O mundo, deve-se
admitir, não teve todas as culpas
Vanessa Jurgenfeld
Valor Econômico, 04.09.2012
A Abertura para o Mundo:
1889-1930
Coleção História do Brasil Nação, vol. 3
Vários autores. Org.: Lilia M. Schwarcz
Editora: Objetiva. 344 págs., R$ 44,90
Gustavo Franco:
uma reinterpretação da história econômica do Brasil distante das visões
preferidas por heterodoxos.
A Primeira República (1889-1930) é um
rico momento da história brasileira: envolve transição para o trabalho livre,
as origens do desenvolvimento da indústria nacional, aceleração da urbanização
e um conflito de política econômica em torno, principalmente, das políticas de
valorização do café e da questão cambial. Mas, como todo period histórico, é
vasto em permanências e rupturas, ambiguidades e conflitos de interesses. O
passar dos anos costuma trazer o benefício de ampliar a perspectiva de sua observação.
Gustavo Franco, ex-presidente do Banco
Central e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC-RJ), e o ex-diretor do Banco Central e também professor da PUC-RJ Luiz
Aranha Corrêa do Lago assinam 56 páginas em que fazem uma (re)interpretação da
história econômica dessa fase como parte do livro "A Abertura para o Mundo
(1889-1930)", o terceiro volume da coleção "História do Brasil
Nação".
O texto solto, sem tabelas nem notas de
rodapé comuns aos escritos acadêmicos de economia, busca um público mais vasto
do que os leitores especialistas, integrando uma certa "norma de conduta"
da coleção. Mas é preciso advertir que não se trata de um passeio: há densa
análise sobre a política econômica do período, que perpassa o debate entre papelistas
e metalistas, a adoção do padrão-ouro, o papel de bancos brasileiros no período,
questões relativas a balanço de pagamentos e à taxa de câmbio. Além disso, é
terreno arenoso, se levado em conta que há um debate importante sobre o
período, alvo de diversos intérpretes, como Caio Prado Jr., Celso Furtado,
Warren Dean, Carlos Pelaez, Wilson Cano, João Manuel Cardoso de Mello, dentre outros,
com posicionamentos distintos.
Franco e Lago optam por uma análise
histórica focada especialmente no que denominam de "economia política da
taxa de câmbio". Mas deixam ao leitor a árdua tarefa de buscar as
divergentes visões do período, se pretenderem ter uma compreensão maior do
debate. Diferentemente de interpretações heterodoxas, que entendem o Brasil
como economia dependente/reflexa/subordinada, os autores não dão tanto peso às
restrições externas colocadas por essas outras análises como parte essencial (e
muitas vezes determinante) no entendimento da economia política do país.
Em certo recado às ideias de outras
linhas de pensamento, aliás, os autores escrevem que a "historiografia
parece guardar ressentimentos dessa curta e tumultuada experiência
internacionalista, durante a qual nada teria sido feito para atacar vulnerabilidades
estruturais, que passaram a parecer óbvias depois de 1930 e que são sempre
associadas às maneiras de descrever como perversa e assimétrica a relação do
país com a economia global.
Como se não existissem outros
constrangimentos internos ao crescimento".
Como fica posto, pretende-se mostrar que
o Brasil, "em face de suas próprias limitações", teria deixado passar
uma "oportunidade". Isto é, em momento de crescimento da economia
internacional, teria ampliado seu atraso em relação a outras nações da América
Latina, tendo, inclusive, aumentado sua distância em relação a nações mais
ricas, como os Estados Unidos, numa análise comparativa baseada, especialmente,
em PIB per capita. Assim, a preponderância global do país tanto em café quanto em
borracha não era capaz de deflagrar um processo "de desenvolvimento
sustentado".
Numa perspectiva comparada, o "fraco
desempenho do país" durante a Primeira República teria mais a ver com
"deficiências internas": "qualidade do capital humano,
produtividade, instituições e ambiente de negócios, do que com a tão
frequentemente vilipendiada vulnerabilidade externa". Uma consideração que
certamente levará o leitor a ter certo "flash back" de algumas
discussões costumeiras do tempo atual.
Do namoro mais intenso da economia com a literatura,
presente em recentes livros de Franco, há nesta interpretação também
referências a Machado de Assis, Euclides da Cunha e Mario Vargas Llosa, que tão
bem teriam captado a complexidade do período. Machado é relembrado em três
passagens, uma delas sobre a reforma cambial de 1890, à qual costumava se
referir como "o primeiro dia da criação". Euclides da Cunha e Vargas
Llosa aparecem com indicações de narrativas que mostravam resistência em
relação às mudanças trazidas pela República.
A antropóloga Lilia Schwarcz, da
Universidade de São Paulo, diretora-geral da coleção e coordenadora deste
volume, considera que o texto de Franco e Lago é polêmico, tendo os autores
"comprado várias brigas".
Além da análise de Franco e Lago, o
volume é composto por mais quatro partes. O tema "população e
sociedade" é discutido pela própria Lilia; a "vida política"
recebeu a interpretação de Hebe Mattos (da Universidade Federal Fluminense); as
"relações internacionais" estão a cargo de Francisco Doratioto (da
Universidade de Brasília); e a parte de "cultura" recebeu análise de
Elias Saliba (da Universidade de São Paulo).
A coleção faz parte do projeto
"América Latina na História Contemporânea", da Fundación Mapfre. No Brasil,
a série é constituída de cinco volumes de história (dois ainda serão lançados),
que tratam de 1808 até 2010, e mais um volume todo dedicado a fotografias.
Em todos os volumes há interpretações
específicas sobre a economia do período. O próximo livro, que cobre
acontecimentos entre 1930 e 1960, receberá texto de Marcelo de Paiva Abreu,
também professor da PUC-RJ, organizador do "A Ordem do Progresso: Cem Anos
de Política Republicana, 1889-1989", leitura bastante conhecida dos que
prestam a prova da Anpec - Associação Nacional de Pós-Graduação em Economia. O
período posterior, entre os anos 1960 e 2010, trará texto do economista Paul
Singer, da USP, conhecido por suas análises de orientação marxista.
Lilia entende que as interpretações de
escolas de pensamento distintas sobre a economia – como ocorre quando se olha o
projeto da primeira à última publicação prevista - é algo positivo para a
coleção. Encampa-se, assim, a difícil missão de torná-la plural (sem perder a
coerência) em assunto tão controverso como é a história econômica brasileira.