terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

É impossível compreender a guerra na Ucrânia sem conhecer a História - Timothy Snider (O Estado de S. Paulo)

É impossível compreender a guerra na Ucrânia sem conhecer a História

Timothy Snider

O Estado de S. Paulo, 28/02/2023

Enquanto dava uma aula de história ucraniana no semestre passado, senti um gosto do surreal. A guerra na Ucrânia já estava em andamento há meio ano quando comecei. Uma potência nuclear tinha atacado um país que abriu mão de suas armas nucleares. Um império tentava deter a integração europeia. Uma tirania tentava esmagar uma democracia vizinha. Nos territórios ocupados, a Rússia cometeu atrocidades genocidas com claras expressões de intenção genocida.

E ainda assim, a Ucrânia estava reagindo. Os ucranianos resistiram à chantagem nuclear, desprezaram o império fanfarrão e assumiram riscos em nome da sua democracia. Em Kiev, Kharkiv e, mais tarde, Kherson, eles derrotaram os russos, detendo a tortura, o assassinato e a deportação.

Estávamos em um ponto de inflexão histórica. Mas onde estava a história? As telas de TV mostravam continuamente a Ucrânia, e a única coisa que um espectador poderia dizer com alguma certeza é que os comentaristas jamais estudaram a Ucrânia. Ouvi de antigos alunos meus, atualmente empregados no governo ou no jornalismo, o quanto estavam felizes por terem feito o curso de história do Leste Europeu. Disseram estar um pouco menos surpresos que os outros com a guerra; disseram ter mais pontos de referência.

O contraste entre a importância histórica dessa guerra e a falta de lição de casa em história revela um problema maior. Conhecemos muito pouco da história. Projetamos o ensino para envolver questões técnicas: como fazer. E solucionar os problemas do cotidiano é muito importante.

Mas, se nos privamos da história, tudo é uma surpresa: o 11/9, a crise financeira, a invasão do Capitólio, a invasão da Ucrânia. Quando somos chocados todos os dias mas não temos história, tateamos em busca de pontos de referência, e nos tornamos vulneráveis a pessoas que nos dão respostas fáceis. Então o passado se torna a dimensão do mito, na qual aqueles que ocupam o poder geram as narrativas que julgam mais convenientes.

O presidente russo Vladimir Putin contou uma história a respeito do passado que nada tem a ver com a História. De acordo com ele, Rússia e Ucrânia foram criadas juntas, no batismo de um governante mil anos atrás. Partilham a mesma cultura, e portanto devem ser governadas pela mesma pessoa. Se parecer que algo diferente aconteceu, não seria de fato um capítulo dessa história. Se os ucranianos acreditarem que não são russos, isso seria resultado da obra nefasta de forasteiros. Putin não se limitou a dizer essas coisas: ele aprovou leis da memória para evitar que os russos sejam questionados pela história, e chegou a riscar dos manuais a palavra “Ucrânia”.

Em termos de lógica, é algo circular; e enquanto política, é algo tirânico. Se eu pudesse afirmar que os canadenses são americanos porque falam a mesma língua, ou porque partilhamos uma história em comum, isso nos pareceria um motivo idiota para dar início a uma invasão. Quando um ditador reivindica o poder de definir a identidade de outro povo, a questão da liberdade desse povo jamais vem à tona. Se a identidade for congelada para sempre pelos desígnios de um governante, os cidadãos logo se veem sem escolha.

Enquanto observamos onde essa lógica levou os russos, começamos a questionar a validade dessas histórias. Mas não deveria ser necessário uma atrocidade tão óbvia para nos fazer duvidar. Até recentemente, era grande demais o número de comentaristas que se contentavam em seguir a versão de Putin: Rússia e Ucrânia eram eternamente semelhantes de alguma forma, pessoas que falam russo são russas de alguma forma, e a cultura de acordo com as definições de um ditador seria o seu destino.

Foi surreal, de maneira bem diferente, quando milhões de pessoas vieram participar da minha aula online. Os americanos tinham percebido que havia algo de errado no mito russo, mas não sabiam como preencher a lacuna. Foi animador ouvir, nos milhares de e-mails que recebi, que essa lacuna poderia ser preenchida pela história. Foi um semestre muito animado; a história estava fazendo os estudantes pensarem. Quando pensamos historicamente, reconhecemos que as comunidades políticas têm ascensão e queda, e que as escolhas humanas — incluindo as escolhas perversas de tiranos militaristas — são sempre parte da história. Aprendemos a absorver melhor os eventos. Despertamos para as vivências dos outros. Para mim, pessoalmente, foi tocante ouvir relatos dos próprios ucranianos, incluindo soldados da linha de frente, que acompanharam a aula online.

A história ucraniana dá mais sentido ao mundo de hoje. Toda a trajetória da nossa civilização ocidental, dos gregos em diante, fica mais clara se entendermos que Atenas era alimentada pelo que é atualmente o sul da Ucrânia. A fantástica história dos vikings torna-se ainda mais surpreendente quando entendemos que eles fundaram um estado em Kiev. A era da exploração toma novas dimensões quando reconhecemos que potências polonesas e russas construíram seus impérios penetrando a leste na massa terrestre eurasiana, onde finalmente encontrariam a Ucrânia. A era dos impérios é concluída com os projetos neo-imperiais nazista e soviético, que tinham ambos o seu foco na Ucrânia. Esse conflito horrivelmente sangrento fez da Ucrânia o lugar mais perigoso do mundo durante a era totalitária de 1933 a 1945. Esse capítulo e a russificação que se seguiu tornaram a história da Ucrânia difícil de contar, até mesmo para os ucranianos.

Mas isso está mudando agora. Praticamente tudo que eu disse nas minhas aulas veio da obra de historiadores ucranianos. Iaroslav Hritsak, um dos melhores dentre eles, diz há décadas que a Ucrânia vai sobreviver quando uma nova geração amadurecer. Agora, isso ocorreu, não somente na minha área, mas no jornalismo, na sociedade civil, nos negócios e na política. A Ucrânia é diferente da Rússia por causa de sua história distinta, incluindo a história dos 30 anos mais recentes, desde o fim da União Soviética. Enquanto Putin empurrava seu país para a areia movediça dos mitos, os ucranianos — com seus votos, seus protestos e sua resistência — abriram caminho para chegar a uma noção mais confiante de si mesmos e de quem são.

Ao fazerem história, eles nos lembram que precisamos da história para compreendê-los melhor, para compreender melhor a guerra — e também para entender melhor a nós mesmos. Como os ucranianos, vivemos um ponto de inflexão histórica. Como eles, teremos que aprender história e desafiar os mitos para alcançar um futuro democrático.


TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL


* Timothy Snyder é professor de história na Universidade Yale e autor de “The Road to Unfreedom” e “Bloodlands” Sua edição atualizada em áudio de “On Tyranny” inclui novas aulas abordando a Ucrânia.

https://www.estadao.com.br/internacional/e-impossivel-compreender-a-guerra-na-ucrania-sem-conhecer-a-historia/

 

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Back to work, again; new books from Paulo Roberto de Almeida

Terei de retomar a escrita pedagógica numa área que pensava já pacificada?

Meu primeiro livro contra o bolsolavismo diplomático se chamou Miséria da Diplomacia (2019), de um total de cinco, até o Apogeu e Demolição da Política Externa (2021). 

Antes teve o Nunca Antes na Diplomacia (2014), sobre o lulopetismo na política externa, seguido de Contra a Corrente: ensaios contrarianistas sobre a política externa (2019).

Será que vou ter de reincidir agora, numa mesma linha de argumentos? 

Sugestões de título para o primeiro de uma nova série?

Não vale “Diplomatices: a doença infantil do Populismo Diplomático”, ainda mais evidente do que algo do tipo “O Que Fazer na Política Externa?”.

Tem também “O Eterno Retorno na Política Externa”, “Diplomacia Prática para Reincidentes” ou ainda “Brazilian Diplomacy for Dummies”.

C’est l’embaras du choix…

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 27/02/2023

Os 12 pontos do "Plano de Paz" da China para a guerra de agressão da Rússia contra Ucrânia: explicitação Paulo Roberto de Almeida

 Não é um verdadeiro plano de paz, mas declarações genéricas por parte da China. Elas, ainda assim, constituem uma grave acusação à Rússia, algumas advertências ao Ocidente (Otan e EUA) e uma tentativa de ficar bem como todo mundo

Os 12 points podem ser resumidos como segue:

1) Respect sovereignty.

Quem não respeitou a soberania da Ucrânia foi a Rússia. Assim, ela tem de partir.

2) Legitimate security interests should be valued and properly addressed.

Aparentemente dirigido contra a OTAN, que chegou às fronteiras da Rússia. Mas cabe registrar que foram os países vizinhos que imploraram para ingressar na OTAN, pois temiam novas incursões do antigo império czarista ou soviético, com razão. Os que assim fizeram não foram atacados.

3) Stop the shooting.

Ou seja, “Cessar fogo". Mas quem começou atirando foi a Rússia; ela deve parar. Se a Ucrânia deixar de atirar, ela será simplesmente submergida.

4) Start the talking.

Quem sempre se recusou a conversar foi Putin. Os chineses podem dizer isso a ele.

5) Alleviate the humanitarian crisis.

Quem está violando as leis da guerra e os tratados humanitários é a Rússia.

6) Implement the international codes regarding war.

São acordos muito antigos relativos à população civil e prisioneiros de guerra (alguns tem sido trocados), mas a Rússia atira contra alvos civis, inclusive hospitais e creches, e já sequestrou milhares de crianças ucranianas, transferindo-as para a Rússia. São crimes de guerra e crimes contra a humanidade.

7) All parties should agree to abide by Convention on Nuclear Safety.

Ponto muito importante, que não tem sido respeitado pela Rússia em Zaphorizia, como já atestou a AIEA.

8) Parties must not use or threaten to use nuclear weapons against each other.

Foi Putin quem primeiro mencionou a possível utilização de "todo tipo de arma", o que inclui não apenas armas nucleares, mas também químicas e bacteriológicas.

9) Guarantee the safe transportation of food under existing agreements.

Foi a Rússia quem bloqueou os portos do Mar Negro e do Mar de Azov, impede barcos ucranianos de sair e roubou toneladas de grãos dos entrepostos ucranianos.

10) Stop unilateral sanctions.

Sim, está dirigido contra os EUA e todos os demais países que impuseram sanções contra a Rússia, mas elas estão inteiramente dentro da linha da Carta da ONU, e só são unilaterais porque a Rússia usa abusivamente do direito de veto no CSNU.

11) Ensure the stability of the industrial chain supply chain.

Os setores de infraestrutura – energia, comunicações, transportes – já foram terrivelmente afetados pelos ataques indiscriminados (ou talvez dirigidos) da Rússia, o que perturba a economia da Europa central e do mundo em geral.

12) Promote post-war reconstruction.

A AGNU já aprovou em outubro de 2022 uma resolução que responsabiliza a Rússia pela destruição provocada na Ucrânia. Ela terá de assumir responsabilidade pelo custo das reparações, mas o debate sobre a utilização das reservas russas congeladas está apenas começando. Recorde-se que o Iraque teve de assumir os custos da sua invasão no Kwaite, como descontos controlados pela ONU sobre suas exportações de petróleo.

Paulo Roberto de Almeida

Brasilia, 27 de fevereiro de 2023


domingo, 26 de fevereiro de 2023

O declínio chinês já começou, pela demografia - Yi Fu-xian (Taipei Times)

 The Chinese era is already over

  • Yi Fu-xian

    Taipei Times, Mon, Feb 27, 2023 page 8

    Last month, China officially acknowledged that its population began to decline last year — about nine years earlier than Chinese demographers and the UN had projected. 

    The implications of this are hard to overstate. It means that all of China’s economic, foreign and defense policies are based on faulty demographic data.

    For example, Chinese government economists have predicted that by 2049, China’s per capita GDP could reach half or even three-quarters of that of the US, while its overall GDP could grow to twice or even three times that of its rival. 

    However, these forecasts assumed that China’s population would be four times that of the US in 2049. 

    The real figures tell a very different story. Assuming that China is lucky enough to stabilize its fertility rate at 1.1 children per woman, its population in 2049 would be just 2.9 times that of the US, and all its key indicators of demographic and economic vitality would be much worse.

    The faulty predictions do not affect only China. They imply a geopolitical butterfly effect that could ultimately destroy the existing global order. 

    Chinese authorities have been acting in accordance with their longstanding belief in a rising East and declining West. 

    Similarly, Russian President Vladimir Putin believed that as long as Russia maintained stable relations with a rising China, the declining West would be powerless to hold him accountable for his aggression against Ukraine. 

    In its haste to abandon Afghanistan to focus its resources on China, the US might have unwittingly emboldened Putin further.

    Population aging is likely to have a permanent, major drag on China’s economy. As Italy’s experience shows, the old-age dependency ratio — the number of people older than 64, divided by those aged 15 to 64 — has a strong negative correlation with GDP growth, as does the median age and the proportion of people older than 64.

    In 1950, Japan’s median age was 21, compared with 29 in the US. As one would expect, Japan subsequently benefited from years of faster economic growth. 

    However, by 1994, the prime-age labor force — people aged 15 to 59 — began to decline, whereas the US working-age population is not expected to fall until 2048.

    By 1992, Japan’s median age was 5.5 years above that of the US, and its old-age dependency ratio began to exceed that of the US. Not surprisingly, its GDP growth has been lower than the US’ ever since.

    Japan’s per capita GDP rose from 16 percent of the US level in 1960 to 154 percent in 1995. 

    However, by last year, that figure had fallen to 46 percent, and it is likely to fall below 35 percent.

    Similarly, owing to their young populations, Taiwan and South Korea achieved rapid economic convergence for more than five decades, with per capita GDP soaring from 5 percent of the US level in 1960 to 42 percent and 53 percent respectively in 2014. 

    However, both economies have since stagnated as their workforces have shrunk, putting them on track to fall below 30 percent of US per capita GDP.

    In China’s case, the median age in 1980 was 21, eight years younger than the US’, and from 1979 to 2011, its GDP grew at an average annual rate of 10 percent.

    However, China’s prime-age labor force — people aged 15 to 59 — began to shrink in 2012, and by 2015, GDP growth had decelerated to 7 percent before slowing to 3 percent last year. 

    An average of 23.4 million births per year from 1962 to 1990 made China “the world’s factory.” 

    However, even China’s own exaggerated official figures put last year’s births at just 9.56 million. Chinese manufacturing could continue to decline as a result, creating new inflationary pressures in the US and elsewhere.

    While China’s population was 1.5 times larger than India’s in 1975, even the Chinese government’s exaggerated official figures show that it was smaller last year — 1.411 billion compared with 1.417 billion.

    In reality, India’s population surpassed China’s a decade ago, and it remains on track to be about 1.5 times larger than China’s in 2050, with a median age of 39 — a full generation younger than China’s, at 57.

    By 2030, China’s median age would already be 5.5 years higher than that of the US, and by 2033, its old-age dependency ratio would begin to exceed the US’.

    Its GDP growth rate would begin to fall below the US’ from 2031 to 2035, at which point its per capita GDP would hardly have reached 30 percent of its rival’s — let alone the 50 percent to 75 percent predicted by Chinese official economists. 

    If the US is overtaken as the world’s largest economy, it would be by India, not China.

    China is investing heavily in artificial intelligence and robotics to offset the economic drag of aging. 

    However, these efforts can go only so far, because continuing innovation relies on young minds. 

    Moreover, robot workers do not consume, and consumption is the major driver of any economy.

    China’s decline is likely to be gradual. It could remain the world’s second or third-largest economy for decades.

    However, the huge gap between its waning demographic and economic strength and its expanding political ambitions could make it vulnerable to strategic misjudgements. 

    Memories of past glory or fear of lost status could lead it down the same dangerous path that Russia has taken in Ukraine.

    China’s leaders should heed the lessons of Russia’s botched invasion and wake up from their unrealistic “Chinese Dream” of national rejuvenation. 

    The Chinese government’s policy approach is a formula for demographic and civilizational collapse.

    The US also has lessons to learn, given its apparent failure to manage a declining Russia. 

    The US and its allies — including Australia, Canada, the EU, Japan, New Zealand, South Korea and the UK – would also be dealing with societal aging and resulting economic slowdowns.

    Their combined share of the global economy already fell from 77 percent in 2002 to 56 percent in 2021, and that trend is likely to continue.

    The geopolitical implications should be obvious. If the major powers are wise, they will cooperate in good faith to forge an enduring global order before they no longer have the power to do so.

    Yi Fuxian is a senior scientist in obstetrics and gynecology at the University of Wisconsin-Madison.

    Copyright: Project Syndicate


Rui Barbosa, diplomata, livro de Carlos Henrique Cardim: A Raiz das Coisas: Rui Barbosa, o Brasil no Mundo, agora em 2a edição - Paulo Roberto de Almeida

Assista no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=Heb66YWvo24 

Ao ensejo da publicação da 2a. edição da obra do embaixador Carlos Henrique Cardim, permito-me reproduzir a resenha que fiz quando da publicação da 1a. edição. Farei nova quando receber o livro recentemente publicado, com acréscimos e atualizações: 

1849. “Rui Barbosa, diplomata”, Buenos Aires, 6 janeiro 2008, 3 p. Resenha do livro de Carlos Henrique Cardim: A Raiz das Coisas: Rui Barbosa, o Brasil no Mundo (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, 350 p.). Revista Desafios do Desenvolvimento (Brasília: IPEA, ano 5, n. 39, janeiro 2008, p. 62). Relação de Publicados n. 811.


Rui Barbosa, diplomata

 

Carlos Henrique Cardim

A Raiz das Coisas: Rui Barbosa, o Brasil no Mundo

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, 350 p.

 

O patrono incontestável da diplomacia brasileira é o “sacrossanto” Barão do Rio Branco, que deve figurar num pedestal do Itamaraty, à direita de Deus Pai, sem qualquer concorrente à sua esquerda (e nenhum iconoclasta se apresentou até hoje). No entanto, o famoso Juca Paranhos atingiu a categoria de mito, mais por ter protagonizado algumas bem-sucedidas negociações de fronteiras, numa fase de consolidação dos limites geográficos da pátria, do que por ter formulado, propriamente, as bases conceituais da moderna diplomacia brasileira. Por certo, ele sempre é referido quando se trata da escolha sábia de procurar manter boas relações com o gigante hemisférico, ao mesmo tempo em que se buscava cultivar, numa boa barganha de equilibrista, nossa interação com a Europa, de maneira a preservar o rico patrimônio histórico trazido pelos novos imigrantes da fase pós-escravidão. Isso tudo, alertava o Barão, sem alienar nosso capital de altos e baixos com a Argentina, que ele pretendia o mais alto possível, desde que garantida a “relação especial” com os EUA da era Teddy Roosevelt, o tal que recomendava falar macio, mas carregar um grande porrete para convencer os mais recalcitrantes. Rio Branco nunca o desaprovou, pelo menos explicitamente.

Poucos se dão conta de que Rui Barbosa, o primeiro ministro da Fazenda da República, deveria ser considerado o “pai intelectual” da moderna diplomacia brasileira: ele deixou um legado de posições, hoje devidamente constitucionalizadas nos primeiros artigos da Carta de 1988. Rui nunca foi um diplomata profissional, mas se o fosse, poderia ser facilmente acomodado, com sua figura esguia e franzina, à esquerda de Deus itamaratiano, como um legítimo complemento ao redondo Barão. Esta monografia do Embaixador Cardim comprova que Rui foi muito maior do que o registrado na literatura da nossa política externa, mesmo sem ter deixado alguma grande obra centrada nessa problemática das relações internacionais. Aliás, parece incrível, mas Rui não deixou nenhum livro publicado, sobre qualquer tema, a despeito de suas “obras completas” – na verdade, coletâneas de artigos e textos diversos – perfazerem 160 volumes, cuidadosamente compilados pela Fundação que leva no seu nome no Rio de Janeiro. Foi lá que Cardim mergulhou para escrever a mais completa obra sobre o “diplomata” Rui Barbosa, um orador exímio.

Sua obra de ativo “internacionalista” está dispersa em centenas de artigos, pareceres, discursos, orações e preleções jurídicas, tendo sido jurisconsulto, consultor e advogado das boas causas: defendeu, por exemplo, o direito da primeira mulher que passou no concurso do velho MRE a ingressar na carreira diplomática, numa fase de misoginia explícita contra as poucas e corajosas candidatas. Sua mais importante ação diplomática está contida em telegramas, na condição de chefe da delegação à segunda conferência internacional sobre a paz mundial, realizada na Haia em 1907. Ele fez uma “dobradinha” de alta qualidade com o Barão, que trocava freqüentes impressões com ele, em telegramas cifrados, sobre os rumos dessa conferência e as posições que o Brasil deveria mais convenientemente adotar, em face do verdadeiro monopólio que as grandes potências exerciam sobre a agenda internacional. Cardim selecionou os expedientes e organizou um dossiê abrangente sobre a atividade e o pensamento de Rui em temas internacionais, numa obra que já nasce clássica, se a distinção se aplica. 

Sua importância não parece ter sido reconhecida na diplomacia brasileira até recentemente, quando uma sala, com o seu nome, foi inaugurada no novo palácio dos Arcos em Brasília, bem mais conhecido como Itamaraty. Curioso que, a despeito da preeminência do Barão nos anais da Casa, nenhuma de duas pesquisas recentes sobre as grandes personalidades da história brasileira colocou Juca Paranhos entre os cinco primeiros. Em ambas, figura Rui; numa delas em primeiro lugar, um justo reconhecimento pelo seu mérito de verdadeiro modernizador do Brasil, desde cedo um opositor da tutela militar que insistiu em preservar o poder moderador durante a maior parte da República. Cardim nos traz aqui não exatamente o tribuno civilista e defensor da legalidade democrática, mas o defensor da igualdade soberana das nações, que ocupa lugar de destaque na moderna diplomacia brasileira. Poucos são os textos conhecidos dessa vertente diplomática do famoso jurista baiano, que aqui aparecem pela primeira vez resumidos e interpretados por um diplomata bibliófilo, que também é um acadêmico exemplar e um dos grandes editores de livros acadêmicos já conhecidos na história editorial brasileira. 

O livro ainda traz belas imagens de época – fotos e uma saborosa iconografia com charges dos mais famosos humoristas brasileiros de um século atrás – e anuncia, além de tudo, novos volumes sobre Rui Barbosa, internacionalista brasileiro, que a Fundação que leva o seu nome publicará. Mas este, já é um livro de coleção...


Paulo Roberto de Almeida

[Buenos Aires, 6 de janeiro de 2008]

Revista Desafios do Desenvolvimento (Brasília: IPEA, ano 5, n. 39, janeiro 2008, p. 62). Relação de Publicados n. 811. 


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Cardim também foi o coordenador da reprodução do intercâmbio telegráfico entre Rui e o Barão do Rio Branco quando da segunda Conferência da Paz da Haia, em 1907, sobre a qual também fiz uma pequena nota: 

Centro de História e Documentação Diplomática: II Conferência da Paz, Haia, 1907: a correspondência telegráfica entre o Barão do Rio Branco e Rui Barbosa (Brasília: FUNAG, 2014, 272 p.): 

Carlos Henrique Cardim, que apresentou tese e tem livro publicado sobre Rui diplomata, assina um prefácio de 18 páginas para introduzir o intercâmbio mantido a propósito do que ele chama de “estreia do Brasil no mundo”, consubstanciada na defesa da “dignidade da nação”, nas palavras de Rio Branco, que Rui interpretou como defesa intransigente da igualdade soberana das nações, entrando por isso em choque com as posições das nações mais poderosas. Seguem 240 páginas de telegramas entre os dois homens, desde 13 de março, ainda no Brasil, até 26 de dezembro, no Recife, a caminho do Rio, depois dos meses passados em Scheveningen, com trocas diárias de mensagens, informações e impressões de ambos sobre as posições dos demais participantes e sobre a que convinha ao país adotar. Matéria prima indispensável para os estudiosos.


Paulo Roberto de Almeida

Hartford, 15 de fevereiro de 2015

 

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Por fim, permito-me informar que, em meu mais recente livro, Construtores da Nação: projetos para o Brasil, de Cairu a Merquior (São Paulo: LVM Editora, 2022, 304 p.), consta um extenso capítulo sobre Rui Barbosa, descrito como "O defensor do Estado de Direito: Rui Barbosa". 




Sumário 

Construtores da Nação: projetos para o Brasil, de Cairu a Merquior

 

Prefácio

       Arnaldo Godoy, 11

Apresentação

Nos ombros dos verdadeiros estadistas, Paulo Roberto de Almeida, 19

 

Introdução

Da construção do Estado à construção da Democracia, 25

 

Primeira parte: a construção do Estado

     O Estado antes da Ordem e da própria Nação, 35

1.  As vantagens comparativas de José da Silva Lisboa (Cairu), 43

2.  Por uma monarquia constitucional liberal: Hipólito da Costa, 52

3.  Civilizar os índios, eliminar o tráfico: José Bonifácio de Andrada e Silva, 66

4.  Um Memorial para reformar a nação: Francisco Adolfo de Varnhagen, 77

 

Segunda parte: a construção da Ordem

     Uma Ordem patrimonialista e oligárquica, 97

5.  Os liberais conservadores: Bernardo, Paulino e Paranhos, 99

6.  Um aristocrata radical: Joaquim Nabuco, 111

7.  Bases conceituais da diplomacia: o paradigma Rio Branco, 119

8.  O defensor do Estado de Direito: Rui Barbosa, 128

 

Terceira parte: a construção do Progresso

     O Progresso pelo Estado, com o Estado, para o Estado, 141

9.  Um empreendedor liberal numa terra de estatistas: Mauá, 150

10. Um inglês imaginário e o nacionalista do petróleo: Monteiro Lobato, 158

11. O revolucionário modernizador: Oswaldo Aranha, 170

12. Duas almas pouco gêmeas: Roberto Simonsen e Eugenio Gudin, 181

 

Quarta parte: a construção da Democracia

     A Democracia carente de união nacional, 193

13. Em busca de uma esquerda democrática: San Tiago Dantas, 196

14. O militante do parlamentarismo: Afonso Arinos de Melo Franco, 209

15. As oportunidades perdidas do Brasil: Roberto Campos, 219

16. O liberalismo social de José Guilherme Merquior, 230

 

A construção da Nação: um itinerário de 200 anos de história, 253

 

Posfácio

O que a intelligentsia brasileira construiu em dois séculos de ideias e ações?  261

 

Referências Bibliográficas para os Construtores da Nação, 269

Nota sobre o autor, 301


"O voto inquietante do governo Lula na ONU" - Editorial bolchevique do 247, o reduto dos petistas furibundos

O Editorial do 247, o mais fiel e sabujo seguidor dos neobolcheviques do petismo sectário, começa disparando petardos contra o chanceler Mauro Vieira, em virtude de sua atitude relativamente correta de não deixar de reconhecer que a Rússia cometeu CRIMES (mas ele não vai muito longe na condenação formal da guerra de agressão do tirano Putin). O 247 pretende que o Brasil de Lula fique do lado da Rússia e da China, ou seja, do lado da violação da Carta da ONU e do desrespeito às leis da guerra e convenções humanitárias. Os celerados aceitam tudo, desde que seja contra o "imperialismo estadunidense". 

Paulo Roberto de Almeida


O voto inquietante do governo Lula na ONU

Do ponto de vista diplomático, a mudança de voto do Brasil significa uma vitória dos Estados Unidos.

Editorial 26/02/2023

https://www.brasil247.com/editoriais247/o-voto-inquietante-do-governo-lula-na-onu


 O voto de adesão do governo brasileiro à recente resolução da Assembleia Geral da ONU condenando a Rússia e exigindo que Moscou "retire imediata, completa e incondicionalmente todas as suas forças militares do território da Ucrânia dentro das suas fronteiras internacionalmente reconhecidas" representou uma tomada de posição do governo Lula em relação ao conflito, que completa um ano.

Do ponto de vista diplomático, a mudança da atitude brasileira significa uma vitória dos Estados Unidos.

Até que as autoridades de Brasília rompam o silêncio é difícil intuir os meandros que levaram a essa decisão.

A guinada envolveu uma certa precipitação, pois implicou a escolha, ao que parece definitiva, de um lado no conflito russo-ucraniano, o que pode gerar efeitos opostos, vindo a  prejudicar a anunciada intenção do presidente Lula de servir como mediador da paz no conflito.

Lula poderia manter a neutralidade alegando que o Brasil havia herdado essa porta já arrombada pelo posicionamento do governo Bolsonaro em votações anteriores na ONU. 

A atitude brasileira até este voto parecia procurar equilibrar o compromisso com o fim das hostilidades com uma recusa a defender a posição de Moscou ou de Kiev na guerra. 

No front diplomático, o país buscava apoiar-se em seus parceiros do Brics, numa espécie de "alinhamento aos não-alinhados". 

Pelo canal dos Brics vinham se abrindo relações próximas com o principal parceiro comercial do Brasil, a China.


Ao que parece, o Brasil está se colocando numa posição incômoda, pois a guerra na Ucrânia cada vez mais se revela como instância de um confronto mais geral entre EUA e China, sendo esta uma aliada cada vez mais estratégica da Rússia. 

No afã de atender o parceiro estadunidense, o Brasil fragiliza suas relações não apenas com o maior parceiro econômico, mas também  se isola,  como o único país do Brics a apoiar a resolução contrária à Rússia.

Do lado chinês, as consequências podem vir na forma de um rebaixamento do status da visita do presidente Lula a Pequim, ou no prolongamento das restrições à importação de carne brasileira ou mesmo na forma de obstáculos para a projetada nomeação da ex-presidente Dilma Rousseff na direção do banco do Brics.

Estão ainda por ser esclarecidos quais foram os benefícios obtidos pela diplomacia brasileira em troca dessa concessão a Washington.

Ela vai de encontro ao tom das promessas de equidistância do presidente Lula durante a campanha eleitoral e gera desconforto junto a parcela ponderável de seus apoiadores.

Não se apagaram da memória os episódios de  espionagem promovida por Washington (ao tempo em que Obama era presidente e Joe Biden seu vice) sobre o governo da própria Dilma.

Também não foi  esquecida a participação de Washington na gênese e desenvolvimento da Operação Lava-Jato.


Não ao inaceitável “Não Alinhamento Ativo” - Paulo Roberto de Almeida

Não ao inaceitável “Não Alinhamento Ativo”, que só significa um Desalinhamento Passivo e Inativo.

Paulo Roberto de Almeida


Quando a cegueira sobre o futuro e a postura “não é comigo”, ou a do “não me importo com injustiças longínquas” prevalecem, pode-se esperar o pior para todos. 


O tal de “Não Alinhamento Ativo”, que alguns querem fazer a postura diplomática por excelência de um fantasmagórico Sul Global”, é a coisa mais parecida com falta de responsabilidade que já se viu desde o entre guerras. 

É o silêncio e a inação em face do ativismo dos maus, a típica atitude que prevaleceu nos anos 1930 e que levou quase toda a humanidade ao maior desastre humanitário e civilizatório de toda a história humana. 


Pretendem fazer desse INACEITÁVEL “Não Alinhamento Ativo” a legitimação da postura hipocritamente “neutra” em face da tragédia ucraniana resultante da guerra de agressão conduzida pelo tirano de Moscou, como se a violação da Carta da ONU e das normas mais elementares do Direito Internacional, dos tratados humanitários e das próprias transgressões às leis das guerras, fossem um assunto exclusivamente europeu.


A diplomacia brasileira não pode se esconder atrás dessa atitude covarde de não escolha, de não participação, de indiferença, de uma neutralidade que só serve ao agressor, sob risco de negar seus mais solenes compromissos com o Estado de Direito no plano internacional.


Brasília, 26/02/2023

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