domingo, 22 de outubro de 2017

Consequencias economicas da derrota: vencedores e vencidos (2002) - Paulo Roberto de Almeida

Mais um dos textos, o quinto da série conceitual relativa à grande mudança ocorrida no Brasil em outubro de 2002, que teria consequências profundas para o Brasil nos quinze anos seguintes.
Eu na época era bastante otimista em relação ao PT, achando que eles fariam uma transição para o reformismo político e a aceitação do capitalismo e da economia de mercado de maneira mais afirmada, como tinham feito o SPD alemão e o PS francês.
Enganei-me, obviamente, pois apesar de os governos do PT não tentarem "socializar" o Brasil, eles foram exageradamente estatizantes, tanto por ideologia quanto para poder saquear o Estado e as empresas (públicas e privadas), como forma de consolidar o seu monopólio sobre o poder, e nisso eles revelaram o seu caráter totalitário.
Eu defendia o PT dos grupos mais à esquerda, que teriam feito coisas muito piores, talvez apenas não assaltando o Brasil e os brasileiros da forma como o PT o fez, por falta de estrutura e quadros.
Meu julgamento atual sobre o governo do PT é obviamente o pior possível, não só pela corrupção gigantesca que instalaram dentro e fora do Estado, mas por terem simplesmente destruído a economia nacional, com mais de 16 milhões de desempregados e poucas chances de recuperação a curto prazo.
Em todo caso, segue aqui meu comentário otimista sobre uma possível esquerda progressista, feito no início do mês de outubro de 2002, quando já se prenunciava a vitória de Lula.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22/10/2017


Consequências econômicas da derrota:
identificando vencedores e vencidos

Paulo Roberto de Almeida


1. As novas partículas elementares
Uma das consequências mais recorrentes da vitória política nas eleições é a de que ela, obviamente, inverte as posições relativas da situação e da oposição, dando a esta última responsabilidades executivas que não há como eludir após a transmissão do poder: “tome, agora o abacaxi é seu!”. Outra série de consequências, estas menos pensadas pelos que acabam de assumir tais responsabilidades, é a de que, a partir de então, se inverte também a perspectiva governativa a partir da qual passam a ser pensadas aquelas mesmas responsabilidades, que de súbito ganham toneladas adicionais de peso específico, quando não uma “massa atômica” dificilmente administrável pelos executivos aprendizes.
Em outros termos, as mudanças paradigmáticas produzem vencedores e vencidos – o que não é nenhuma novidade –, mas delas também resultam ideias vencedoras e outras moribundas, o que nem sempre é evidente a todos os participantes do jogo político, em especial porque umas e outras ideias não parecem mais estar onde estavam antes (o que a sabedoria popular chama, apropriadamente, de “trocando as bolas”). A governança real se apresenta, antes de mais nada, como um imenso cemitério de ideias generosas, várias delas pouco práticas, e outros tantos nobres propósitos, mas todos invariavelmente custosos, que foram exageradamente agitados em anos de oposição renhida, de críticas ferozes à insensibilidade reinante nos bastiões do poder e de alegre irresponsabilidade em relação a uma exata explicitação quanto ao problema dos meios.
Trata-se de situações normais, uma vez que a luta política vive de exageros e de simplificações, sem o que não seria possível transmitir ao eleitor comum aquele sentido de injustiça e de negligência dos poderosos, das quais brotam, justamente, a centelha que permite incendiar a pradaria eleitoral. O assalto ao Palácio de Inverno da velha situação se faz com as baionetas da crítica implacável e com os coquetéis Molotov das “novas soluções”, tão límpidas e claras como as águas que jorram de mananciais políticos ainda não poluídos pelo teste da realidade. Em algum momento, contudo, se tem de passar da “crítica das armas” às “armas da crítica”, mas a questão é que os formuladores críticos de ontem são os decisores pouco críticos de hoje, o que por vezes embota a capacidade de julgamento. Em qualquer hipótese, a partir de um certo momento, a “fazenda dos animais” reintroduz um pouco (senão muito) da velha organização burocrática e “novas” rotinas administrativas são decididas ao sabor das necessidades: déjà vu all over again?
Tudo isso é conhecido dos conselheiros do Príncipe e dos políticos práticos, ainda que o seja bem menos dos observadores acadêmicos em países nos quais as mesmas oligarquias políticas se reproduzem no poder há vários séculos, praticamente desde o descobrimento, ou pelo menos desde a independência. Determinadas formações sócio-políticas apresentam, de verdade, uma concepção circular do princípio da “circulação das elites”, num tipo de osmose social ainda mais endogâmica do que os casamentos nas antigas dinastias faraônicas. Mas a história tem dessas surpresas contingentes que fazem com que ela seja, precisamente, um processo sempre único e original, alternando o rápido equilíbrio pontuado das mudanças inesperadas com o lento movimento das placas tectônicas dos sistemas políticos, sempre lentos a responder à floração de novas espécies e à mutação genética do antigo tecido social. Em algum momento, porém, a revolução geológica fará emergir novas montanhas partidárias, criando um novo ambiente favorável a predadores mais ágeis.
Qualquer semelhança com a situação vivida pelo Brasil no segundo semestre de 2002 não é mera coincidência, pois é disso exatamente que se trata nesta conjuntura, uma deriva continental que se apresenta como o equivalente funcional da passagem do pleistoceno da velha política politiqueira para o holoceno da novíssima política de compromissos sociais. Em sua dimensão estritamente geológica é a uma mudança de eras a que se está assistindo, ao passo que, no plano das famílias e dos gêneros, trata-se da substituição parcial da antiga fauna congressual e do repovoamento do cerrado central por uma nova espécie, o vulpes militanti.
A história natural é no entanto um terreno tosco e rude para captar as sutilezas do comércio de ideias que começa a ter lugar no plano da nova economia política, domínio no qual o manual do pensamento mudancista não está ainda plenamente consolidado, podendo apresentar surpreendentes inversões conceituais dignas dos melhores comportamentos miméticos, como os do Chamaelo americanus. Caberia, em todo caso, identificar e discorrer sobre esse intercâmbio conceitual que acompanha a nova situação política criada com a mudança da maioria social de governo no Brasil, de maneira a verificar se, efetivamente, estamos assistindo a uma “revolução dentro da revolução”.
Tal seria o caso, por exemplo, se “velhas” ideias se vissem regeneradas por um renovado vigor intelectual, ou se antigos propósitos encontrassem novas e inesperadas modalidades de aplicação, ou se, tão simplesmente, o terreno da praxis desvendasse uma ou outra identidade ideológica que já parecia pertencer ao ancien régime, mas que insiste teimosamente em continuar sua trajetória de bons e leais serviços à nova causa em plena era jacobina. Antes que sejamos acusados de praticar o Termidor intelectual, coloquemos claramente o que está em jogo na presente conjuntura de mudanças conceituais.
Sem qualquer ânimo negativista em relação à nova situação, mas confessando um certo espírito “contrarianista”, permito-me apresentar abaixo uma simples tabela de ideias vencedoras, derrotadas ou ainda indefinidas na presente conjuntura, cuja distribuição não corresponde exatamente àquela que parecia derivar dos antigos manuais de economia política. Vejamos como poderia se apresentar o novo comércio de ideias:

Tabela periódica das novas partículas elementares
(os materiais podem ser misturados entre si, mas em doses muito bem medidas)
Vencedoras
Derrotadas
Indefinidas
Ideias abstratas
Milton Friedman
Karl Marx
Antonio Gramsci
Karl Kautsky
Vladimir Ilich
Edward Bernstein
Paul Samuelson
Oskar Lange
Celso Furtado
Pragmatismo
Ideologia
Princípios fundadores
Empirismo
Materialismo dialético
Socialismo utópico
Capitalismo
Forte papel do Estado
Economia solidária
Liberalismo social
Socialismo liberal
Neoliberalismo
Analista de Bagé ã
Bispo da CNBB
Jornalista progressista
Programa de governo
Plataforma maximalista
Projeto nacional
Reformas econômicas
Modelo alternativo
Determinação do governo
Tecnocracia estatal
Intelligentsia genérica
Intelectual “público”
American dream
Cartorialismo português
Jeitinho brasileiro
Relações econômicas internacionais
Globalização
Autonomia nacional
Um novo mundo possível
Consenso de Washington
Gastança keynesiana
Investimentos sociais
Interdependência
Não à “subordinação”
Administração da abertura
FMI
ATTAC
Foro Social
Abertura a capitais externos
Não aos fluxos “voláteis”
Controles seletivos
Complementaridade
Desnacionalização
Cadeias produtivas
Comércio de duas mãos
Mercantilismo
Incentivos às exportações
Agricultura de mercado
Subvenções às exportações
Alguns subsídios internos
Multinacionais brasileiras
Monopólios internacionais
Alianças estratégicas
Acordos de liberalização
Anexação comercial
Barganha negociadora
Câmbio flutuante
Intervenções dirigidas
Flutuação + ou - “suja”
Conversibilidade gradual
Centralização do câmbio
Papel do Banco Central
Entendimento com credores
Restruturação unilateral
Risco aceitável
Respeito aos contratos
Moratória soberana
Auditoria da dívida
Tarifas regulatórias
Impostos proibitivos
Papel da política comercial
Menor custo de captação
Tobin Tax
Quarentena ou imposto?
Economia doméstica
Responsabilidade fiscal
Orçamento elástico
+ Receita vs. - Despesa
Forças de mercado
Projeto estratégico nacional
Soft planning
Metas de inflação
Crescimento máximo
Limites do trade-off
Fluxos, antes dos estoques
Redistribuição patrimonial
Desconcentração da renda
Participação estrangeira
Reversão das privatizações
Continuidade dos leilões
Demanda ampliada
Mercado interno
Consumo de massas
Patenteamento ampliado
Autonomia tecnológica
Geração endógena
Juros de mercado
Limitação constitucional
Autonomia do Copom
Agribusiness
Multifuncionalidade
Créditos subsidiados
Agricultura familiar
Reforma agrária milagre
Cooperativas populares
Ajuste fiscal
Despoupança estatal
Poupança doméstica
Indução horizontal
Política industrial ativa
Pesquisa e desenvolvimento
Flexibilização laboral
Novos direitos sociais
Reforma da CLT
Bolsa-escola
Renda-cidadã
Fontes de financiamento
Normas prudenciais
Não ao oligopólio bancário
Reforma financeira
Salário mínimo máximo
Pressão sobre a Previdência
Alunos do primário público
Elite universitária “pública”
Qualidade do ensino básico
Velhinha de Taubaté ã
Burguesia nacional
Industrial da FIESP
Fonte: Elaboração de Paulo Roberto de Almeida (com a contribuição involuntária de Luís Fernando Veríssimo: Analista de Bagé e Velhinha de Taubaté)


2. O combate de ideias
Não se deve ter ilusões de que novos manuais de economia política, algo mais pragmáticos, venham a substituir os anteriores como num passe de mágica, porque isso não vai ocorrer no futuro previsível, pelo menos não nos salões acarpetados – hoje um pouco puídos – das academias. A hegemonia política e ideológica promete continuar nas mãos dos mesmos mestres de antigamente, alguns, é verdade, podendo ser reciclados no museu de cera do marxismo (aqui sem qualquer desdém por marxólogos mais pragmáticos). Mas o cenário está bem mais para pequenas rusgas nos departamentos de Filosofia ou de História, do que para grandes batalhas campais em torno de princípios científicos. Os “cristãos novos” não precisam ficar preocupados, pois é improvável que uma nova São Bartolomeu venha a poluir os campi da nova maioria, pois que a tolerância religiosa hoje é de regra e já não há mais exercícios de autocrítica como antigamente.
Que o valor das ações negociadas em bolsa de Bernstein ou de Samuelson venha a subir comparativamente aos antigos títulos marxistas ou bolcheviques, hoje sem qualquer cotação no mercado, não deveria surpreender os mais bem informados, mas também não se trata de algo tão dramático na formação do PIB nacional. Finalmente, esse tipo de elaboração intelectual – o antigo ministro Sérgio Mota falava bem mais claramente de “onanismo sociológico” – ocupa muito poucas pessoas, inclusive na diminuta fração que domina os cenáculos universitários e as redações de alguns veículos alternativos. Em qualquer hipótese, a participação da componente ideológica no valor agregado da indústria de ideias tende a diminuir, com o maior peso relativo das medidas práticas de política econômica, que de toda forma não saem prontas das universidades, mas precisam passar por cuidadoso processo de adequação à realidade nos canais orçamentários do cerrado central.
No início ainda poderão ocorrer ecos das antigas diatribes acadêmicas, uma vez que os cordões umbilicais não foram de todo rompidos, mas pouco a pouco esse tipo de reverberação será cada vez menos audível, em detrimento das confrontações puramente verbais e em benefício da discussão ponderada de soluções pragmáticas. Como regra de princípio, ninguém mais parece disposto a se sacrificar por algum grande princípio revolucionário. Depois de alguns soberanos decapitados pelas revoluções burguesas da era moderna, das lutas sociais pelo fim do voto censitário nas democracias burguesas e dos imensos custos humanos incorridos pelas revoluções proletárias e camponesas no período contemporâneo, poucos serão os voluntários prontos a levar até o fim o combate de ideias. A esse propósito, vale lembrar as sábias palavras do filósofo e chansonnier francês Georges Brassens: “Mourir pour des idées?: D’accord, mais de mort lente…”

3. Relações econômicas internacionais
Pensava que a globalização capitalista e o consenso de Washington tivessem sido derrotados? Reexamine os dados do problema e veja se há algum mercado de capitais alternativo, novos princípios organizadores das relações econômicas internacionais ou então dinheiro sobrando para aplicar um bom imposto Tobin. Converse com alguém do mercado e decida se caberia reintroduzir controles de capitais, romper com as imposições do Fundo e propor novos termos para os contratos em curso da dívida externa. Fica difícil administrar a economia com toda essa abertura e pressões de fora?: tente a não-abertura e o direcionamento seletivo do capital estrangeiro. O comércio mundial é assimétrico e os mais ricos e poderosos ficam com todas as vantagens?: pergunte ao minúsculo Uruguai o que ele acha do Mercosul e consulte Portugal sobre as relações com o capital monopolista alemão no quadro da integração europeia. Insatisfeito com o comportamento errático dos capitais voláteis?: pode-se experimentar viver sem eles e de fato caberia, mesmo, aplicar um imposto financeiro dissuasor na entrada, para que eles não venham se refestelar nas nossas dificuldades. O ajuste fiscal decidido cruelmente em Washington o impede de fazer os necessários investimentos sociais?: não há problema, basta repagar o que se tomou do FMI e voltar a viver com os seus próprios recursos, não consultando mais ninguém sobre a aplicação das receitas do Tesouro.
Simples não é? Ou já parece um pouquinho mais complicado? Os problemas das relações econômicas internacionais do Brasil se assemelham em parte ao combate de ideias referido acima, com a desvantagem que o primeiro só faz vítimas na própria  academia, ao passo que neste terreno as perdas podem se estender, literalmente, a toda a população brasileira. Mas não há dúvida que aqui também observa-se uma bem-vinda coexistência pacífica entre velhos slogans e novas realidades. No começo pode haver algumas reações alérgicas em face da convivência mais ou menos inédita com conceitos como interdependência ou liberalização comercial, mas depois de algumas poucas dores localizadas, o desconforto dá lugar a uma sensação de normalidade, como se o mundo fosse realmente esse lugar contraditório que é, não aquela antiga geografia maluca de centro e periferia, países hegemônicos e dominados, enfim, aquele lugar tão simples, com uma separação estrita, tipo muralha da China, entre “nós” e “eles”. Ultrapassada a barreira da desconfiança ideológica, fica mais fácil descobrir que o liberalismo dos poderosos carrega uma estranha hipocrisia protecionista, que a conversa bonita em torno da multifuncionalidade esconde o mais descarado subvencionismo, que o livre comércio só é bom quando é indolor, isto é, feito para os outros, não para si mesmo.
Mas o mundo é assim mesmo, cheio de contradições teóricas, desajustes práticos e comportamentos irracionais, o que só se descobre quando se aceita totalmente a premissa de que o desconforto da globalização é ainda assim preferível à impressão de segurança dos regimes fechados, fadados mais cedo ou mais tarde ao fracasso econômico e à defasagem tecnológica. A agonia psicológica é menor quando você não tem de ficar justificando teoricamente as razões de determinadas escolhas, mas sai a campo para buscar, honestamente, resultados empíricos: “Ah, mas isso é escola de Chicago, e a nossa preferência é pelo neokeynesianismo”. Tudo isso é bobagem e o que você precisa é fechar o Orçamento, não provar a ninguém que continua com as brilhantes ideias de antigamente. De todo modo, os governos, em geral, não têm ideologia, e a direita política, essa sim, tem poucos princípios, só interesses concretos. Não precisa aderir a uma total falta de princípios, mas pare de se preocupar com os boletins da ATTAC e dedique-se a fazer aquilo para o que foi eleito: dispensar bem-estar, não ilusões soberanistas.
De todo modo, pense um pouco: existe alguma receita de sucesso econômico nos arraiais dos antiglobalizadores? Até agora o que emergiu foram propostas negativas e uma vaga promessa de modelos alternativos, nunca concretizados: não à globalização capitalista, não à dominação imperialista, não à guerra e aos lucros desmedidos, não à anexação comercial e ao saque dos recursos naturais, não a isso e mais aquilo. Como proposta temos esses brilhantes slogans de que um outro mundo é possível, uma outra América idem, mas em matéria de novas ideias a opacidade é total, para não dizer que estamos no breu completo de antes da Criação. Esperando que faça-se a luz, em Porto Alegre ou outro local de turismo alternativo, trate de administrar o dia-a-dia dos pobres e desvalidos, que geralmente têm poucas ideias brilhantes a debater, mas sim obsessões bem concretas: comida, emprego, habitação, segurança, educação, saneamento, asfalto, enfim aquelas coisas prosaicas que não parecem seduzir nossos bravos ideólogos da antiglobalização, mais preocupados, eles, com os grandes equilíbrios estratégicos globais.
Para concluir com esta parte, caberia voltar a lembrar que as fontes dos principais problemas brasileiros não estão em nenhum processo de espoliação internacional, em nenhuma conspiração para extração de recursos internos, em nenhuma deficiência global do sistema econômico internacional (ainda que ele possa ser assimétrico, desigual, acumulador, concentrador e tudo o mais que se encontra nos expletivos dos manuais da velha economia política). Afinal de contas, o que o imperialismo tem a ver com os nossos buracos da Previdência? Em que o capital monopolista internacional colabora com a má qualidade das escolas públicas? Como os capitais voláteis explicam a ineficiência geral da polícia em caçar traficantes ou a da Justiça em colocar na cadeia tantos colarinhos brancos, alguns até com representação assegurada na presente legislatura? Todos eles são problemas “Brazil-made”, cuja solução está totalmente ao nosso alcance, bastando parar de buscar a responsabilidade no estrangeiro e voltar-se para suas raízes internas. Assim, as relações econômicas internacionais são secundárias e complementares às necessárias reformas estruturais no sistema econômico nacional – reformas tributária, educacional, previdenciária, tecnológica etc. –, não condicionantes de nosso sucesso interno ou de nosso desempenho no plano externo.

3. Economia doméstica
O combate de ideias continua, mas aqui com menor agressividade do que nos campos filosófico ou de economia internacional, pois que todos estão de acordo em que se trata agora de ser muito prático, ir devagar com o andor pois que o santo inflacionário é de barro. O problema mais dramático parece ser o da desigualdade na distribuição da renda, de onde parecem derivar todos os males subsequentes: fome, miséria, desemprego, falta de casa, educação, etc. Nem tanto assim, e os economistas sociais da nova maioria sabem que o crescimento ainda é a melhor forma de tornar os pobres menos pobres, ainda que não alterando significativamente o coeficiente de Gini (que mede a concentração).
Como assegurar crescimento econômico e, a partir daí, cumprir todas aquelas belas promessas de campanha é que são elas, pois que o conhecido “método do Barão de Münchausen” – puxar pelas próprias tranças e retirar a si mesmo e ao cavalo do pântano – não parece mais funcionar nos tempos modernos. Como também não funcionam mais algumas receitas tiradas das viagens de Gulliver, nas quais o viajante inglês era levado a sociedades longínquas, organizadas de forma bizarra, mas que tinham resolvido todos os males sociais de que ainda padecia a Inglaterra do início do século XVIII (não muito diferentes, aliás, dos males do Brasil do início do século XXI).
Pois bem: esqueceu aquela história de que antes da responsabilidade fiscal vem a responsabilidade social? Já se deu conta de que a elasticidade do orçamento real está mais próxima da elasticidade-renda de algumas commodities agrícolas do que da demanda dinâmica por produtos eletrônicos? Cansado desses debates grandiloquentes em torno da falta de um “projeto nacional” que nos faria, enfim, encontrar o caminho da verdade e da luz no itinerário desenvolvimentista? Eu também estou e confesso que não tenho mais paciência para esses grandes “projetos estratégicos” que demoram de seis meses a um ano para ficarem prontos e que depois vão requerer uma implementação impecável durante vinte e tantos anos (isso se conseguirmos aquelas adaptações orçamentárias que passam a recomendar os investimentos certos nos lugares certos), tudo determinado de maneira científica por uma equipe de brilhantes intelectuais, geralmente sociólogos, todos eles empenhados em tornar realidade a frase marota de Mário de Andrade que, já no começo do século XX, nos alertava para o fato de que “a sociologia é a arte de salvar rapidamente o Brasil”. Essa coisa de “projeto nacional” funciona em discurso no Congresso e nas reuniões da SBPC, mas na vida real dos governos o melhor projeto ainda é o de melhorar o funcionamento geral do sistema econômico, aumentar os índices de produtividade do trabalhador brasileiro e, de modo amplo, a eficiência do gasto público, em todos os níveis. De resto, se começar agora uma discussão em torno do “projeto nacional” ideal, ela não terminará antes das próximas eleições, e aí já está na hora de pensar em reeleição, ou será que não?
Que tal se, por uma vez, um governo pragmático esquecesse esses grandes planos transformadores, saídos das pranchetas dos intelectuais de gabinete, e se dedicasse, de verdade, a administrar a inflação, os juros, os agregados monetários, as perdas de recursos por ineficiência da máquina pública, as milhares de pequenas iniciativas práticas que pudessem melhorar a qualidade da educação nas escolas públicas – esquecendo essa coisa althusseriana depassée de “aparelhos ideológicos do Estado” –, as muitas inovações incrementais que poderiam ser introduzidas no sistema produtivo – mas aqui também superando o preconceito universitário contra o patenteamento extensivo –, as mudanças nas regras contratuais que pudessem aumentar a empregabilidade daqueles absolutamente excluídos do mercado de trabalho – e não apenas os ganhos adicionais da aristocracia operária –, enfim, medidas práticas de busca de resultados, não de confirmação de um programa preconcebido de governo. Finalmente, você vai ser julgado, e votado, pela velhinha de Taubaté – com a permissão do Veríssimo –, não pelos oligarcas da Avenida Paulista, que contam muito pouco nas novas condições da democracia brasileira. É ela que precisa entender o sentido geral de sua política e aferir seus efeitos práticos, na vida diária. Não precisa nenhuma tese universitária para se dirigir a ela: o bom senso deve bastar, ainda que a boa aplicação de políticas setoriais possa fazer apelo às melhores simulações econométricas permitidas pela qualidade da tecnocracia governamental.
No mais, tenho certeza de que estes meus poucos argumentos “contrarianistas” já estão totalmente integrados ao pensamento – ainda que não ao discurso – da nova maioria, que parece reunir todas as condições para realizar uma administração bem sucedida da sua própria agenda de mudanças sociais e econômicas. O Brasil sempre foi um país muito pouco ideológico e bem mais pragmático, ainda que esse pragmatismo tenha, ao longo da história, sido exercido preferencialmente em favor daqueles do “andar de cima” (para emprestar a expressão de um outro conhecido jornalista). Dispõe-se agora de uma chance única para mudar completamente a agenda e a forma de aplicação das políticas públicas. Essa chance não pode ser desperdiçada na tentativa de se provar alguma tese acadêmica, mas sim aproveitada na introdução de uma nova forma de fazer política, desde que esta não maltrate em demasia alguns princípios básicos da velhíssima economia política dos clássicos.

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 977; 2/10/2002

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