Confesso que, mesmo quando eu era marxista, no século passado, no milênio anterior, eu nunca gostei muito do Estado, pois sempre fui um rebelde com causa, e o Estado é a coisa mais determinada que possa existir, sempre se metendo na nossa vida, dizendo o que podemos, e sobretudo o que não podemos fazer.
Assim, mesmo quando eu queria expropriar a burguesia, nacionalizar os setores ditos estratégicos, e socializar a riqueza, eu nunca fui muito propenso a entregar tudo isso a burocratas. Talvez tenha sido a influência do Maurício Tragtenberg, meu professor de História no colegial (clássico), na segunda metade dos anos 1960, ele que era um judeu ateu, e um socialista anarquista, da tradição autogestionária (já escrevi sobre ele, e vou recuperar esse texto sobre "A Educação de Maurício Tragtenberg").
Mas, no texto abaixo, que recupero nesta hora da saudade (de 2004), está minha primeira reflexão sistemática (e utópica) sobre o Fim do Estado e a adesão a uma tresloucada coisa que eu chamei de "governança global" (como se pode ser ingênuo, não é mesmo?).
Mas, sem mais delongas, vamos ver o que eu escrevia sobre isso doze anos atrás.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 13 de julho de 2016
Contra a soberania estatal: uma
proposta para acabar com Vestfália
Paulo Roberto de
Almeida
Simpósio
trilateral da Fundação Konrad Adenauer sobre
Política
Social Internacional
(Rio
de Janeiro, 27 e 28 de Maio de 2004;
Pestana Rio Atlântica Hotel – Av. Atlantica, 2964 - Copacabana – RJ)
(Notas para desenvolvimento oral, e
ulteriormente texto escrito)
Respondo sumariamente à seguinte
questão que me foi colocada pelos organizadores:
“Que reformas no sistema internacional são desejáveis e possíveis a
fim de se alcançar justiça social internacional?”
Sendo
telegráfico, eu diria apenas o seguinte:
O sistema de relações
internacionais precisaria caminhar para a construção de uma arquitetura
política e econômica que possa se basear na governança global e na democracia
preventiva.
Dito assim, parece fácil, mas o que
estamos propondo resultaria, a termo, na própria extinção, eliminação ou
redução substancial do sistema de Vestfália, ou seja, o da soberania absoluta
dos estados nacionais.
Talvez seja totalmente utópico,
irrealista e impossível de ser implementada uma tal revolução no sistema de
relações internacionais, mas acredito, sinceramente, que o direito
internacional se encaminha, ainda que a passos muito lentos, nessa direção.
Recordemos, antes de mais nada, que
também Kant aspirava a uma utopia desse tipo, a paz perpétua, que para ele
deveria ser baseada numa espécie de monarquia universal, o que significaria, em
nossos tempos, regimes constitucionais e democráticos. Ora, o avanço do sistema
multilateral, consubstanciado na ONU e na OMC, representa, de certa forma, um
esboço dessa futura arquitetura política na qual os conflitos tendem a ser
marginais e decrescentes.
Se partilharmos da opinião, bastante
sensata, de que regimes plenamente democráticos não conduzem guerras ofensivas
e que respeitam os direitos básicos de seus cidadãos e os de todos os demais,
então podemos afirmar que a democracia é um requisito essencial de todo e
qualquer regime aspirando à justiça e à paz internacionais.
Ora, sendo as ditaduras o resultado
de processos políticos internos aos países e que estes são normalmente
constituídos e reconhecidos segundo o modelo de Vestfália, então poderemos
concluir, pela lógica formal, que a realização da democracia pode requerer, em
certos casos, a abrogação gradual do sistema de Vestfália para que o ideal
democrático possa ser realizado. Estou simplificando, obviamente, e nem
acredito que a democracia possa ser implantada desde fora, mas creio,
fundamentalmente, em valores universais que são os representados pelo
Iluminismo europeu, multilateralizados na prática desde a Revolução francesa e
o moderno sistema onusiano (com suas conhecidas limitações soberanistas,
justamente). Desse ponto de vista, recuso o relativismo histórico e a
relatividade culturalista: valores universais são valores universais, e o
primado do indivíduo deve passar antes dos interesses dos Estados.
Por isso, acredito que o próximo
passo na elaboração conceitual do direito internacional esteja indicado pelo
itinerário da afirmação dos direitos individuais contra os direitos do Estado e
contra a razão de Estado. Não é fácil admitir este princípio, pois se teme o
unilateralismo, a arrogância imperial e os abusos derivados dos interesses dos
mais fortes, mas creio que o multilateralismo político já avançou ao ponto de
poder limitar o poder da força e tentar afirmar, doravante, a força do direito.
Contrariamente aos que acreditam que
a intervenção americana no Iraque representou uma crise da ONU e de seu CS,
creio que ela representa, ao contrário, uma reafirmação de certos princípios
básicos que estarão sendo novamente defendidos pela maioria dos países membros.
Isto, do ponto de vista da
democracia e dos direitos humanos. Do ponto de vista da afirmação das
aspirações dos povos a maior bem-estar, a maior justiça, pela garantia de
condições mínimas de uma existência digna, creio igualmente que o caminho para
essa prosperidade ampliada dos países e pessoas mais pobres ou mesmo miseráveis
(que são justamente os suscetíveis de abrigarem regimes despóticos e
autoritários) passa pela ampliação irrefreável da globalização, o fator mais
poderoso, nos dias que correm, para a ampliação das franquias e a criação de
riquezas.
Uma globalização ampliada constitui
o mais poderoso fator de convergência entre os povos, ainda que alguns
acreditem que ela produz desemprego, concentração ou até mesmo miséria. Os
dados disponíveis até aqui são todos inquestionavelmente em favor da
globalização. O nacionalismo econômico costuma ir de par com regimes fechados,
cartelizados, protecionistas, enfim, restritivos das escolhas individuais e
portanto das liberdades humanas, entre elas a liberdade econômica de trabalhar
e de acumular.
Trabalhei sobre alguns dos estudos
de economistas, entre eles Sala-i-Martin e Surjit Bhalla, que confirmam os
efeitos inegavelmente positivos da globalização na melhoria da condição dos
mais pobres.
Dois requerimentos se impõem para
ampliar a globalização: eliminar o absurdo protecionismo comercial e o
subvencionismo pornográfico dos países ricos nas áreas da economia agrícola e
da produção industrial labour-intensive, e reduzir o absurdo nacionalismo
econômico dos países mais pobres, que só traz prejuízos aos seus povos, em
benefício exclusivo de suas elites. Alguns ainda crêem que soberania econômica
e capitalismo nacional são sinônimos de dignidade e bem estar, quando estes
princípios, na verdade, estão associados a baixos níveis de produtividade e de
desempenho econômico.
Por isso, não hesito em afirmar:
abaixo Vestfália, abaixo o soberanismo político e o nacionalismo econômico,
ambos restritivos e tendencialmente autoritários. Viva a abertura, a
universalização dos direitos individuais, a globalização e o internacionalismo.
O
sentido da história é este: poderá demorar um certo tempo, mas o caminho é
este.
Paulo Roberto de
Almeida
Brasília, 27 de maio de
2004