Eu na época era bastante otimista em relação ao PT, achando que eles fariam uma transição para o reformismo político e a aceitação do capitalismo e da economia de mercado de maneira mais afirmada, como tinham feito o SPD alemão e o PS francês.
Enganei-me, obviamente, pois apesar de os governos do PT não tentarem "socializar" o Brasil, eles foram exageradamente estatizantes, tanto por ideologia quanto para poder saquear o Estado e as empresas (públicas e privadas), como forma de consolidar o seu monopólio sobre o poder, e nisso eles revelaram o seu caráter totalitário.
Eu defendia o PT dos grupos mais à esquerda, que teriam feito coisas muito piores, talvez apenas não assaltando o Brasil e os brasileiros da forma como o PT o fez, por falta de estrutura e quadros.
Meu julgamento atual sobre o governo do PT é obviamente o pior possível, não só pela corrupção gigantesca que instalaram dentro e fora do Estado, mas por terem simplesmente destruído a economia nacional, com mais de 16 milhões de desempregados e poucas chances de recuperação a curto prazo.
Em todo caso, segue aqui meu comentário otimista sobre uma possível esquerda progressista, feito no início do mês de outubro de 2002, quando já se prenunciava a vitória de Lula.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22/10/2017
Consequências econômicas da derrota:
identificando
vencedores e vencidos
Paulo Roberto de Almeida
1. As novas partículas elementares
Uma das consequências mais
recorrentes da vitória política nas eleições é a de que ela, obviamente,
inverte as posições relativas da situação e da oposição, dando a esta última
responsabilidades executivas que não há como eludir após a transmissão do poder:
“tome, agora o abacaxi é seu!”. Outra série de consequências, estas menos
pensadas pelos que acabam de assumir tais responsabilidades, é a de que, a
partir de então, se inverte também a perspectiva governativa a partir da qual
passam a ser pensadas aquelas mesmas responsabilidades, que de súbito ganham
toneladas adicionais de peso específico, quando não uma “massa atômica”
dificilmente administrável pelos executivos aprendizes.
Em outros termos, as mudanças
paradigmáticas produzem vencedores e vencidos – o que não é nenhuma novidade –,
mas delas também resultam ideias vencedoras e outras moribundas, o que nem
sempre é evidente a todos os participantes do jogo político, em especial porque
umas e outras ideias não parecem mais estar onde estavam antes (o que a
sabedoria popular chama, apropriadamente, de “trocando as bolas”). A governança
real se apresenta, antes de mais nada, como um imenso cemitério de ideias
generosas, várias delas pouco práticas, e outros tantos nobres propósitos, mas
todos invariavelmente custosos, que foram exageradamente agitados em anos de
oposição renhida, de críticas ferozes à insensibilidade reinante nos bastiões
do poder e de alegre irresponsabilidade em relação a uma exata explicitação
quanto ao problema dos meios.
Trata-se de situações normais,
uma vez que a luta política vive de exageros e de simplificações, sem o que não
seria possível transmitir ao eleitor comum aquele sentido de injustiça e de
negligência dos poderosos, das quais brotam, justamente, a centelha que permite
incendiar a pradaria eleitoral. O assalto ao Palácio de Inverno da velha
situação se faz com as baionetas da crítica implacável e com os coquetéis
Molotov das “novas soluções”, tão límpidas e claras como as águas que jorram de
mananciais políticos ainda não poluídos pelo teste da realidade. Em algum
momento, contudo, se tem de passar da “crítica das armas” às “armas da
crítica”, mas a questão é que os formuladores críticos de ontem são os
decisores pouco críticos de hoje, o que por vezes embota a capacidade de
julgamento. Em qualquer hipótese, a partir de um certo momento, a “fazenda dos
animais” reintroduz um pouco (senão muito) da velha organização burocrática e
“novas” rotinas administrativas são decididas ao sabor das necessidades: déjà vu all over again?
Tudo isso é conhecido dos
conselheiros do Príncipe e dos políticos práticos, ainda que o seja bem menos
dos observadores acadêmicos em países nos quais as mesmas oligarquias políticas
se reproduzem no poder há vários séculos, praticamente desde o descobrimento,
ou pelo menos desde a independência. Determinadas formações sócio-políticas
apresentam, de verdade, uma concepção circular do princípio da “circulação das
elites”, num tipo de osmose social ainda mais endogâmica do que os casamentos
nas antigas dinastias faraônicas. Mas a história tem dessas surpresas
contingentes que fazem com que ela seja, precisamente, um processo sempre único
e original, alternando o rápido equilíbrio pontuado das mudanças inesperadas
com o lento movimento das placas tectônicas dos sistemas políticos, sempre
lentos a responder à floração de novas espécies e à mutação genética do antigo
tecido social. Em algum momento, porém, a revolução geológica fará emergir
novas montanhas partidárias, criando um novo ambiente favorável a predadores
mais ágeis.
Qualquer semelhança com a
situação vivida pelo Brasil no segundo semestre de 2002 não é mera
coincidência, pois é disso exatamente que se trata nesta conjuntura, uma deriva
continental que se apresenta como o equivalente funcional da passagem do
pleistoceno da velha política politiqueira para o holoceno da novíssima
política de compromissos sociais. Em sua dimensão estritamente geológica é a
uma mudança de eras a que se está assistindo, ao passo que, no plano das
famílias e dos gêneros, trata-se da substituição parcial da antiga fauna
congressual e do repovoamento do cerrado central por uma nova espécie, o vulpes militanti.
A história natural é no entanto
um terreno tosco e rude para captar as sutilezas do comércio de ideias que
começa a ter lugar no plano da nova economia política, domínio no qual o manual
do pensamento mudancista não está ainda plenamente consolidado, podendo
apresentar surpreendentes inversões conceituais dignas dos melhores
comportamentos miméticos, como os do Chamaelo
americanus. Caberia, em todo caso, identificar e discorrer sobre esse
intercâmbio conceitual que acompanha a nova situação política criada com a
mudança da maioria social de governo no Brasil, de maneira a verificar se,
efetivamente, estamos assistindo a uma “revolução dentro da revolução”.
Tal seria o caso, por exemplo,
se “velhas” ideias se vissem regeneradas por um renovado vigor intelectual, ou
se antigos propósitos encontrassem novas e inesperadas modalidades de
aplicação, ou se, tão simplesmente, o terreno da praxis desvendasse uma ou outra identidade ideológica que já
parecia pertencer ao ancien régime,
mas que insiste teimosamente em continuar sua trajetória de bons e leais
serviços à nova causa em plena era jacobina. Antes que sejamos acusados de praticar
o Termidor intelectual, coloquemos claramente o que está em jogo na presente
conjuntura de mudanças conceituais.
Sem qualquer ânimo negativista
em relação à nova situação, mas confessando um certo espírito “contrarianista”,
permito-me apresentar abaixo uma simples tabela de ideias vencedoras,
derrotadas ou ainda indefinidas na presente conjuntura, cuja distribuição não
corresponde exatamente àquela que parecia derivar dos antigos manuais de
economia política. Vejamos como poderia se apresentar o novo comércio de ideias:
Tabela periódica das novas partículas elementares
(os materiais
podem ser misturados entre si, mas em doses muito bem medidas)
|
||
Vencedoras
|
Derrotadas
|
Indefinidas
|
Ideias abstratas
|
||
Milton Friedman
|
Karl Marx
|
Antonio Gramsci
|
Karl Kautsky
|
Vladimir Ilich
|
Edward Bernstein
|
Paul Samuelson
|
Oskar Lange
|
Celso Furtado
|
Pragmatismo
|
Ideologia
|
Princípios
fundadores
|
Empirismo
|
Materialismo
dialético
|
Socialismo utópico
|
Capitalismo
|
Forte papel do
Estado
|
Economia solidária
|
Liberalismo social
|
Socialismo liberal
|
Neoliberalismo
|
Analista de Bagé ã
|
Bispo da CNBB
|
Jornalista
progressista
|
Programa de
governo
|
Plataforma
maximalista
|
Projeto nacional
|
Reformas
econômicas
|
Modelo alternativo
|
Determinação do
governo
|
Tecnocracia
estatal
|
Intelligentsia
genérica
|
Intelectual
“público”
|
American dream
|
Cartorialismo
português
|
Jeitinho
brasileiro
|
Relações econômicas internacionais
|
||
Globalização
|
Autonomia nacional
|
Um novo mundo
possível
|
Consenso de
Washington
|
Gastança
keynesiana
|
Investimentos
sociais
|
Interdependência
|
Não à
“subordinação”
|
Administração da
abertura
|
FMI
|
ATTAC
|
Foro Social
|
Abertura a
capitais externos
|
Não aos fluxos
“voláteis”
|
Controles
seletivos
|
Complementaridade
|
Desnacionalização
|
Cadeias produtivas
|
Comércio de duas
mãos
|
Mercantilismo
|
Incentivos às exportações
|
Agricultura de
mercado
|
Subvenções às
exportações
|
Alguns subsídios
internos
|
Multinacionais
brasileiras
|
Monopólios
internacionais
|
Alianças
estratégicas
|
Acordos de
liberalização
|
Anexação comercial
|
Barganha
negociadora
|
Câmbio flutuante
|
Intervenções
dirigidas
|
Flutuação + ou -
“suja”
|
Conversibilidade
gradual
|
Centralização do
câmbio
|
Papel do Banco
Central
|
Entendimento com
credores
|
Restruturação
unilateral
|
Risco aceitável
|
Respeito aos
contratos
|
Moratória soberana
|
Auditoria da
dívida
|
Tarifas regulatórias
|
Impostos
proibitivos
|
Papel da política
comercial
|
Menor custo de
captação
|
Tobin Tax
|
Quarentena ou
imposto?
|
Economia doméstica
|
||
Responsabilidade
fiscal
|
Orçamento elástico
|
+ Receita vs. - Despesa
|
Forças de mercado
|
Projeto
estratégico nacional
|
Soft planning
|
Metas de inflação
|
Crescimento máximo
|
Limites do trade-off
|
Fluxos, antes dos
estoques
|
Redistribuição
patrimonial
|
Desconcentração da
renda
|
Participação
estrangeira
|
Reversão das
privatizações
|
Continuidade dos
leilões
|
Demanda ampliada
|
Mercado interno
|
Consumo de massas
|
Patenteamento
ampliado
|
Autonomia
tecnológica
|
Geração endógena
|
Juros de mercado
|
Limitação
constitucional
|
Autonomia do Copom
|
Agribusiness
|
Multifuncionalidade
|
Créditos
subsidiados
|
Agricultura
familiar
|
Reforma agrária
milagre
|
Cooperativas
populares
|
Ajuste fiscal
|
Despoupança
estatal
|
Poupança doméstica
|
Indução horizontal
|
Política
industrial ativa
|
Pesquisa e
desenvolvimento
|
Flexibilização
laboral
|
Novos direitos
sociais
|
Reforma da CLT
|
Bolsa-escola
|
Renda-cidadã
|
Fontes de
financiamento
|
Normas prudenciais
|
Não ao oligopólio
bancário
|
Reforma financeira
|
Salário mínimo
máximo
|
Pressão sobre a
Previdência
|
|
Alunos do primário
público
|
Elite
universitária “pública”
|
Qualidade do
ensino básico
|
Velhinha de
Taubaté ã
|
Burguesia nacional
|
Industrial da
FIESP
|
Fonte: Elaboração de Paulo Roberto de Almeida (com a
contribuição involuntária de Luís Fernando Veríssimo: Analista de Bagé e Velhinha
de Taubaté)
|
2. O combate de ideias
Não se deve ter ilusões de que
novos manuais de economia política, algo mais pragmáticos, venham a substituir
os anteriores como num passe de mágica, porque isso não vai ocorrer no futuro
previsível, pelo menos não nos salões acarpetados – hoje um pouco puídos – das
academias. A hegemonia política e ideológica promete continuar nas mãos dos
mesmos mestres de antigamente, alguns, é verdade, podendo ser reciclados no
museu de cera do marxismo (aqui sem qualquer desdém por marxólogos mais
pragmáticos). Mas o cenário está bem mais para pequenas rusgas nos departamentos
de Filosofia ou de História, do que para grandes batalhas campais em torno de
princípios científicos. Os “cristãos novos” não precisam ficar preocupados,
pois é improvável que uma nova São Bartolomeu venha a poluir os campi da nova maioria, pois que a
tolerância religiosa hoje é de regra e já não há mais exercícios de autocrítica
como antigamente.
Que o valor das ações
negociadas em bolsa de Bernstein ou de Samuelson venha a subir comparativamente
aos antigos títulos marxistas ou bolcheviques, hoje sem qualquer cotação no
mercado, não deveria surpreender os mais bem informados, mas também não se
trata de algo tão dramático na formação do PIB nacional. Finalmente, esse tipo
de elaboração intelectual – o antigo ministro Sérgio Mota falava bem mais
claramente de “onanismo sociológico” – ocupa muito poucas pessoas, inclusive na
diminuta fração que domina os cenáculos universitários e as redações de alguns
veículos alternativos. Em qualquer hipótese, a participação da componente
ideológica no valor agregado da indústria de ideias tende a diminuir, com o
maior peso relativo das medidas práticas de política econômica, que de toda
forma não saem prontas das universidades, mas precisam passar por cuidadoso
processo de adequação à realidade nos canais orçamentários do cerrado central.
No início ainda poderão ocorrer
ecos das antigas diatribes acadêmicas, uma vez que os cordões umbilicais não
foram de todo rompidos, mas pouco a pouco esse tipo de reverberação será cada
vez menos audível, em detrimento das confrontações puramente verbais e em
benefício da discussão ponderada de soluções pragmáticas. Como regra de
princípio, ninguém mais parece disposto a se sacrificar por algum grande
princípio revolucionário. Depois de alguns soberanos decapitados pelas revoluções
burguesas da era moderna, das lutas sociais pelo fim do voto censitário nas
democracias burguesas e dos imensos custos humanos incorridos pelas revoluções
proletárias e camponesas no período contemporâneo, poucos serão os voluntários
prontos a levar até o fim o combate de ideias. A esse propósito, vale lembrar
as sábias palavras do filósofo e chansonnier
francês Georges Brassens: “Mourir pour
des idées?: D’accord, mais de mort lente…”
3. Relações econômicas internacionais
Pensava que a globalização
capitalista e o consenso de Washington tivessem sido derrotados? Reexamine os
dados do problema e veja se há algum mercado de capitais alternativo, novos
princípios organizadores das relações econômicas internacionais ou então
dinheiro sobrando para aplicar um bom imposto Tobin. Converse com alguém do
mercado e decida se caberia reintroduzir controles de capitais, romper com as
imposições do Fundo e propor novos termos para os contratos em curso da dívida
externa. Fica difícil administrar a economia com toda essa abertura e pressões
de fora?: tente a não-abertura e o direcionamento seletivo do capital
estrangeiro. O comércio mundial é assimétrico e os mais ricos e poderosos ficam
com todas as vantagens?: pergunte ao minúsculo Uruguai o que ele acha do Mercosul
e consulte Portugal sobre as relações com o capital monopolista alemão no
quadro da integração europeia. Insatisfeito com o comportamento errático dos
capitais voláteis?: pode-se experimentar viver sem eles e de fato caberia,
mesmo, aplicar um imposto financeiro dissuasor na entrada, para que eles não
venham se refestelar nas nossas dificuldades. O ajuste fiscal decidido
cruelmente em Washington o impede de fazer os necessários investimentos
sociais?: não há problema, basta repagar o que se tomou do FMI e voltar a viver
com os seus próprios recursos, não consultando mais ninguém sobre a aplicação
das receitas do Tesouro.
Simples não é? Ou já parece um
pouquinho mais complicado? Os problemas das relações econômicas internacionais
do Brasil se assemelham em parte ao combate de ideias referido acima, com a
desvantagem que o primeiro só faz vítimas na própria academia, ao passo que neste terreno as
perdas podem se estender, literalmente, a toda a população brasileira. Mas não
há dúvida que aqui também observa-se uma bem-vinda coexistência pacífica entre
velhos slogans e novas realidades. No
começo pode haver algumas reações alérgicas em face da convivência mais ou
menos inédita com conceitos como interdependência ou liberalização comercial,
mas depois de algumas poucas dores localizadas, o desconforto dá lugar a uma
sensação de normalidade, como se o mundo fosse realmente esse lugar
contraditório que é, não aquela antiga geografia maluca de centro e periferia,
países hegemônicos e dominados, enfim, aquele lugar tão simples, com uma
separação estrita, tipo muralha da China, entre “nós” e “eles”. Ultrapassada a
barreira da desconfiança ideológica, fica mais fácil descobrir que o
liberalismo dos poderosos carrega uma estranha hipocrisia protecionista, que a
conversa bonita em torno da multifuncionalidade esconde o mais descarado
subvencionismo, que o livre comércio só é bom quando é indolor, isto é, feito
para os outros, não para si mesmo.
Mas o mundo é assim mesmo,
cheio de contradições teóricas, desajustes práticos e comportamentos
irracionais, o que só se descobre quando se aceita totalmente a premissa de que
o desconforto da globalização é ainda assim preferível à impressão de segurança
dos regimes fechados, fadados mais cedo ou mais tarde ao fracasso econômico e à
defasagem tecnológica. A agonia psicológica é menor quando você não tem de
ficar justificando teoricamente as razões de determinadas escolhas, mas sai a
campo para buscar, honestamente, resultados empíricos: “Ah, mas isso é escola
de Chicago, e a nossa preferência é pelo neokeynesianismo”. Tudo isso é bobagem
e o que você precisa é fechar o Orçamento, não provar a ninguém que continua
com as brilhantes ideias de antigamente. De todo modo, os governos, em geral,
não têm ideologia, e a direita política, essa sim, tem poucos princípios, só
interesses concretos. Não precisa aderir a uma total falta de princípios, mas
pare de se preocupar com os boletins da ATTAC e dedique-se a fazer aquilo para
o que foi eleito: dispensar bem-estar, não ilusões soberanistas.
De todo modo, pense um pouco:
existe alguma receita de sucesso econômico nos arraiais dos antiglobalizadores?
Até agora o que emergiu foram propostas negativas e uma vaga promessa de
modelos alternativos, nunca concretizados: não à globalização capitalista, não
à dominação imperialista, não à guerra e aos lucros desmedidos, não à anexação
comercial e ao saque dos recursos naturais, não a isso e mais aquilo. Como
proposta temos esses brilhantes slogans
de que um outro mundo é possível, uma outra América idem, mas em matéria de
novas ideias a opacidade é total, para não dizer que estamos no breu completo
de antes da Criação. Esperando que faça-se a luz, em Porto Alegre ou outro
local de turismo alternativo, trate de administrar o dia-a-dia dos pobres e desvalidos,
que geralmente têm poucas ideias brilhantes a debater, mas sim obsessões bem
concretas: comida, emprego, habitação, segurança, educação, saneamento,
asfalto, enfim aquelas coisas prosaicas que não parecem seduzir nossos bravos
ideólogos da antiglobalização, mais preocupados, eles, com os grandes
equilíbrios estratégicos globais.
Para concluir com esta parte,
caberia voltar a lembrar que as fontes dos principais problemas brasileiros não
estão em nenhum processo de espoliação internacional, em nenhuma conspiração
para extração de recursos internos, em nenhuma deficiência global do sistema
econômico internacional (ainda que ele possa ser assimétrico, desigual,
acumulador, concentrador e tudo o mais que se encontra nos expletivos dos
manuais da velha economia política). Afinal de contas, o que o imperialismo tem
a ver com os nossos buracos da Previdência? Em que o capital monopolista
internacional colabora com a má qualidade das escolas públicas? Como os
capitais voláteis explicam a ineficiência geral da polícia em caçar traficantes
ou a da Justiça em colocar na cadeia tantos colarinhos brancos, alguns até com
representação assegurada na presente legislatura? Todos eles são problemas
“Brazil-made”, cuja solução está totalmente ao nosso alcance, bastando parar de
buscar a responsabilidade no estrangeiro e voltar-se para suas raízes internas.
Assim, as relações econômicas internacionais são secundárias e complementares
às necessárias reformas estruturais no sistema econômico nacional – reformas
tributária, educacional, previdenciária, tecnológica etc. –, não condicionantes
de nosso sucesso interno ou de nosso desempenho no plano externo.
3. Economia doméstica
O combate de ideias continua,
mas aqui com menor agressividade do que nos campos filosófico ou de economia
internacional, pois que todos estão de acordo em que se trata agora de ser
muito prático, ir devagar com o andor pois que o santo inflacionário é de
barro. O problema mais dramático parece ser o da desigualdade na distribuição
da renda, de onde parecem derivar todos os males subsequentes: fome, miséria,
desemprego, falta de casa, educação, etc. Nem tanto assim, e os economistas
sociais da nova maioria sabem que o crescimento ainda é a melhor forma de
tornar os pobres menos pobres, ainda que não alterando significativamente o
coeficiente de Gini (que mede a concentração).
Como assegurar crescimento
econômico e, a partir daí, cumprir todas aquelas belas promessas de campanha é
que são elas, pois que o conhecido “método do Barão de Münchausen” – puxar
pelas próprias tranças e retirar a si mesmo e ao cavalo do pântano – não parece
mais funcionar nos tempos modernos. Como também não funcionam mais algumas
receitas tiradas das viagens de Gulliver, nas quais o viajante inglês era
levado a sociedades longínquas, organizadas de forma bizarra, mas que tinham
resolvido todos os males sociais de que ainda padecia a Inglaterra do início do
século XVIII (não muito diferentes, aliás, dos males do Brasil do início do
século XXI).
Pois bem: esqueceu aquela
história de que antes da responsabilidade fiscal vem a responsabilidade social?
Já se deu conta de que a elasticidade do orçamento real está mais próxima da
elasticidade-renda de algumas commodities
agrícolas do que da demanda dinâmica por produtos eletrônicos? Cansado desses
debates grandiloquentes em torno da falta de um “projeto nacional” que nos
faria, enfim, encontrar o caminho da verdade e da luz no itinerário
desenvolvimentista? Eu também estou e confesso que não tenho mais paciência
para esses grandes “projetos estratégicos” que demoram de seis meses a um ano
para ficarem prontos e que depois vão requerer uma implementação impecável
durante vinte e tantos anos (isso se conseguirmos aquelas adaptações
orçamentárias que passam a recomendar os investimentos certos nos lugares
certos), tudo determinado de maneira científica por uma equipe de brilhantes
intelectuais, geralmente sociólogos, todos eles empenhados em tornar realidade
a frase marota de Mário de Andrade que, já no começo do século XX, nos alertava
para o fato de que “a sociologia é a arte de salvar rapidamente o Brasil”. Essa
coisa de “projeto nacional” funciona em discurso no Congresso e nas reuniões da
SBPC, mas na vida real dos governos o melhor projeto ainda é o de melhorar o
funcionamento geral do sistema econômico, aumentar os índices de produtividade
do trabalhador brasileiro e, de modo amplo, a eficiência do gasto público, em
todos os níveis. De resto, se começar agora uma discussão em torno do “projeto
nacional” ideal, ela não terminará antes das próximas eleições, e aí já está na
hora de pensar em reeleição, ou será que não?
Que tal se, por uma vez, um
governo pragmático esquecesse esses grandes planos transformadores, saídos das
pranchetas dos intelectuais de gabinete, e se dedicasse, de verdade, a
administrar a inflação, os juros, os agregados monetários, as perdas de
recursos por ineficiência da máquina pública, as milhares de pequenas
iniciativas práticas que pudessem melhorar a qualidade da educação nas escolas
públicas – esquecendo essa coisa althusseriana depassée de “aparelhos ideológicos do Estado” –, as muitas
inovações incrementais que poderiam ser introduzidas no sistema produtivo – mas
aqui também superando o preconceito universitário contra o patenteamento
extensivo –, as mudanças nas regras contratuais que pudessem aumentar a
empregabilidade daqueles absolutamente excluídos do mercado de trabalho – e não
apenas os ganhos adicionais da aristocracia operária –, enfim, medidas práticas
de busca de resultados, não de confirmação de um programa preconcebido de
governo. Finalmente, você vai ser julgado, e votado, pela velhinha de Taubaté –
com a permissão do Veríssimo –, não pelos oligarcas da Avenida Paulista, que
contam muito pouco nas novas condições da democracia brasileira. É ela que precisa
entender o sentido geral de sua política e aferir seus efeitos práticos, na
vida diária. Não precisa nenhuma tese universitária para se dirigir a ela: o
bom senso deve bastar, ainda que a boa aplicação de políticas setoriais possa
fazer apelo às melhores simulações econométricas permitidas pela qualidade da
tecnocracia governamental.
No mais, tenho certeza de que
estes meus poucos argumentos “contrarianistas” já estão totalmente integrados
ao pensamento – ainda que não ao discurso – da nova maioria, que parece reunir
todas as condições para realizar uma administração bem sucedida da sua própria
agenda de mudanças sociais e econômicas. O Brasil sempre foi um país muito
pouco ideológico e bem mais pragmático, ainda que esse pragmatismo tenha, ao
longo da história, sido exercido preferencialmente em favor daqueles do “andar
de cima” (para emprestar a expressão de um outro conhecido jornalista).
Dispõe-se agora de uma chance única para mudar completamente a agenda e a forma
de aplicação das políticas públicas. Essa chance não pode ser desperdiçada na
tentativa de se provar alguma tese acadêmica, mas sim aproveitada na introdução
de uma nova forma de fazer política, desde que esta não maltrate em demasia
alguns princípios básicos da velhíssima economia política dos clássicos.
Paulo Roberto de Almeida
Washington, 977; 2/10/2002
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