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terça-feira, 3 de agosto de 2010
OMC e comercio internacional - entrevista com Vera Thorstensen
Assis Moreira, de Genebra
Valor Econômico, 02/08/2010
A dinâmica atual do comércio internacional não está mais na Organização Mundial do Comércio (OMC) e sim nos acordos regionais. Já há 267 notificados na OMC e 100 estão em negociação, com troca de preferências entre seus membros. O Brasil precisa buscar acordos com as grandes potências e não apenas com países em desenvolvimento. Do contrário, suas exportações serão cada vez mais prejudicadas por regras criadas pelos Estados Unidos, Europa e no futuro pela China em seus entendimentos preferenciais.
Isso é o que defende a professora Vera Thorstensen, que acaba de deixar a assessoria econômica da missão brasileira, em Genebra, para criar um Centro do Comércio Global na Escola de Economia da Fundação Getulio Vargas, em São Paulo. O objetivo é explorar a nova dimensão da regulação do comércio internacional, com a multiplicidade de normas que encarecem os custos para o exportador e podem afetar duramente a competitividade brasileira. Embora a Rodada Doha não prospere, na própria OMC as regras continuam evoluindo através de interpretações de seu Órgão de Apelação.
Doutora pela FGV, Vera Thorstensen, 60 anos, passou 20 na Europa, dos quase 15 em Genebra, depois de "amor à primeira vista" pelos temas de comércio internacional. Publicou o primeiro livro em português sobre OMC e suas regras, em 1999. Montou e teve papel central na formação de 120 jovens advogados que fizeram estágio na missão brasileira em Genebra desde 20023. Deu cursos pelo Brasil inteiro e na Europa (Paris, Lisboa, Barcelona).
Reputada por seu rigor, a professora Vera se tornou uma figura incontornável na delegação brasileira. Por sua sala, ao longo dos anos, passaram autoridades, acadêmicos, técnicos brasileiro, sempre buscando um esclarecimento sobre a OMC e suas regras negociadas na Rodada Uruguai ou em negociação na Rodada Doha.
Na OMC, ela foi presidente do Comitê de Regras de Origem de 2004 a 2010. Um acordo para definir como os países identificam a origem de uma mercadoria para efeito de tarifas continua bloqueado porque os países visivelmente preferem ter margem para burlar as normas.
A seguir, os principais trechos da entrevista que concedeu ao Valor:
Valor: Por que retornar ao Brasil agora? É frustração com a Rodada Doha?
Vera Thorstensen: No início deste ano, tomei a decisão de voltar ao Brasil consciente de que eu tinha uma missão a cumprir: criar um centro de estudos sobre a OMC para focar na regulação do comércio internacional. E explico: existe uma percepção no país de que a OMC morreu porque a Rodada Doha continua no impasse. Essa visão está errada. A OMC não só não morreu, como está muito ativa, principalmente na solução de disputas entre os países, onde foi aberto esta semana o 411. E tudo isso tem impactos imediatos no Brasil.
Valor: Que impactos seriam esses?
Vera: As regras da OMC não se referem apenas a atividades de exportação e importação de bens e serviços. São muito mais amplas, envolvendo medidas relativas ao comércio com propriedade intelectual, concorrência, investimentos, ambiente, clima, saúde, direitos humanos. Esta é a dimensão da regulação do comércio internacional. Atualmente, são duas as fontes dessa regulação. Uma, são as regras já definidas nos acordos na OMC. E mesmo sem a rodada avançar, essas regras na prática estão sendo ampliadas e revistas por decisões do Órgão de Apelação, que é uma espécie de supremo tribunal dos conflitos do comercio internacional. O mecanismo de solução de controvérsias é composto de duas fases: uma através dos painéis e a outra pelo Órgão de Apelação. Ou seja, não basta hoje apenas ler os acordos da OMC. É preciso ir atrás de todos os painéis relacionados aos temas em conflito e ver como o Órgão de Apelação interpretou os termos dos acordos.
Valor: Ou seja, um grupo de juízes está fazendo regras, enquanto os governos brigam?
Vera: Veja, os panelistas e o Órgão de Apelação têm obrigação de solucionar os conflitos comerciais que são a eles apresentados pelos países. E devem fazer isso com base nos acordos existentes que tem 700 páginas e outras 10 mil páginas de listas de compromisso de liberalização dos países. Como a OMC toma decisão por consenso, a linguagem de suas regras é muito pouco clara, é a famosa ambiguidade construtiva para se fechar negociações. Então, um país interpreta uma regra de um jeito e o outro o contrário. E isso é resolvido pelo Órgão de Solução de Controvérsias. Para manter a previsibilidade do sistema, os membros da OMC esperam que a próxima decisão utilize a interpretação anterior. É o peso da jurisprudência que tem papel fundamental. De fato, discute-se no mundo acadêmico a que ponto o ativismo do Órgão de Apelação está assumindo a posição dos negociadores dos países. E com o impasse da Rodada Doha, são esses juízes que estão atualizando na prática as regras da OMC.
Valor: Por exemplo?
Vera: O artigo 20 do Gatt, de 1947, sobre as exceções gerais, isto é, quando um país pode deixar de cumprir as regras da OMC, está sendo usado para dirimir conflitos que envolvem comércio e ambiente. Foi o caso dos pneus entre o Brasil e a União Europeia, do atum entre México e EUA, dos camarões entre EUA e vários países da Ásia, dos arbestos entre Canadá e UE. O Órgão de Apelação pegou uma página de um acordo negociado há 63 anos e através desses conflitos foi criando passo a passo uma regulação para disputas envolvendo ambiente, algo que os países até hoje nunca chegaram a um acordo.
Valor: Qual a segunda fonte hoje de regulação do comércio?
Vera: São os acordos regionais de comércio, negociados entre dois ou grupos não necessariamente próximos, como entre Chile e China. A regra que continua a vigorar em termos de acordos regionais é apenas o artigo 24 do velho Gatt, que tem 63 anos. E hoje está acontecendo uma explosão de acordos regionais incentivada até pelo impasse da Rodada Doha. Estão notificados na OMC 267 acordos regionais e a entidade já tem informação de que outros cem acordos estão em negociação.
Valor: Qual o problema de ter tantos acordos regionais?
Vera: O problema é que esses acordos estão usando as regras que englobam não só temas regulados da OMC, como estão expandindo e incluindo nova regulação como propriedade intelectual (Trips) e investimentos (Trims) no comércio. Além disso, os acordos regionais estão criando regras sobre temas que a OMC nunca conseguiu regular, como padrões trabalhistas, ambiente, investimento e concorrência. Há acordo de comércio regional que exige que os países tenham assinado as sete convenções fundamentais da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Na OMC, os países em desenvolvimento afirmam que esse tema não é comércio e deve ficar na OIT. Só que, por conta da concorrência de países que não tem padrões trabalhistas, esse tema voltou a ter grande interesse. O fato de o país não ter esses padrões causaria uma redução significativa dos custos de exportação, como no caso da China, afetando a competitividade dos países que seguem as convenções da OIT.
Valor: E qual o problema de os acordos regionais criarem regras novas?
Vera: O problema é que a multiplicidade dessas regras pode minar a OMC e a longo prazo até destruí-la. Por quê? A existência de muitas regras sem controle e sem um órgão de supervisão está levando a criação de grandes blocos de regulação. Tem o modelo dos EUA, da UE e no futuro talvez da China. E já está ocasionando conflitos de regras, aumentando o custo de exportação e reduzindo a competitividade dos países que estão fora desses blocos.
Valor: Qual o impacto para o Brasil?
Vera: O Brasil não tem tradição de negociar acordos regionais fora da América do Sul e terá cada vez mais dificuldades para exportar para os grandes blocos que usam as regras que eles próprios criam, como regras sanitárias e fitossanitárias, barreiras técnicas, padrões privados de alimentos e regras de origem preferenciais. São as novas barreiras ao comércio. Dentro desses blocos, a OMC não tem controle.
Valor: Como exportador agrícola, o Brasil ficará mais vulnerável?
Vera: Sem dúvida. Se os EUA e a UE criam regras sobre alimentos, atingindo todos seus acordos preferenciais dentro de seus blocos, isso configura uma segmentação das novas regras de proteção no comércio internacional. Se o Brasil não participa, as exportações brasileiras são prejudicadas. O Brasil tem que enfrentar um grande dilema: fazer acordos regionais ou ficar autônomo. O problema é que, como grande produtor agrícola, é muito difícil fazer acordo preferencial com outros países, porque o setor agrícola é sensível para a grande maioria dos países.
Valor: O país deveria buscar acordos com os grandes parceiros?
Vera: A dinâmica atual do comércio internacional não está mais na OMC e sim nos acordos regionais. Ficar fora dos grandes blocos poderá afetar sem dúvida as atividades internacionais das empresas brasileiras.
Valor: Mas o Brasil negocia com a UE, Índia, África do Sul e outros.
Vera: Se a dinâmica é fazer acordos regionais, o Brasil deveria estar negociando não só no eixo Sul-Sul, mas no eixo Norte-Sul.
Valor: Qual a consequência do conflito entre OMC e acordos regionais?
Vera: Se as regras da OMC não forem atualizadas, crescerá o problema na hierarquia de regras, com impacto no mundo de negócios. Para se ter uma ideia, o comércio internacional envolve US$ 12 trilhões por ano. Com a multiplicação desses conflitos, os países serão obrigados a sentar de novo na mesa não só para concluir a Rodada Doha, como partir para a negociação de regras mais ambiciosas para novos temas do comércio global.
Valor: Quando Doha será concluída?
Vera: Os prazos para as conclusões das rodadas são cada vez mais longos, porque elas são mais complexas. Não me causa nenhuma estranheza que Doha não tenha sido concluída. Mas o custo político de não concluí-la é muito alto, daí porque acredito que ela será bem sucedida. A rodada será concluída quando as lideranças tiverem consciência do perigo que a multiplicação dos acordos regionais representa para o sistema multilateral que levou 60 anos para ser construído. Quando a incompatibilidade das regras regionais começarem a afetar os grandes países, eles voltarão a se sentar na mesa de negociação na OMC.
Valor: A China é um risco ou oportunidade para o Brasil?
Vera: A China pode representar oportunidade pelo tamanho de seu mercado e um risco pela sua competitividade com produtos brasileiros tanto no mercado interno com em terceiros mercados. Um dos temas mais relevantes hoje de política comercial do Brasil é definir qual sua estratégia em relação a China. Os brasileiros devem produzir na China ou o Brasil deve atrair a China a produzir no Brasil? Até agora, o Brasil não tem estratégia clara, apesar do aumento das relações bilaterais. A existência das regras da OMC é fundamental nesse relacionamento. O Brasil deve usar todos os instrumentos que a entidade permite para defender sua indústria e utilizar as mesmas regras para abrir o mercado chinês.
Valor: Qual será o foco do Centro do Comércio Global que a sra. está criando?
Vera O objetivo é analisar o quadro regulatório do comércio internacional explorando sua nova dimensão, pois as regras não envolvem só exportação e importação, mas toda uma gama de temas que vão de concorrência a saúde, investimentos, ambiente, clima, direitos humanos . E isso é essencial para a economia brasileira. Precisamos conhecer bem os detalhes das regras e saber usá-las para defender os interesses do Brasil. A ideia é juntar advogados, economistas e administradores de empresas para estudar e avaliar os impactos dessas regras, tanto da OMC como de acordos regionais, para a economia brasileira, a competitividade e sobrevivência das empresas. O centro pretende acompanhar a regulação especifica dos principais parceiros do Brasil, como União Europeia, Estados Unidos, China, Índia, África do Sul.
Valor: No que o centro inovará?
Vera Minha intenção é criar uma nova geração de especialistas em comércio internacional. Ao invés de só pensar em participar de painéis (disputas) na OMC, que saibam identificar os problemas concretos das empresas, as regras que foram desrespeitadas e levar os casos para os comitês específicos da OMC. É uma área ainda não explorada no Brasil. Poucos percebem que as regras da OMC estão internalizadas nas regras brasileiras e que isso pode ser utilizado nas atividades normais das empresas e entre empresas e governos. Esse trabalho, de dirimir conflitos, é não só de advogados, mas de economistas, porque cada vez mais os conceitos econômicos estão entrando na OMC.
Valor: As escolas de economia e direito estão atualizadas no Brasil?
Vera: Não. É triste constatar que mesmo as melhores escolas de economia e direito dão pouca atenção ao quadro regulatório do comércio internacional. Existe mesmo o absurdo de alguns professores considerarem que as regras da OMC não fazem parte do direito internacional. Na verdade, o que acontece na OMC faz parte de uma nova área do direito e da economia, que é chamada de "international trade law and economics", que já tem até uma associação criada em Genebra. Em seu congresso, em Barcelona, foi triste constar que, entre 350 participantes, só cinco eram brasileiros. São raras as escolas que oferecem cursos sobre OMC e disputas de conflitos. Como se pode criar economistas e advogados sem saber o quadro regulatório do comércio internacional, como esses futuros profissionais vão defender os interesses das empresas?
2 comentários:
Parabéns pelo blog. Muito boa a entrevista com a professora Vera Thorstensen! Importantíssima a observação da professora sobre a falta de interesse no estudo da OMC. Eu, que tenho me dedicado ultimamente ao estudo da solução de controvérsias na OMC, encontro muitas dificuldades em me aprofundar sobre o tema devido a falta de interesse das instituições de ensino superior em promover um debate nessa questão de interesse primordial ao desenvolvimento econômico brasileiro que é a OMC.
Muito esclarecedora a entrevista com a professora Vera Thorstensen!
É importante mais estudos e mais divulgação desses para dar suporte às relações comerciais brasileiras.
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