O 8 de janeiro e a questão militar
Hamilton Garcia de Lima
sábado, 1 de fevereiro de 2025
A jovem democracia brasileira segue seu curso, em seu ciclo mais extenso e profundo sob a República, sem se animar a sanar os graves problemas que a acometem desde 1985 (vide A crise e suas raízes). Seguindo assim, continuaremos suscetíveis a ameaças políticas como a representada pelo bolsonarismo.
A bem da verdade, o malogro do golpismo bolsonarista se deveu mais à inconsistência de seus estrategos (vide A viagem redonda – de volta à política de vetos) do que a qualquer propalada fortaleza institucional. Quem conhece nossa história republicana sabe que intervenções militares exitosas só se produzem quando em conexão com amplos movimentos sociais extra-caserna. A tentativa de Bolsonaro de se manter no poder passou longe disso.
Forjado no âmbito do centrão como líder corporativo (militar), sem ter estudado a história, Bolsonaro imaginou que a mera mobilização do “soldado-cidadão”, à moda da República da Espada (Governo Deodoro-Floriano, 1889-1894), junto com o toma-lá dá cá da Nova República, seria suficiente para pavimentar seu projeto autoritário. Não foi.
Um breve olhar sobre a Questão Militar do século retrasado nos ajuda a entender tanto o apelo anti-sistema do militarismo em pleno s.XXI, como também sua impotência política. A Questão Militar emerge em 1886 ecoando a consciência de si adquirida pelos militares depois de cinco anos de encarniçada luta do exército regular e dos corpos de voluntários na Guerra do Paraguai (1864-1870). Na ocasião, a governança aristocrática sobre o Exército e a Marinha foi posta à prova, sobretudo no primeiro caso, em função das péssimas condições das forças, desprovidas de materiais e recursos humanos apropriados, além de uma estrutura de apoio capaz de sustentar um conflito daquela magnitude. Em consequência, os militares passaram a perseguir, nos anos seguintes, tanto o reaparelhamento como o adequado treinamento das Forças, além do reconhecimento político e social de sua importância para o país.
Nenhum desses objetivos foi encampado pelo regime imperial, que passou a temer a consciência recém-assumida em combate pelos militares como prenúncio de contestações violentas à ordem escravista vigente. Ao contrário, operaram de modo rápido e descompromissado a desmobilização/fragmentação das unidades combatentes, o que foi percebido pelos oficiais como um menosprezo aos valores e méritos militares.
Desde então, uma série de crises foram colocando lenha no descontentamento do setor, como a da contribuição militar ao montepio (1883), da adesão pública à causa abolicionista (1884) e da autonomia administrativa para inspeção/punição militar (1885), esta última desencadeando uma série de artigos na imprensa que culminou com a proibição de manifestação pública dos militares e punições disciplinares em série (1886) que dariam ensejo à movimentação cívico-militar que culminaria com a fundação do Clube Militar no Rio de Janeiro (1887).
A dimensão da crise militar ficou plasmada nas metas do Clube, que previam não só estreitar os laços de união e solidariedade entre os oficiais do Exército e da Marinha, e defender seus interesses e direitos, como incentivar manifestações cívicas e patrióticas em prol da honra nacional e da dignidade militar. Ato contínuo, o Clube reitera a posição anti-escravista dos militares enviando à Princesa Isabel uma petição contra o engajamento de soldados em operações de captura de escravos. O documento defendia, em tom eloquente, que a liberdade era um valor supremo para os militares e tal designação era incompatível com a missão do Exército e a dignidade do Império.
Todas estas tensões, como sabemos, desaguaram no golpe contra a monarquia (1889) liderado pelo Marechal Deodoro, sob influência do Coronel Benjamin Constant, com o apoio de republicanos civis como Rui Barbosa, Aristides Lobo e Quintino Bocaiúva. Tinha início o ciclo de intervenções cívico-militares que marcariam todo o s.XX.
Refletindo sobre a necessidade da arbitragem militar para a proclamação da República, o monarquista Joaquim Nabuco afirmou de maneira premonitória:
“A República precisa do militarismo como o corpo humano precisa de calor; a questão é tê-lo no grau fisiológico (…). Ter o Exército como força ativa é tê-lo demais, tirar ao Exército todo o caráter político, é tê-lo de menos; a temperatura exata, seria tê-lo como força política de reserva – o que é (…) uma espécie de quadratura de círculo”[i].
A percepção liberal oitocentista de Nabuco foi reiterada, meio século depois, pela novecentista de Raymundo Faoro, que sustentava que, “para a propaganda reacionária, o Brasil (…) seria o prisioneiro (…) (d)os ‘bacharéis de espada’”. A tese expressa por Faoro, em 1958, era que “o afastamento total do Exército da política equivaleria a consagrar o imobilismo oligárquico do regime (…) com a fachada política dos governadores”, concluindo que “a força armada será, por muitos anos, o elo último de intermediação entre o país submisso e a ordem universal em movimento”.
Àquela altura, Faoro constatava que o intervencionismo militar, que trazia vários inconvenientes, como a politização da caserna – que implicava, no limite, no direito de insubordinação militar contra seus superiores – e a militarização da política, estava limitado pela incapacidade militar de governar como ditadura sem o apoio da sociedade e dos partidos regionais (de fato, embora não de direito) – hoje poderíamos sustentar a mesma tese substituindo os partidos pelas lideranças majoritárias no Congresso Nacional.
Foi precisamente esta limitação do poder militar que a Doutrina Góis Monteiro, a partir de 1930, trouxe à baila, determinando todas as intervenções posteriores em termos de suas chances de sucesso ou de fracasso. E foi a ignorância desta lei de bronze do intervencionismo militar que fez com que os linha-dura da caserna fossem reiteradamente derrotados até 1964. Mau aluno que é de História, Bolsonaro ignorou a lição e apostou todas suas fichas na agitação de ruas e estradas, sob o “ideário” de uma hipótese (adulteração das urnas eletrônicas), e na cooptação do oficialato, ignorando que a forte presença militar nos governos dos primeiros anos republicanos (1889-1891) não bastou para a manutenção do poder, e que, mesmo nesse período, o protagonismo dos chefes militares estava baseado não em ambições pessoais, mas nos “interesses nacionais e patrióticos”.
Tivemos sorte que a liderança autoritária tinha esse perfil. Mas, devemos colocar nossas barbas de molho, pois, sem as reformas que precisamos para dar maior solidez à democracia – inclusive a reforma moral-intelectual (de todos) –, continuaremos a contar com sorte.
*Hamilton Garcia de Lima (Cientista Político, UENF/DR[ii])
[i] Citado por Raimundo Faoro, Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro (vol.2); ed. Publifolha/SP-2000.
[ii] Universidade Estadual do Norte-Fluminense/Darcy Ribeiro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comentários são sempre bem-vindos, desde que se refiram ao objeto mesmo da postagem, de preferência identificados. Propagandas ou mensagens agressivas serão sumariamente eliminadas. Outras questões podem ser encaminhadas através de meu site (www.pralmeida.org). Formule seus comentários em linguagem concisa, objetiva, em um Português aceitável para os padrões da língua coloquial.
A confirmação manual dos comentários é necessária, tendo em vista o grande número de junks e spams recebidos.