terça-feira, 5 de dezembro de 2023

A ameaça venezuelana - Editorial, O Estado de S. Paulo

A ameaça venezuelana

Editorial, O Estado de S. Paulo (05/12/2023)

Lula deveria usar sua proximidade com Nicolás Maduro para convencê-lo a não agredir a Guiana

Regimes ditatoriais são ávidos em explorar paixões nacionalistas como meio de sobreviver, em especial quando desafiados pelos desastres que engendraram. Não é diferente na Venezuela de Nicolás Maduro. Ao iniciar a construção de uma segunda base militar na fronteira leste e conduzir, no último domingo, a farsa de um plebiscito sobre a anexação de 70% do território da Guiana, o autocrata bolivariano deslanchou a primeira ameaça bélica na América do Sul desde 1991. Do episódio, salta à vista a inação do Brasil. Em vez de advertir claramente o vizinho sobre os riscos de uma aventura regional desestabilizadora, o presidente Lula da Silva limitou-se a dizer que a América Latina “não precisa de confusão”.

Não se trata de “confusão”, e sim de ameaça explícita de agressão à Guiana por parte da Venezuela, que inventou uma consulta popular obviamente fajuta para revestir de legitimidade sua reivindicação territorial. Como já fez no caso do ataque injustificado da Rússia contra a Ucrânia, Lula da Silva tratou a ameaçadora Venezuela e a ameaçada Guiana como se fossem igualmente responsáveis pela “confusão”. Segundo o presidente brasileiro, é preciso que “o bom senso prevaleça do lado da Venezuela e da Guiana”. Ora, só há falta de bom senso de um lado, o da Venezuela do “companheiro” Nicolás Maduro.

Não há dúvidas sobre as más intenções do ditador venezuelano, que aceitou a realização de uma eleição presidencial aberta e monitorada em 2024 em troca da suspensão temporária de sanções pelos Estados Unidos. Nada indica que cumprirá esse acordo, celebrado em Barbados em outubro passado, dadas as travas de seu regime às candidaturas da oposição.

Nessa lógica, insuflar o nacionalismo, ao resgatar uma causa apoiada também por alguns de seus detratores, parece uma jogada característica de quem precisa recuperar a popularidade em meio à crise generalizada no país.

A Venezuela reivindica há dois séculos a soberania sobre Essequibo, uma faixa de 160 quilômetros quadrados no oeste da Guiana. Desdenha de arbitragens e acordos anteriores e, agora, de recentes orientações da Corte Internacional de Justiça. Não se pode abstrair o fato de a controvérsia ter sido pinçada por Maduro quando a Guiana se vê catapultada economicamente pela exploração petrolífera na região em disputa – e desguarnecida de força de defesa. Tampouco é possível ignorar o fato de o Brasil estar, literalmente, no meio do vespeiro. Porta de fuga de venezuelanos desesperançados, Roraima faz fronteira com ambos os países.

A circunstância geográfica, por si só, exige do Brasil uma posição neutra, equilibrada e ativa na busca de uma solução diplomática. Lula da Silva deveria usar sua condição de “companheiro” de Maduro para convencê-lo a desarmar os ânimos. A cada dia de imobilismo e de miopia diante dos arroubos de Maduro, porém, a Guiana se verá empurrada a buscar proteção militar nos EUA. A escalada é preocupante e requer do Estado brasileiro o dever estratégico nacional e regional de levar a Venezuela a manter a paz, o maior capital geopolítico da América do Sul.

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Grato a Augusto de Franco pela transcrição.


Nossos boizinhos espalhados não são culpados pelas emissões de carbono, diz novo estudo (Folha de S. Paulo)

 Emissão de gases pela pecuária é menor que o divulgado, diz estudo

Folha de S. Paulo, 5/12/2023

Há problemas, mas os diversos sistemas devem ser avaliados de formas diferentes

É o que mostram estudos de cientistas e de universidades que se debruçam sobre o tema. Esses relatórios influenciaram a elaboração de políticas, principalmente na União Europeia, tiveram ampla divulgação e moldam o comportamento de parte dos consumidores.

Como essas ações afetam diretamente os pecuaristas das Américas, o IICA (Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura) desenvolveu uma agenda para avaliar problemas sensíveis entre pecuária e meio ambiente.

Nem tudo está resolvido e ainda há muito para ser feito, mas os métodos de aferição da emissão provocada pela pecuária estão equivocados, segundo estudo do cientista Ernesto Viglizzo.

Denominado "Pecuária Bovina e Mudanças Climáticas nas Américas", o estudo foi apresentado no domingo (3) na Casa da Agricultura Sustentável, espaço montado pelo IICA na COP28, em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos.

Para Viglizzo, pesquisador sobre pecuária e mudanças climáticas, os estudos que definem a participação da pecuária na emissão de gás carbônico estão, na verdade, atribuindo ao setor emissões de outras atividades que vêm no pós-porteira, como transporte, processo industrial e distribuição.

Na avaliação dele, apenas as emissões relacionadas às atividades de produção da pecuária deveriam ser computadas para ela.

Manuel Otero, diretor-geral do IICA e que participou da apresentação do estudo, afirmou que a pecuária vem passando por importantes avanços na busca de redução dos impactos no solo, na conservação de água e na queda das emissões de carbono. "Temos que demonstrar isso nos foros internacionais, e é o que estamos fazendo", afirmou.

Para Viglizzo, se fossem computadas ao gado apenas as suas emissões biogênicas (o metano e o óxido nitroso, produtos da fermentação entérica), a emissão global de carbono ficaria abaixo de 5%.

O cientista afirma que os métodos de avaliação atuais permitem determinar os produtores que geram créditos de carbono, os que são neutros e os que emitem. É preciso valorizar os primeiros, que são parte da solução, afirma. Ele propõe que o crédito capturado na pecuária se transforme em uma commodity comercial.

A aferição da pecuária não deveria ser por tonelada de carne produzida por hectare, mas por balanço de carbono gerado na terra utilizada, segundo o cientista.

Renata Miranda, secretária de Inovação do Ministério da Agricultura brasileiro, que também participou das discussões na apresentação do estudo em Dubai, diz que não se pode fazer uma comparação da produção pecuária intensiva, como a da Europa, de onde surgem os estudos, com a extensiva, como a do Brasil.

Na pecuária intensiva do hemisfério Norte, há uma concentração de animais e, consequentemente, uma emissão maior de gás carbônico por hectare.

Na extensiva, há vários fatores que vão equilibrando o sistema e capturando carbono por meio da própria pastagem e da integração de culturas como lavoura, floresta e pecuária. Não faz sentido contabilizar o sistema de pecuária europeu com o nosso, afirma a secretária.

Para Viglizzo, não se trata de isentar a pecuária de seus efeitos negativos, mas outros setores sociais e econômicos geram impactos negativos ainda maiores sem uma compensação produtiva. A pecuária é chave para regiões pouco desenvolvidas, gera renda para os produtores e é uma fonte de alimentação.

Mas nem tudo está resolvido. Miranda diz que ainda há muito para ser feito para que a pecuária reduza o efeito estufa. É necessária uma eficiência produtiva. O Brasil, maior exportador mundial de carne bovina, tem poucos animais por hectare.

É preciso melhorar a pastagem e aprimorar a genética dos animais. Com isso, haverá uma redução de animais e uma produção maior de carne. Essa eficiência produtiva gera uma maior eficiência climática, afirma.

É preciso acelerar o processo de engorda e de diminuição do gado no pasto. Ganham os produtores, que terão menos gastos, e o clima, devido à emissão menor de carbono.

A União Europeia faz ameaças de restrições e penalização comercial, mas as Américas são um conjunto heterogêneo de países, os quais implementam sistemas diferentes de produção de carne bovina.

O estudo de Viglizzo mostra que a pecuária extensiva pode capturar de 0,25 a 0,63 tonelada de carbono por hectare por ano. Já a pecuária intensiva, um método muito utilizado no hemisfério Norte, tem um balanço negativo de até 6,5 toneladas de carbono por hectare. Segundo o estudo, cada sistema deve ser olhado de uma maneira.

Essas diferenças de sistemas devem ser levadas em consideração no momento da aplicação de penalizações ou restrições comerciais. Nas duas últimas décadas, vários estudos acadêmicos e científicos se tornaram eco do impacto supostamente negativo da pecuária, mas essa visão omite seletivamente a consideração de outros papéis e funções sociais que os sistemas de produção bovina desempenham no meio ambiente e nos ecossistemas, afirma o pesquisador.

Quanto ao desmatamento de florestas nativas, existe uma correlação entre pecuária e desmatamento no Brasil, no Paraguai e na Colômbia. Em alguns países, porém, o desmatamento está associado a outras atividades, inclusive à produção de soja, aponta o estudo.

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/vaivem/2023/12/emissao-de-gases-pela-pecuaria-e-menor-que-o-divulgado-diz-estudo.shtml

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

O despreparo de todas as partes na questão do conflito Venezuela-Guiana - G1, Paulo Roberto de Almeida

Uma reflexão sobre o conflito da atualidade na América do Sul.

Primeiro a notícia:

 O regime de Nicolás Maduro anunciou que 95% dos eleitores venezuelanos aprovaram em plebiscito a criação de um novo estado na região de Essequibo, território da Guiana rico em petróleo e reivindicado por Caracas desde 1841. O presidente da Guiana, Mohamed Irfaan Ali, disse que a diplomacia será sua “primeira linha de defesa” e que trabalha para garantir a integridade de suas fronteiras. Em Dubai, o presidente Lula disse esperar “bom senso” dos colegas da Venezuela e da Guiana. “O que a América do Sul não está precisando é de confusão. Não se pode ficar pensando em briga. Espero que o bom senso prevaleça, do lado da Venezuela e do lada Guiana”, disse. Embora não acredite num enfrentamento, o Brasil reforçou a presença militar na fronteira com os dois países. (g1)”

Agora meu comentário (PRA):

O Essequibo NUNCA pertenceu juridicamente à República da Venezuela independente. No período colonial foi vagamente associado à antiga Capitania da Venezuela. A ocupação holandesa e sua posterior cessão ao Reino Unido mudaram a geografia política e humana da área desde o século XVIII.

O colonialismo e o imperialismo europeus criaram novas realidades não só nas Américas, desde os “descobrimentos”, mas assim o fizeram também em todas as demais partes do munfo desde essa época. Criaram novas realidades humanas, sociais e políticas, assim como fizeram todis os antigos impérios, na Ásia, no Oriete Médio e na própria Europa, com o império romano, por exemplo.

Pretender erradicar as transformações ocorridas, por vezes por meio de grandes violências contra autóctones (muitas vezes também imigrantes ou conquistadores) representaria exercer ainda maior violência sobre essas novas realidades criadas em processos seculares de invasão e dominação.

Volto a dizer: a Venezuela independente desde o inicio do século XIX NUNCA exerceu dominio legal e reconhecido sobre o território do Essequibo. O Reino Unido usurpou território que não era seu? Certamente, mas o mesmo ocorreu antes com HOLANDESES e os próprios ESPANHOIS.

Pergunto: Até quando a ditadura venezuelana vai criar um problema para dla mesma, para os guianenses, para o Brasil (que detinha parte desse território) por questões mal resolvidas de sua própria história e de suas ambições atuais?

Paulo Roberto de Almeida 

domingo, 3 de dezembro de 2023

Itamaraty, cultura, intelectuais, Alberto da Costa e Silva: os textos mais acessados em Academia.edu - Paulo Roberto de Almeida

 Esta semana foi dedicada aos intelectuais do e no Itamaraty, e ao grande Alberto da Costa e Silva. 

Trabalhos mais acessados: 

 

Diplomacia e Cultura - Alberto da Costa e Silva (2001)

99

78

Intelectuais na cultura e na diplomacia, no mundo e no Brasil

82

62

Guiana: postagens no blog Diplomatizzando (2015-2023)

66

53

1424) Políticas de integração regional no governo Lula (2005)

44

28

O Itamaraty na Cultura Brasileira (2001)

43

37

14) O Estudo das Relações Internacionais do Brasil (2006)

43

36

Manifesto Globalista (2020)

39

35

Falacias Academicas: um livro incompleto (2010)

36

31

2784) Academia.edu: uma plataforma de informação e colaboração entre acadêmicos (2014)

35

30

 

O conflito Venezuela-Guiana, o Direito Internacional e a diplomacia do Brasil - Ricardo Seitenfus

O conflito Venezuela-Guiana, o Direito Internacional e a diplomacia do Brasil

Ricardo Seitenfus

PRA: Ricardo Seitenfus, historiador aposentado da Universidade Federal de Santa Maria (RS), me envia suas observações sobre o conflito nas fronteiras do Brasil, prestadas à BBC Brasil e ao O Globo, mas transcritas apenas parcialmente: 


"A consulta aos eleitores venezuelanos tem dois objetivos internos. Por um lado demonstrar uma união nacional por um Essequibo venezuelano e por outro, que esta união seja personalizada pela figura de Maduro.
Do ponto de vista externo se trata de demonstrar que Caracas não aceita o histórico statu quo e indica que outras ações virão.
Maduro pretende se perpetuar no poder e como está correndo riscos com uma possível derrota em 2024, tenta reverter a situação em seu favor identificando um inimigo externo. Estratégia conhecida que foi utilizada, por exemplo, pelos generais argentinos quando decidiram invadir as Malvinas/Falkland.
O que Maduro fará com uma vitória que se apresenta como acachapante ? A propósito, essa consulta abriga um aspecto ubuesco na medida em que quem deveria ser consultado são os habitantes de Essequibo ou os guianeses e não os venezuelanos. Uma demonstração da singularidade das ditaduras latino-americanas e de seus potentados tão bem descritos por Gabriel Garcia Márquez.
Caso Maduro decida colocar em marcha a vontade venezuelana que sairá da consulta ele tem 2 caminhos. Por um lado prosseguir o diálogo político sob os auspícios das Nações Unidas como previsto no Acordo de Genebra de 1966. Penso que Maduro terá dificuldades de desconhecer o resultado da consulta e portanto ele deverá inovar. Como? Esse e o segundo caminho: uma operação militar de invasão do Essequibo.
Por evidente será um passeio militar. Contudo serão inúmeras as reações negativas internacionais. Os Estados Unidos - por razões estratégicas, econômicas e jurídicas - não permanecerão inertes. Assim como o Reino Unido que possui laços, afinidades e responsabilidades históricas com a Guyana.
Enfim, a posição brasileira deve ser de rechaço a qualquer operação violenta. Aqui devemos lembrar ao Governo atual que embora ele possa ter simpatias ou antipatias ideológicas, estamos frente a possibilidade de ruptura de princípios jurídicos, diplomáticos e históricos - o respeito aos tratados fronteiriços - e que nada e ninguém pode colocar em questão. 
Seria abrir a Caixa de Pandora para aventuras que a região e muito especialmente o Brasil sempre souberam evitar.
Quanto melhor for o resultado para Maduro pior será para ele no plano internacional pois ele será obrigado a agir. Ora a ação se for além de uma provável pressão sobre a Guiana, provocará reações contrárias de muitos governos. A começar pelos USA, GB, Colômbia e Brasil.
Está previsto no Acordo de Genebra de 1966 (Reino Unido, Venezuela e Guiana) que serão as Nações Unidas através da CIJ a resolver o suposto litígio.
Portanto a Venezuela NÃO pode não reconhecer a jurisdição da Corte.
Ela acatou a jurisdição em 1966 e agora em razão de uma possível derrota jurídica não respeitar a Corte.
A decisão da CIJ não é simbólica! Ela será o sustentáculo do Direito para a ação política e talvez caso necessário militar dos países aliados da Guiana, leia-se USA e Reino Unido (2 membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU).

Duas observações finais:
A. O Brasil não deveria somente propugnar uma solução pacífica mas também denunciar a ilegalidade da « consulta » deste domingo.
B. Caso insista em uma solução de força a margem do Direito, Nicolas Maduro poderá vir a ser o futuro Leopoldo Galtieri o ditador militar argentino que não somente perdeu os anéis - as Malvinas/Falkland - mas também perdeu os dedos - o poder."

Alberto da Costa e Silva ingressou no Itamaraty, para vingar-se de Rio Branco, que vetava os feios no serviço diplomático - Alvaro Costa e Silva (FSP)

No país dos macaquitos e dos barões

Alberto da Costa e Silva foi diplomata para desforrar-se de Rio Branco, que barrava os feios


Alvaro Costa e Silva

Jornalista, atuou como repórter e editor. É autor de "Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro".

Folha de S. Paulo, 1/12/2023

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/alvaro-costa-e-silva/2023/12/no-pais-dos-macaquitos-e-dos-baroes.shtml

No seu livro "Balão Cativo", Pedro Nava conta que nos tempos de Rio Branco não havia concurso para ingressar na "carrière". Era ele próprio, o barão, quem dava a palavra final na escolha dos futuros diplomatas, em geral pessoas de família influente e bem-apresentadas. O poeta Antônio Francisco da Costa e Silva, apesar de candidato dos mais qualificados, não deu nem para a saída.

 Na descrição de Nava, a face de Da Costa e Silva "parecia um bolo de miolo de pão com os furos dos olhos, das ventas e da boca". Depois de almoçar com Rio Branco, ele ouviu a sentença antes da sobremesa: "Até gosto dos seus versos e aprecio seu talento. Contra sua pretensão o que está é seu físico. Eu só deixo entrar na carreira homens de talento que sejam também belos homens. A diplomacia exige isso. Desejo-lhe boa sorte em tudo. Agora, no Itamaraty, não! O senhor aqui não entra".

O historiador e africanista Alberto da Costa e Silva, filho do poeta tão rudemente preterido, tornou-se diplomata para tirar uma desforra do barão. Numa entrevista, ele me contou mais detalhes da história familiar: "Nascido no Piauí, meu pai era um mestiço indefinido. Rio Branco primeiro o elogiou, o considerou inteligente, preparado ao extremo, bom conversador em francês, conhecedor de inglês, alemão e espanhol. Depois foi cruel, ao dizer na cara de meu pai que ele era feio e que, lá fora, já chamavam o Brasil de país dos macaquitos".

Alberto morreu no domingo (26), aos 92 anos. Ainda me lembro da sua voz emocionada ao relatar o episódio. Perguntei se Da Costa e Silva era realmente feio. "Ele tinha mãos bonitas. De perfil, era um homem passável".

Com sua produção historiográfica, Alberto da Costa e Silva explicou, como ninguém antes dele, a importância da África e da diáspora africana para que possamos entender um certo país do outro lado do Atlântico, que continua tão exclusivista como nos tempos do barão.

Expulsão de palestinos não foi planejada por Israel - Leonardo Avritzer (FSP)

 Réplica: Expulsão de palestinos não foi planejada por Israel

Artigo de professora da USP apresenta narrativa unilateral, ignora evidências e apaga papel de britânicos e países árabes

FSP, 2.dez.2023 às 23h00

Leonardo Avritzer

Professor titular do Departamento de Ciência Política da UFMG


[RESUMO] Em resposta a artigo que sustenta que a expulsão de palestinos de suas terras em 1948 foi um objetivo deliberado do então recém-criado Estado de Israel, pesquisador escreve que a autora, Arlene Clemesha, seleciona unilateralmente episódios do período, ignora o papel da rejeição do plano de partilha da ONU por árabes e busca atribuir ao establishment sionista todos os eventos relacionados à Nakba, constituindo uma má historiografia que não dá conta da complexidade do êxodo palestino.

O artigo "Historiadores veem expulsão de palestinos em 1948", de Arlene Clemesha, professora de história árabe da USP, publicado na Ilustríssima no último domingo, tem a Nakba, ou a "catástrofe", como temática. A autora defende uma visão bastante nítida, mas equivocada dos acontecimentos que fizeram com que 750 mil palestinos se tornassem refugiados ao final da guerra de 1948.

Segundo Clemesha, existe uma Nakba contínua e "o processo de expulsão, que teve seu auge naquele 1948, continua até hoje". O argumento é que se estabeleceram consensos a respeito do problema dos refugiados palestinos: o primeiro deles é que a velha historiografia israelense não retratou o episódio adequadamente ao argumentar que a guerra de 1948 foi uma guerra de defesa e que os palestinos teriam fugido a mando de seus líderes.

Concordo integralmente com a autora. Daí a centralidade da obra do historiador israelense Benny Morris na revisão da historiografia israelense clássica.

O segundo consenso, muito mais frágil e polêmico, é que Morris não teria ido suficientemente longe em sua crítica à historiografia israelense tradicional, "uma vez que reconhecia a expulsão, mas negava a motivação". A partir daí, Clemesha cita equivocadamente ou, no mínimo, unilateralmente os episódios que levaram ao problema dos refugiados palestinos.

Para a historiadora, o objetivo israelense em 1948 foi, desde o início, a expulsão dos palestinos da região que veio a se tornar o Estado de Israel. 

Clemesha menciona apenas secundariamente a rejeição da partilha por árabes e palestinos, mas, ao que parece, não estabelece qualquer relação entre a não aceitação da partilha do território do mandato britânico na Palestina, aprovada pela Assembleia Geral da ONU em novembro de 1947, e os acontecimentos de 1948.

Neste artigo, apresentarei três críticas ao texto publicado nesta Folha. Em primeiro lugar, não há como discutir Nakba e 1948 sem abordar a rejeição de palestinos e países árabes da resolução de partilha.

Em segundo lugar, a discussão realizada pela autora sobre o êxodo palestino de Haifa vai completamente contra a historiografia estabelecida. Esse é um dos casos em que há provas contundentes, a partir de fontes independentes, de que houve tentativas tanto dos israelenses quanto dos britânicos de convencer a população palestina a não deixar a cidade.

Não se trata de um assunto menor, uma vez que aproximadamente 75 mil palestinos deixaram Haifa em 1948, pelo menos 10% do número total de refugiados.

Por fim, a tentativa de atribuir ao establishment sionista — especialmente a Haganá, a entidade que se tornaria a IDF (Forças de Defesa de Israel) depois de maio de 1948 — todos os episódios relacionados ao êxodo palestino parece constituir uma má historiografia, cujo objetivo aparenta ser o de colocar todos os israelenses em um mesmo plano, sem diferenciar as nuances políticas que foram e continuam sendo fundamentais para entender o conflito com os palestinos.

Neste artigo, utilizarei em parte a mesma bibliografia de Clemesha, atribuindo peso diferente às obras dos autores elencados acima.

Comecemos pelos acontecimentos de 1948, gestados em novembro de 1947. 

A resolução 181 da Assembleia Geral da ONU, de 29 de novembro de 1947, encontrou a oposição dos países árabes ao longo de todo o processo de discussão da partilha. O comitê designado pela ONU que trabalhou entre maio e agosto de 1947 recomendou, por maioria, a divisão do território da Palestina.

No dia 30 de novembro, às 8h, ou seja, poucas horas depois da votação da ONU, dois ataques foram realizados contra ônibus israelenses na planície costeira (Morris, 1948, p. 76). Poucos dias depois, a Liga Árabe, então constituída por Arábia Saudita, Egito, Iêmen, Iraque, Líbano, Síria e Transjordânia, rejeitou a partilha (Ben-Dror, 2007).

Nesse ponto, o trecho do artigo da autora que resgata um acontecimento controverso em Haifa em 30 de dezembro daquele ano está equivocado em identificá-lo como o primeiro ato de violência depois da partilha. 

Está errada também a própria descrição do evento, na qual a autora ignora um massacre de trabalhadores judeus no episódio da refinaria de Haifa, como ficou conhecido. Não houve êxodo palestino após o episódio relatado pela autora.

Assim, a rejeição da partilha pela Liga Árabe e pelos líderes palestinos jogou a questão das fronteiras políticas dos dois Estados para o campo militar, decisão pela qual o líder palestino Mahmoud Abbas expressou arrependimento mais de 60 anos depois.

A guerra de 1948 teve duas fases: a primeira, de novembro de 1947 até a retirada dos britânicos da região, em 14 de maio de 1948; a segunda, posterior a essa data, contou com o envolvimento dos exércitos egípcio, jordaniano, sírio e libanês.

Na primeira fase, conhecida como uma guerra civil, o padrão fundamental foi o mesmo: tanto os judeus-israelenses quanto os palestinos tentaram homogeneizar etnicamente as áreas que lhes haviam sido concedidas pela partilha das Nações Unidas. Até mesmo os britânicos atuaram na mesma direção, cedendo fortes e postos militares para cada um dos dois grupos, conforme as indicações da partilha (Morris, 2008, p. 76-80).

Porém, à medida que 14 de maio de 1948, data marcada para a retirada dos britânicos da região, se aproximava, começaram a surgir movimentos de ambas as partes, sobretudo nas cidades mais populosas e com populações mistas. Entre essas cidades, se destaca Haifa, sede da central sindical israelense, a Histadrut, e na qual emergiram alianças entre árabes. Em diversas oportunidades, foram criadas na cidade associações entre árabes e judeus, até mesmo durante o atual conflito em Gaza.

Diferentemente do que alega Clemesha, os eventos que marcaram o primeiro êxodo palestino em uma grande cidade durante a guerra de 1948 ocorreram em 21 e 22 de abril daquele ano, portanto, ao final da primeira fase da guerra civil. Os choques militares entre israelenses e palestinos em Haifa aconteceram a partir de uma reorganização da posição das tropas britânicas na cidade naqueles dias.

De acordo com Morris, o então comandante britânico em Haifa, Hugh Stockwell, chamou israelenses e palestinos às 10h do dia 21 em seu escritório e pediu que ambos os lados evitassem conflitos (1987, p. 75). As hostilidades começaram quando a Haganá tomou alguns alvos militares na região central da cidade.

Stockwell convocou uma reunião na prefeitura de Haifa às 16h de 22 de abril de 1948. Essa reunião, decisiva para o começo do êxodo palestino, tem diversas versões: segundo Morris, Stockwell pediu moderação, o que foi aceito pela delegação da Haganá presente, e propôs um armistício.

No entanto, depois da derrota militar sofrida pelos palestinos no dia anterior, a delegação palestina afirmou "que eles não estavam em posição de assinar um armistício; que eles não tinham controle sobre as forças militares árabes... Então eles apresentaram a alternativa da população árabe deixar a cidade" (Stockwell, citado em Morris, 1987, p. 82).

De acordo com relatos dos observadores britânicos, houve a tentativa por parte dos judeus de pedir aos palestinos que não se retirassem: "Os judeus estão fazendo um grande esforço para prevenir uma evacuação em massa, mas os seus esforços estão tendo pouco efeito" (Stockwell, citado em Morris, 1987, p. 82).

Walid Khalidi, em um artigo que permaneceu obscuro por muito tempo, oferece uma interpretação muito menos favorável, mas que não conseguiu se firmar na literatura especializada sobre o assunto. Para o historiador, Haifa seria a primeira etapa de implementação do chamado Plano Dalet ou Plano D, tido como um plano da Haganá para a retirada dos palestinos da área costeira — a única evidência apresentada por Khalidi (2008).

Diversos problemas parecem permear a visão do historiador, que tem constituído objeto de discussão ao longo das últimas décadas. 

Em primeiro lugar, a negação da neutralidade dos britânicos na guerra de 1948: as evidências apontam que eles, de fato, obedeceram à orientação do gabinete do então primeiro-ministro britânico, Clement Attlee, de reforçar a divisão territorial.

Ainda que os britânicos não fossem neutros, como argumenta Khalidi, isso não significa que o relato de Stockwell para Londres (o chamado Relatório Stockwell, escrito em 24 de abril de 1948) não fosse fiel aos acontecimentos, uma vez que ele não tinha qualquer motivo para não relatar os dados corretamente.

Assim, temos um primeiro caso de êxodo palestino absolutamente nuançado em relação aos argumentos daqueles que supõem que houve um plano preconcebido de expulsão da população palestina. Além de Haifa, os resultados foram controversos em outras cidades: em Tiberíades, não houve expulsão de palestinos; em Acre, os palestinos permaneceram na cidade; em Safed, depois de um ataque do Palmach, a então força de elite da Haganá, os palestinos saíram da cidade. Houve expulsão em Lod.

Desse modo, temos uma série de situações ligadas às decisões de um conjunto variado de atores: a não aceitação da partilha, algumas derrotas militares dos palestinos e as relações entre árabes e judeus, ou entre palestinos e israelenses, em cada um dos momentos da guerra civil que se estendeu de novembro de 1947 a maio de 1948.

O ponto importante, que procuro deixar nítido aqui, é que houve, sim, um êxodo da população palestina de algumas cidades, mas esse êxodo, que gerou o problema dos refugiados palestinos, não foi planejado e não foi resultado de uma concepção política da liderança sionista. 

Pelo contrário, é decorrente da militarização provocada pela rejeição da partilha e pelas ações de três atores diferentes: os israelenses, os palestinos e os demais países árabes.

No que diz respeito ao papel dos demais países árabes, em especial a atual Jordânia, que tinha o melhor exército, treinado pelos britânicos durante a Segunda Guerra Mundial, Clemesha parece ter uma posição contraditória. 

Em seu artigo, ela afirma: "A monarquia hachemita tinha o maior exército árabe da época e, na avaliação de Walid Khalidi, não fosse por ela e pela participação do Egito, os palestinos teriam perdido todas as suas terras em 1948".

Algumas correções são necessárias. A Transjordânia ocupou as terras destinadas ao Estado palestino pela resolução de partilha da ONU, e, em dezembro de 1948, na Conferência de Jericó, foi votada a anexação do território palestino ao Reino Hachemita da Transjordânia. A partir de então, todos os prefeitos das cidades palestinas foram nomeados pelo rei Abdullah, e Jerusalém foi designada capital alternativa do reino hachemita.

A Jordânia reconheceu o direito do povo palestino ao território da Cisjordânia em 31 de julho de 1988, apenas cinco anos antes de Israel fazê-lo através das cartas de reconhecimento mútuo que precederam os Tratados de Oslo. Assim, não é possível eximir a Jordânia, como tampouco é possível eximir o Egito, de responsabilidade na gestação do problema palestino tal como ele se expressa nos tempos atuais.

Os palestinos se tornaram refugiados em regiões originalmente reservadas para um Estado palestino pela ONU, em parte devido a projetos alternativos de ocupação e gestão de Jerusalém, especialmente pela Jordânia, em parte pelo resultado de um conflito armado no qual alguns grupos defenderam sua expulsão.

Surpreendentemente, a autora deixa de mencionar que o êxodo palestino levou a fortes protestos dos partidos de esquerda em Israel, especialmente pelo Mapam, que tinha vínculos com a ex-União Soviética, cujos apoio e influência em Israel em 1948 têm sido intensamente subestimados pela literatura (sobre o partido, consultar "Freud no Kibutz", de Guido Liebermann).

O Mapam protestou contra a expulsão de palestinos de Lod e chamou uma reunião ministerial sobre o assunto (Segev, 2019). Em algumas oportunidades, até mesmo o então primeiro-ministro de Israel, David Ben-Gurion, afirmou que suas ordens foram desrespeitadas na expulsão de palestinos de Lod (Segev, 2019, p. 450), ainda que ele tenha tido posições ambíguas em relação ao problema ao longo do ano de 1948.

Portanto, quando falamos do êxodo e do problema dos refugiados palestinos em 1948, estamos diante de um fenômeno muito mais complexo do que sugere o artigo de Arlene Clemesha. 

Termino esta crítica parafraseando o final do seu artigo, quando a autora afirma que "somente o reconhecimento dos sofrimentos mútuos [...] poderá gerar a reparação e os elos necessários para uma vida em comum". Para isso, é necessário que as narrativas não sejam unilaterais.

OBRAS PARA APROFUNDAR O DEBATE

"The Birth of the Palestinian Refugee Problem, 1947-1949" (1988; Cambridge University Press), de Benny Morris

"1948: a History of the First Arab-Israeli War" (Yale University Press, 2009), de Benny Morris

"Why Did the Palestinians Leave, Revisited" (Journal of Palestine Studies, 2005), de Walid Khalid

"The Fall of Haifa Revisited" (Journal of Palestine Studies, 2008), de Walid Khalidi

"The Arab Struggle Against Partition: The International Arena of Summer 1947" (Middle Eastern Studies, 2007), de Elad Ben-Dror

"A State at Any Cost: the Life of David Ben Gurion" (Farrar, Straus and Giroux, 2019), de Tom Negev

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2023/12/replica-expulsao-de-palestinos-em-1948-nao-foi-planejada-por-israel.shtml

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