"Com Bolsonaro, política externa se tornou uma caixa de surpresas"
Entrevista com Oliver Stuenkel por Fernando Caulyt
Deutsche Wellle, 1/07/2019
Em
seis meses, governo Bolsonaro provocou ruptura na política externa,
marcada por distanciamento do multilateralismo e imprevisibilidade.
Mudança gerou preocupação na comunidade internacional, avalia cientista
político.
Jair
Bolsonaro completa seis meses na Presidência do Brasil nesta
segunda-feira (01/07) e, até agora, sua política externa pode ser
caracterizada pela maior ruptura vista na política externa brasileira
nos últimos cem anos, avalia Oliver Stuenkel, professor de Relações
Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Em
entrevista à DW Brasil, Stuenkel destaca que o país abandonou uma
postura voltada para o multilateralismo e passou a adotar uma política
externa altamente imprevisível.
"Há
uma incerteza em relação a o que o Brasil pensa quanto à China,
Mercosul e Oriente Médio, gerando uma grande preocupação da comunidade
internacional", afirma.
Para
o cientista político, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto
Araújo, é "um ministro extremamente fraco, mas mantém sua capacidade de
fazer declarações absurdas e causar danos". "Parece-me bastante provável
que o país continue passando vergonha com frequência nos próximos
anos", comenta.
- DW Brasil: Como você avalia os seis primeiros meses de Bolsonaro em relação à política externa?
-
Oliver Stuenkel: Nós vimos uma grande ruptura na política externa. Ela
mudou em duas dimensões: o posicionamento externo do Brasil se alterou
totalmente, o país deixou de enfatizar o multilateralismo como
estratégia preferida da sua política externa e se alinhou mais a países
que têm um profundo ceticismo quanto ao sistema multilateral. Assim, o
Brasil faz uma rejeição mais ampla ao multilateralismo e tem posturas
que colocam o país como parte do campo antiglobalista. Eu diria que é a
mudança mais profunda na política externa em pelo menos cem anos.
A
segunda grande mudança é que a política externa se tornou altamente
imprevisível. Antes, havia uma previsibilidade sobre o comportamento
brasileiro no palco internacional. E, agora, em função da briga
constante entre três grupos [os militares, os "olavistas" e os
tecnocratas], a política externa se tornou uma caixa de surpresas – e
isso, no âmbito internacional, reduz muito a capacidade brasileira de
assumir liderança e de influenciar outros países. Pouco indica que isso
mudará ao longo dos próximos anos. Além da mudança de posicionamentos,
há uma incerteza em relação a o que o Brasil pensa quanto à China,
Mercosul e Oriente Médio, gerando uma grande preocupação da comunidade
internacional em relação ao papel e à estratégia brasileira.
- Mas o Brasil sempre se beneficiou do sistema multilateral.
-
Toda a lógica da política externa brasileira se baseia na crença de que
um sistema multilateral forte é benéfico para o Brasil, porque o
multilateralismo, de certa maneira, ajuda a mitigar o impacto da
geopolítica. É consenso também que o Brasil tem sido, ao longo das
últimas décadas, o país que mais se beneficiou desta ordem multilateral,
porque é uma nação que tem forte influência nestas instituições, que
conhece muito bem suas regras e sabe interpretá-las para aumentar sua
influência. E Bolsonaro iniciou um processo para combater justamente
este sistema que beneficiou tanto o país, e este governo não apresentou
ainda uma resposta crível às suas alegações de que o globalismo limita a
autonomia do Brasil, apesar de Brasília ter uma grande capacidade de
influenciar as regras do jogo.
- Quais são as consequências dessa falta de rumo na política externa para a região e a comunidade internacional?
-
Fica evidente que é cada vez mais difícil contar com o Brasil, porque,
como o posicionamento brasileiro não está totalmente claro e nunca se
sabe qual grupo interno irá se impor, Brasília é chamada cada vez menos
para iniciativas. Um exemplo recente é a lançada pela Alemanha e pela
França em defesa do multilateralismo, à qual foram chamados países como
Argentina, Austrália, Canadá e Coreia do Sul – quer dizer, potências
médias que têm interesse em defender o multilateralismo. O Brasil não
foi chamado, e isso é inédito. Brasília participará menos de novas
iniciativas, porque até mesmo países antiglobalistas, como os EUA, têm
dúvidas sobre a capacidade de Bolsonaro implementar políticas de maneira
coerente no âmbito externo.
Os
seis primeiros meses do governo foram caracterizados por declarações
polêmicas – como a de que o nazismo foi de esquerda – e manobras para
cumprir parcialmente promessas eleitorais, como a abertura de um
escritório comercial em Jerusalém em vez da transferência da embaixada
brasileira para a cidade.
Essas
afirmações mostram que, além do radicalismo do governo, há também
claramente uma falta de preparo. Isso aumenta a frequência de gafes e
erros crassos na política externa, como viajar para um país e articular
uma preferência clara em relação à política interna dessas nações, como
foi o caso da Argentina e EUA. Não há problema nenhum em ter uma
preferência, mas articular de uma maneira tão explícita gera um problema
quando esse seu lado preferido perde a próxima eleição. E isso afeta
negativamente a relação bilateral. Nós vemos uma acumulação de erros
desnecessários que não são posicionamentos que geram algum valor para o
Brasil. A solução seria colocar um chanceler experiente que possa
controlar o presidente, mas acho pouco provável que isso aconteça. Então
me parece bastante provável que o país continue passando vergonha com
frequência nos próximos anos.
- Como você avalia a atuação do chanceler Ernesto Araújo?
-
Ele simboliza a ruptura radical que muitos eleitores desejaram ao votar
em Bolsonaro. O chanceler articula essa "mudança de verdade" com uma
postura que gera muita tensão interna e dificuldades de o Brasil fazer
cooperação com outros países. A grande maioria do Itamaraty discorda dos
posicionamentos dele, e isso afeta gravemente a reputação do país no
exterior. Ele tem concorrentes dentro do próprio grupo político [dos
antiglobalistas], e os interlocutores dele têm muitas dúvidas sobre o
poder que ele tem de verdade, o que é péssimo para um chanceler. Ele é
um ministro extremamente fraco, mas mantém sua capacidade de fazer
declarações absurdas e causar danos.
-
Como você vê as alianças de Bolsonaro com ultranacionalistas como
Donald Trump e Viktor Orbán, e a postura do brasileiro de contrariar
parceiros de longa data no Oriente Médio ao se aliar com Israel?
-
De
certa maneira, essas alianças deixam muito claro para onde esse governo
quer ir e facilitam o entendimento da comunidade internacional sobre
quais são as intenções de Brasília. Porém, isso causa problemas para o
interesse nacional brasileiro, porque esses países, do ponto de vista
econômico, agregam muito pouco: o valor do comércio do país com Israel,
Polônia, Hungria e Itália é relativamente pequeno. Por isso que existe
aí uma preocupação profunda entre representantes da economia brasileira
sobre o possível impacto negativo que essas mudanças podem ter para a
economia do país.
-
Berlim e Brasília têm uma parceria estratégica desde 2002, mas ela
esfriou principalmente após as turbulências do impeachment da
ex-presidente Dilma Rousseff. Antes da reunião do G20 da semana passada,
a chanceler federal alemã, Angela Merkel, e Bolsonaro trocaram farpas.
Como você vê o futuro da relação entre os dois países?
-
O espaço para a cooperação bilateral diminuiu bastante, porque em
várias áreas importantes, como mudança climática e multilateralismo, o
Brasil mudou radicalmente de direção. O ministro do Exterior alemão,
Heiko Maas, esteve neste ano no país para avaliar como é possível
continuar com essa parceria estratégica, mas certamente será necessário
adaptá-la às novas circunstâncias e ser muito mais modesto a possíveis
resultados.
- Como você avalia o alinhamento do Brasil com os EUA? Até agora, quais foram os ganhos para Brasília?
-
Houve ganhos pontuais, ou seja, o Brasil faz parte agora dos países
aliados fora da Otan, o que facilita a cooperação militar. Mas com as
duas questões fundamentais que Washington quer de Brasília, que são o
apoio para resolver a crise na Venezuela e a ajuda para limitar a
influência chinesa na América Latina, o Brasil não conseguirá
contribuir. Em função disso, parece-me que a relação dificilmente se
aprofundará da maneira que o governo brasileiro espera.
- Como você vê o futuro das relações do Brasil com a China e com a Europa?
-
No momento há algo interessante acontecendo: uma parte do governo quer
se aproximar dos EUA e, a outra, manter os laços com a China. Em breve, o
Brasil terá que tomar decisões muito importantes que dificultam uma
estratégia de ficar bem com os dois lados: a primeira é se Brasília fará
parte ou não da iniciativa "One Belt One Road". Washington quer que o
Brasil não participe; já a China, obviamente, tem a expectativa de que
isso ocorra. A segunda questão é em relação ao 5G: os EUA pressionam
para que o Brasil possa banir a Huawei, e grande parte dos técnicos quer
que a empresa participe da construção da rede brasileira.
Em
relação à União Europeia, a relação vai se aprofundar devido ao
fechamento do acordo de livre-comércio com o Mercosul. Mas sempre há a
ressalva de que os líderes europeus têm plena consciência da hostilidade
do governo brasileiro em relação ao projeto europeu, e isso, fora o
âmbito comercial, vai limitar qualquer tipo de cooperação.
-
O governo Bolsonaro reduziu o papel político do país no Mercosul e na
crise da Venezuela. Quais são as consequências de Brasília com menos
influência regional para o futuro da região?
-
O Brasil não tem uma estratégia clara nem para o Mercosul nem para a
América do Sul. Em função disso, a região não sabe como responder à
postura brasileira, e há um vácuo de liderança na América do Sul. Isso é
agravado pelo fato de o Brasil ter que encarar muitos desafios internos
e ter muita dificuldade de governar. Isso significa que nenhum projeto
regional irá avançar nos próximos anos, e a região continuará à deriva,
sem um plano brasileiro crível para resolver a crise da Venezuela ou,
pelo menos, exercer uma influência positiva naquele país.
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