O artigo abaixo transcrito, condenatório do que poderia ser considerado um "Soviet" dentro do Itamaraty, contém um pequeno deslize histórico, que me permito corrigir apenas para melhor compreensão dos leitores.
Nele, o ex-chanceler Lampreia afirma que:
"A Casa de Rio Branco - fundada por Dom João VI em 1808 - tem uma folha de duzentos anos de serviços prestados ao país sob a forma da definição perpétua e pacífica do território nacional, de bom convívio com nossos dez vizinhos e de múltiplas batalhas em defesa do interesse nacional nos mais variados planos."
Obviamente que o chanceler anterior conhece a história do Itamaraty (que aliás só passa a ser chamado assim já bem entrada a República), e deve ter escrito a frase acima, na verdade apenas a parte que se refere à "Casa de Rio Branco", numa espécie de homenagem a nossas tradições bi-seculares (ou quase).
Mas cabem dois pequenos reparos.
1) O termo Casa de Rio Branco é quase sinônimo de Itamaraty, assim que só poderia ser utilizado a partir da morte desse chanceler da República, não valendo para o período anterior.
2) Não é exato que essa "Casa", que nem sempre existiu sob essa forma, tenha sido fundada por Dom João VI em 1808, por diversos motivos.
(a) Portugal já exibia, desde meados do século 18 pelo menos, uma Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, ou seja, combinando assuntos diplomáticos e militares, como aliás era costume nessa época. O outro ministério militar era obviamente o da Marinha, que existia de forma independente desde algum tempo. Essa Secretaria de Estado continuou sob essa forma durante toda a fase final da permanência dos Braganças no trono português em Lisboa, até dali ser alijada pelas tropas de Napoleão. O que ocorreu foi o simples transplante desse ministério, com toda a administração portuguesa e seus milhares de servidores, nobres, criados e outros aspones, para o Brasil, no final de 1807, como é sabido. Chegando ao Rio, os dois serviços, sempre sob a condução de Linhares, se instalam numa casa, e continuam a funcionar durante todo o resto do período colonial, na fase de Reino Unido, na Regência, e no começo do primeiro Reinado, sendo o primeiro chanceler do Brasil independente José Bonifácio de Andrade e Silva, que já o era sob a regência do príncipe D. Pedro (aliás, junto com os Negócios do Reino, ou seja, Ministério da Justiça ou do Interior). Apenas em 1823, se tomam as providências para "desentranhar" os dois serviços, a Guerra e os Negócios Estrangeiros.
(b) D. João VI não pode ter criado qualquer Casa, nesta ou em qualquer forma, posto que D. João VI não "existia" em 1808. Ele era apenas o Príncipe Regente, D. João. Se ele por acaso tivesse morrido antes do falecimento de sua mãe, D. Maria, a Louca, ele não teria sido D. João VI, o que só vem a ser em 1816, quando falece aquela maluca e ele toma posse como Rei de Portugal, do Brasil e de Algarves. Se não tivesse sido assim, talvez algum outro homônimo, posteriormente, tivesse sido o D. João VI que eventualmente não teria sido.
(c) Dificilmente se pode falar da criação de um Serviço das relações exteriores do Brasil, em 1808, posto que se tratava de Portugal, obviamente. Portanto, este só surge em 1822, mas se trata de uma instituição pré-existente, uma herança bendita, se ouso, dizer, do período portugues, um dos mais velhos Estados do mundo, com uma diplomacia bastante competente, para o tamanho do pais, sua desimportância militar e econômica (a despeito do Brasil e suas riquezas) e seu analfabetismo disseminado (talvez até em certos nobres...).
Feitas estas ressalvas, vamos ler a justa indignação do chanceler Lampreia contra o Soviet que pretendem implantar no Itamaraty. Aliás, ainda não vi nota do MRE sobre isso. Talvez estejam pensando em como responder...
Paulo Roberto de Almeida (17.02.2010)
OPINIÃO
Imaginação voluntarista
LUIZ FELIPE LAMPREIA
O Globo, 11/02/2010
Informam os jornais que o Partido dos Trabalhadores decidiu incluir em seu programa a criação de um "conselho de política externa" paralelamente ao Ministério das Relações Exteriores. A proposta sugere que o referido conselho seja integrado por representantes de ONGs, sindicatos e movimentos sociais.
A ideia é preocupante por várias razões. Em primeiro lugar, porque visa a colocar o Itamaraty sob a tutela de alguns segmentos da sociedade brasileira, que têm suas próprias credenciais, sem dúvida, mas não podem arrogar-se o direito de serem os únicos porta-vozes legítimos da nação. A Casa de Rio Branco - fundada por Dom João VI em 1808 - tem uma folha de duzentos anos de serviços prestados ao país sob a forma da definição perpétua e pacífica do território nacional, de bom convívio com nossos dez vizinhos e de múltiplas batalhas em defesa do interesse nacional nos mais variados planos. É reconhecida em todo o mundo por ser conduzida por profissionais de alto gabarito e integridade. Levantar dúvidas sobre sua competência como instituição ou sua dedicação ao Brasil é uma postura espúria.
Em segundo lugar, a proposta é facciosa porque afirma que só no atual governo o Itamaraty procurou ouvir e dialogar com representações categorizadas da sociedade civil. No governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, de quem tive a honra de ser por seis anos o ministro das Relações Exteriores, este exercício foi constante. Cito alguns exemplos.
Em maio de 1996, em Belo Horizonte, reuni-me com representantes de todas as principais organizações sindicais para discutir a posição brasileira na Alca. Com os representantes do setor produtivo nacional, tivemos diálogo regular no Conselho Empresarial, que buscava examinar os interesses econômicos do país nas negociações da OMC e da integração regional. Com representantes das ONGs ambientais, tivemos amplas e frequentes reuniões antes e depois da Conferência de Kyoto, sobre o Protocolo que resultou daquela conferência, na qual a delegação brasileira chefiada pelo ministro José Israel Vargas teve atuação marcante. Falei inúmeras vezes em universidades, escrevi muitos artigos na imprensa de prestação de contas à opinião pública. Dialoguei constantemente com representantes de diversas denominações religiosas. Por fim , mantive em mais de uma ocasião um diálogo aberto e respeitoso com o professor Marco Aurélio Garcia, na própria sede do Itamaraty ou fora dela. Todas estas afirmações são factuais e comprováveis, não resultam da imaginação ou de propósito ideológico.
O aventado "conselho" - que pretende implantar um novo modelo radicalmente mais aberto na representação da sociedade brasileira - é apenas mais um passo na busca de desconstrução do passado que, na área da política externa, como em diversas outras, tem caracterizado o presente governo.
Em terceiro lugar, esta é também uma tentativa de abalar as próprias colunas do Estado forte, ao qual tantas loas são tecidas por aqueles que agora o exaltam como um requisito do progresso do Brasil.
Existe um consenso universal de que relações exteriores e defesa são os dois campos em que há competência básica do Estado. Subordinar políticas públicas, como a externa, a um comitê de posições apriorísticas e pouco representativo do conjunto da nação resultará inevitavelmente em debilitar o Estado, tolhendo-o de uma das mais essenciais atribuições da soberania: representar o país na cena internacional.
Resta torcer para que a inoportuna ideia deste "conselho de política externa" permaneça no rol das fantasias que nunca se concretizam por que resultam apenas da imaginação voluntarista de alguns e, como dizia Fernando Pessoa, "não têm relação com o que há na vida".
LUIZ FELIPE LAMPREIA foi ministro das Relações Exteriores do governo Fernando Henrique Cardoso(1995-2001).
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