias à construção de Itaipu; manteve o fornecimento de petróleo pelos países árabes e resistiu às pressões americanas contrárias ao acordo nuclear com a Alemanha” (p. 495-6). O autor relembra que algumas dessas posturas seriam revistas posteriormente – como a recusa do TNP, a aceitação do sionismo como uma forma de racismo e a resistência soberanista no tratamento das questões ambiental e dos direitos humanos –, objeto de um terceiro volume da obra, que ele fica nos devendo. 

Feito o balanço sumário e incorporada essa perspectiva abrangente da política externa no período militar, cabe agora ao leitor penetrar na leitura detalhada de cada um dos capítulos, que não são numerados nem datados, levando simplesmente os nomes dos titulares da chancelaria. Vasco Leitão da Cunha, da carreira diplomática, inaugura o período, com uma “nova política externa”, na verdade uma volta ao velho alinhamento diplomático com os EUA, política que se acreditava superada a partir da “política externa independente” de Jânio e Jango. Estávamos em plena Guerra Fria e o problema de Cuba dominou as relações interamericanas durante a maior parte da década. Juracy Magalhães, militar e político, foi o segundo chanceler da presidência Castello Branco, tendo ficado tristemente famoso pela frase segundo a qual “o que [era] bom para os EUA, é bom para o Brasil”, o equivalente, como lembra Ricupero, das “relações carnais” que o governo Menem quis ter com os EUA, de uma fidelidade canina ao chamado Ocidente.

O governo Costa e Silva introduz a “diplomacia da prosperidade”, conduzida pelo político e banqueiro Magalhães Pinto. Ocorre, então, uma volta a padrões autônomos de política externa, que, se não chega a ser tão “independente” quanto à do início da década, pratica o “desalinhamento” da recusa ao TNP e o desenvolvimentismo do início da NOEI, a “nova ordem econômica internacional”, que seria mais tarde enterrada por Reagan e Tatcher. A “nuclearização pacífica” do Brasil, prometida por Magalhães Pinto em abril de 1967, logo se chocaria com a realpolitik dos EUA: o Brasil mantinha a posição oficial de que explosões “pacíficas” poderiam ser empregadas em “grandes obras de engenharia, [para] interligar bacias fluviais, abrir canais e portos, consertar enfim a geografia” (p. 128).

Gibson Barboza, diplomata de carreira, foi o chanceler do presidente Médici, na fase mais dura do regime militar, também a de maior crescimento econômico. A despeito do fechamento do governo no binômio “segurança e desenvolvimento” e da disseminação de regimes militares na América Latina, o Itamaraty, paradoxalmente, nunca foi tão livre para conduzir uma diplomacia essencialmente profissionalizada e extremamente ativa, em quase todos os cenários abertos à sua atuação, entre eles o da África. Os EUA continuavam a se opor à política nuclear do Brasil, mas Nixon, de maneira infeliz, proclamou a liderança brasileira na região, o que certamente prejudicou muito os esforços então empreendidos pelo Itamaraty para a integração física do continente. 

Azeredo da Silveira, outro diplomata de carreira, ocupou a chancelaria sob Geisel, o mais desenvolvimentista dos presidentes e o mais interessado em política externa. Todo o governo foi marcado pelo primeiro choque do petróleo, pelo reconhecimento da China e pela guerra civil angolana, temas que mobilizaram intensamente a diplomacia, colocada sob a égide do “pragmatismo responsável”. Silveira presidiu à expansão do serviço exterior e aproximou-o ainda mais dos países em desenvolvimento, mesmo sob críticas internas de setores da direita. Fernando Mello Barreto caracteriza a política externa regional, nessa época, como de “dificuldades platinas e êxito amazônico” (p. 245), em alusão às disputas com a Argentina sobre o aproveitamento dos recursos hidroelétricos do Paraná e à conclusão do Tratado de Cooperação Amazônica. Persistiram os conflitos com os EUA, sobretudo depois da assinatura do acordo nuclear com a Alemanha (1975) e da cessação, por rompimento brasileiro, do acordo militar com os EUA (1977).

Saraiva Guerreiro, também de carreira, foi o último chanceler da era militar, atuando sob o impacto da segunda crise do petróleo e da crise da dívida externa, mas com certa independência, uma vez que o general Figueiredo não se envolvia muito em temas diplomáticos. A política externa foi então considerada como sendo “universalista”, mas o seu principal feito foi mesmo começar o período concluindo um acordo com a Argentina e o Paraguai em torno da questão de Itaipu (1979). Ainda mais surpreendente, foram assinados acordos de cooperação militar e nuclear com o vizinho platino, bases de todo o processo ulterior de cooperação e de integração. Como demonstra Mello Barreto, durante todo o regime militar o PIB brasileiro faria um progresso espetacular, ao passo que o argentino praticamente estagnou. A seção econômica nesse capítulo é a mais longa do livro et pour cause: nunca o Brasil enfrentou tantos problemas como nos anos 1980, com declínio do PIB e aumento da dívida externa. O fim do regime militar e a transição para a democracia no Brasil coincidiu, no plano mundial, com o início do fim do socialismo enquanto regime alternativo ao capitalismo: novos tempos e novas políticas, de que o autor tratará em seu terceiro volume. 

Ricupero sublinha com razão, em seu prefácio, a “solidez do levantamento cuidadoso do encadeamento dos acontecimentos”, a “linguagem clara, direta e sem obscuridades com que a narrativa articula os fatos e decisões mais importantes”, a “rica documentação que ampara e fundamenta cada etapa da construção da trama expositiva, com farta utilização dos mais expressivos e reveladores trechos de discursos e documentos da época, bem como a exaustiva fundamentação do texto em notas de origem ou elucidativas, as quais chegam, em certos capítulos, a mais de 600”. Não se pode deixar de concordar com ele em que se trata de “trabalho pioneiro sobre período histórico ainda próximo, e por isso mesmo, percebido confusamente como magma de lembranças sem forma definida”. Impossível, tampouco, não concluir com Ricupero: “Será, por muito tempo, creio, a obra insubstituível para encetar o estudo de um dos períodos da história da política exterior do Brasil com implicações mais determinantes para a fase que vivemos hoje”. Um importante instrumento de trabalho para os pesquisadores, o índice remissivo, ausente da maior parte dos livros publicadas no Brasil, completa este volume, que passa a figurar em plano elevado na bibliografia especializada. Que venha logo o terceiro volume!

 

Paulo Roberto de Almeida

[Brasília, 4 novembro 2006]

Revista Política Externa (São Paulo: vol. 15, n. 3, dez. 2006-fev 2007, p. 191-196; ISSN: 1518-6660). Versão resumida publicada, sob o título de “Diplomacia durante a ditadura”, na revista Desafios do Desenvolvimento (Brasília: ano 3, nº 29, dezembro 2006, p. 63). Plenarium (Brasília: Câmara dos Deputados; ano V, n. 5, maio 2008, p. 310-315; ISSN: 1981-0865).





sábado, 17 de junho de 2023

Os Anos 80: da nova Guerra Fria ao fim da bipolaridade - Paulo Roberto de Almeida (capítulo de livro)


  Um capítulo de livro agregado às plataformas abertas aos estudantes e pesquisadores, já publicado em 1997, mas o capítulo em questão tinha sido revisto em 1999 para uma nova edição, o que nunca ocorreu, como explico abaixo: 

Em meados de junho de 1995, residindo em Paris, recebi convite de amigos, colegas professores na Universidade de Brasília, relacionados abaixo, para oferecer colaboração a um volume que estava sendo preparado para publicação didática, tendo apresentado um primeiro esquema de conformidade ao trabalho n. 481, aqui registrado: 

 

481. “Os Anos Oitenta: transformações no cenário mundial”, Paris, 19 junho 1995, 1 p. Projeto de capítulo em obra coletiva sobre a história das relações internacionais contemporâneas, dirigida pelos Profs. Flávio Sombra Saraiva e Amado Luiz Cervo, do Dep. de História da UnB. Em curso de preparação.

 

Atendi ao convite, oferecendo um texto que passou por diversas revisões, inclusive debate presencial em 1996, já de volta a Brasília, até que o trabalho fosse incorporado ao livro abaixo registrado sob n. 519, publicado em 1997, pela editora Paralelo, ainda assim como algumas imperfeições de revisão sob responsabilidade da editora. Dispus-me a oferecer um texto inteiramente revisto, que não recebeu qualquer novo número de original, preparado em junho de 1999, destinado a ser publicado pela Editora da UnB, o que nunca ocorreu, como está registrado abaixo.

 

519. “Os Anos 80: da nova Guerra Fria ao fim da bipolaridade”, Brasília, 19 de março 1996, 21 p. Texto analítico expositivo e interpretativo sobre as grandes mudanças no cenário internacional nos anos 80, destinado a servir como capítulo em livro de história das relações internacionais. Projeto original: Paris, trabalho nº 413, 19/06/1995; 1ª versão preliminar: Brasília, 21/03/1996; 2ª versão preliminar: 27/03/1996; 3aª versão preliminar: 09/09/1996, 41 p.; 5ª versão preliminar: 04/12/1996, 41 p.; 5ª versão, final: 20/03/1997, 42 p. Publicado em Flávio Sombra Saraiva (org.), Amado Luiz Cervo, Wolfgang Döpke e Paulo Roberto de Almeida, Relações internacionais Contemporâneas: da construção do mundo liberal à globalização, 1815 a nossos dias (Brasília: Paralelo 15, 1997), p. 303-353. Relação de Publicados nº 209. Revisão em 17 de junho de 1999, para segunda edição, sob responsabilidade da Editora da UnB; não publicado.

 

Esse é o texto oferecido neste arquivo, ao qual me permiti agregar o esquema original e uma bibliografia preparada anteriormente cobrindo o mesmo período:

 

175. “Os Anos Oitenta: Transformações no Cenário Mundial”, Genebra, 25 novembro 1989, 6 p. Levantamento bibliográfico e seleção de material (inclusive cronologia retirada de números especiais da Foreign Affairs) sobre a evolução econômica, política e diplomática do cenário mundial na década de 80.

 

Disponível via Academia.edu, link: https://www.academia.edu/103480542/Os_anos_oitenta_da_nova_Guerra_Fria_ao_fim_da_bipolaridade_1999_

e via Research Gate, link: https://www.researchgate.net/publication/371667242_Os_anos_oitenta_da_nova_Guerra_Fria_ao_fim_da_bipolaridade 

 

Capítulo VIII:

Os anos oitenta:

da nova Guerra Fria ao fim da bipolaridade

 

Paulo Roberto de Almeida


Sumário:

1. Dez anos que abalaram o mundo

     O ocaso do socialismo e seu impacto nas relações internacionais

     Fim da Guerra Fria e transformações no cenário internacional

2. Nova Guerra Fria e agonia final do socialismo

     Relações entre as superpotências: o momento unipolar

     O socialismo na contracorrente da História

     Razões da derrocada socialista: irrelevância internacional

     Impossibilidade de reforma e perda de prestígio externo

3. A economia mundial: crise, crescimento e diversificação

     Integração de mercados financeiros e anarquia monetária

     Comércio internacional: crescimento e protecionismo

     Globalização e regionalização: tendências irresistíveis?

     Fragmentação e diversificação do Sul

4. Os problemas globais: a nova agenda internacional

     Novos e velhos problemas: a complexa agenda mundial

     Limites da soberania estatal

5. Relações estratégicas internacionais e conflitos regionais

     Controle de armamentos: contenção nuclear vertical e horizontal

     Conflitos regionais: a disseminação horizontal

     A Ásia e o enigma chinês

     Progressos na busca da segurança coletiva

6. A nova balança do poder mundial: um cenário mutável

     A era do Pacífico?

     A emergência de múltiplas polaridades

     A América Latina e o Brasil no contexto internacional


Charada para Lula na Ucrânia - Silvio Queiroz (CB)

Charada para Lula na Ucrânia

por Silvio Queiroz
Correio Braziliense | Conexão Diplomática
17 de junho de 2023

O convite não tem ainda data nem local, mas já apresenta um punhado de incógnitas para o Planalto e o Itamaraty na questão encarada como chave para a inserção do Brasil na primeira linha da política internacional. O governo da Ucrânia convidou oficialmente o presidente Lula a participar de uma cúpula na qual pretende reunir países de diferentes regiões para discutir sua proposta de solução pacífica para a guerra com a Rússia.

De saída, a ausência do governo russo entre os convidados coloca em questão os impactos práticos potenciais desse encontro. Somada a esse elemento, a pauta assentada sobre a agenda de paz desenhada em Kiev inspira cuidados quanto ao risco de que a presença do presidente sirva apenas para encorpar um evento destinado basicamente a fortalecer a posição do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky.

O dilema para Lula, o assessor especial Celso Amorim e o chanceler Mauro Vieira é pesar os prós e contras de comparecer ou declinar do convite. A ausência do Brasil em um foro que reúna um número significativo de governos pode resultar na perda de espaço para atuar como interlocutor com trânsito entre ambas as partes em conflito e facilitador de um diálogo direto entre elas.

Desde já, os envolvidos na concepção e no planejamento da política externa se debruçam sobre a charada ucraniana em busca da melhor resposta, do ponto de vista da diplomacia brasileira.

Brics em jogo

Em círculos da base governista, a iniciativa de Zelensky é vista sob a suspeita de configurar uma manobra do eixo EUA-Europa-Otan para abrir uma cunha no Brics. Paralelamente ao gesto de Kiev em direção ao Brasil, a Casa Branca faz movimentos na direção da Índia. Joe Biden deve levar à reunião de cúpula com o premiê Narendra Modi, na semana que entra, a oferta de drones de uso militar produzidos pela indústria bélica americana.

Até o momento, o governo indiano se mantém estritamente neutro na guerra da Ucrânia. Ao contrário do Brasil, que votou a favor de uma resolução pela qual a Assembleia-Geral da ONU condenou a Rússia e exigiu a retirada de suas tropas, a Índia se absteve, acompanhando a posição de China e África do Sul, que completam o Brics.

O quinteto emergente terá em agosto uma reunião de cúpula presencial na África do Sul. Embora estejam no centro da pauta a ação do bloco no continente africano e pedidos de ingresso feitos por cerca de 20 países, a guerra que envolve um dos fundadores terá seguramente lugar central.

Corre por fora

Coincidência ou não, a África faz uma iniciativa paralela na direção de favorecer a abertura de conversações diretas entre Kiev e Moscou. Chefiada pelo presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, uma delegação de sete líderes do continente faz, desde ontem, a ponte entre a capital ucraniana e a cidade russa de São Petersburgo. Lá, tem encontro previsto com o presidente Vladimir Putin, à margem de um fórum econômico multilateral.

Pelo número de assentos que ocupa na ONU -- são 54 -- a África tem sido cortejada em diferentes ocasiões. Entre outros fatores, pela capacidade da União Africana de concatenar a votação em bloco nas decisões mais importantes da Assembleia-Geral. Foi com esse apoio maciço, por exemplo, que o Brasil garantiu, no primeiro período presidencial de Lula, a direção da agência para agricultura e alimentação, a FAO.

Agenda dividida

A Ucrânia dividirá com a questão ambiental, sobretudo as mudanças climáticas, a pauta da próxima investida da diplomacia presidencial de Lula. Na semana que se inicia, ele visitará o papa Francisco e seguirá para Paris, ao encontro do colega Emmanuel Macron. No Vaticano, a guerra deverá ocupar espaço privilegiado, embora o pontífice venha enfatizando sua preocupação com os impactos do aquecimento global, sobretudo para os países mais pobres.

Na França, o presidente brasileiro terá oportunidade para afinar com o anfitrião posições sobre o caminho para abreviar o conflito na Ucrânia. Embora alinhado com os parceiros no eixo EUA-UE-Otan, Macron tem acenado com alguma abertura para iniciativas como a proposta feita pelo presidente chinês, Xi Jinping. Lula, no entanto, terá de gastar as habilidades de negociador em um terreno que tem intersecções com a agenda climática.

O presidente francês está entre os entusiastas do retorno ao Planalto de um governo comprometido com a discussão multilateral sobre o tema e comprometido com o Acordo de Paris sobre o clima, Mas, igualmente, tem sido no âmbito da UE o líder mais firme na exigência de cláusulas ambientais como condição para a ratificação do acordo comercial com o Mercosul.

O tema esteve à mesa durante a visita a Brasília da presidente da Comissão Europeia (CE), Ursula von der Leyen. Ela ouviu críticas a sanções previstas unilateralmente na legislação da UE, à margem do texto negociado com o bloco sul-americano.

sexta-feira, 16 de junho de 2023

As corporações em seus quadrados respectivos: militares e diplomatas - Paulo Roberto de Almeida

 Nunca concordei inteiramente com essa ideia de que a guerra é muito importante para ser deixada apenas para os militares. Esse tipo de simplismo repetido quinhentas vezes estes muito errado. Os militares profissionais TÊM de estar necessariamente associados ao processo decisório de qualquer questão externa (por vezes até interna) que envolva a segurança nacional, o território da pátria e a soberania. Ponto.

Por outro lado, eu certamente NÃO concordo com uma frase que pretenderia que a diplomacia é muito importante para ser deixada apenas a diplomatas. Pode até ser, mas em circunstâncias muito específicas, naquelas que envolvem aspectos não diretamente diplomáticos de problemas externos.
Mas CERTAMENTE, a diplomacia é uma coisa muito importante para ser deixada a NÃO DIPLOMATAS.
Do contrário, dá nisso que estamos assistindo por aí: o amadorismo rebaixando as melhores tradições da política externa do Brasil, violando princípios e valores de nossa diplomacia, e rebaixando o conceito do Brasil no mundo, inclusive em contradição com a Carta da ONU e os interesses nacionais, que passam a ser guiados pelos instintos dos mandantes da ocasião e os adeptos de determinadas causas políticas, carregadas de simpatias ideológicas ou de antipatias a determinados países.
Não preciso entrar em detalhes sobre o que está ocorrendo com a nossa política externa, já demolida no governo anterior, e bastante arranhada atualmente, assim como as tribulações da diplomacia profissional, que precisa acomodar preferências pessoais do chefe de plantão...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 16/06/2023

Postagem em destaque

Livro Marxismo e Socialismo finalmente disponível - Paulo Roberto de Almeida

Meu mais recente livro – que não tem nada a ver com o governo atual ou com sua diplomacia esquizofrênica, já vou logo avisando – ficou final...