De la belle
époque à la mauvaise époque?
Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.
Nota sobre a volta dos imponderáveis históricos que
marcaram a trajetória do mundo na primeira metade do século XX, vindo da belle époque
pacífica para décadas de conflagrações mundiais, o que parece evidente na atual
fratura geopolítica.
O que ficou conhecido, na historiografia contemporânea, como
belle époque foram as três ou quatro décadas que precederam o início da Grande
Guerra, em 1914, grosso modo a combinação de progressos econômicos e sociais
com relativa paz, na Europa, assim como a época áurea da dominação europeia
sobre o resto do mundo, ou quase todo ele. Depois das guerras napoleônicas e do
Congresso de Viena, ocorreram diversas revoluções na Europa – notadamente a de
1830, na França, e diversas outras em 1848 – e algumas poucas guerras: a
primeira guerra da Crimeia (1853-55), já opondo o expansionismo do Império russo
ao então decadente Império otomano, ajudado. no caso, pelo Reino Unido e pela
França, e algumas guerras de unificação nacional: a do Império Alemão contra a
França de Napoleão III (1870) e as dos nacionalistas italianos contra o Império
austríaco, pela sua unificação, assim como contra os territórios papais na
própria Itália (a partir dos anos 1860).
Depois disso foram três ou quatro décadas de relativa paz,
com os imensos progressos materiais da segunda revolução industrial – a da
química, do motor à explosão, da eletricidade e das comunicações telegráficas e
logo telefônicas, precedendo o rádio e as primeiras aeronaves – e com a
constituição das primeiras multinacionais da área industrial e de comunicações.
A Grande Guerra, resultado das alianças bélicas supostamente defensivas, e dos
erros de cálculos de dirigentes mais vinculados a concepções medievais do que
aos valores e princípios da burguesia industrial e financeira, veio destruir
tudo isso e mudar irremediavelmente a face do mundo, abrindo espaço para dois
processos que se estenderiam pelo resto do século XX: a preeminência econômica
dos Estados Unidos, sobre todos os demais poderes existentes, inclusive os
velhos colonialismos europeus sobre metade do mundo, e a contestação
bolchevique da economia de mercado capitalista e das democracias burguesas nos
seguintes 70 anos após 1918.
No meio de todas essas rupturas tecnológicas, políticas e
geopolíticas (desaparecimento dos impérios centrais e aparecimento de outros),
progressos sociais também foram feitos, fruto das lutas operárias e sindicais e
dos avanços da medicina e do saneamento urbano básico, o que diminuiu a
mortalidade e aumentou a natalidade em várias partes do mundo. Atualmente
continuamos a ter imensos progressos materiais, em meio à quarta ou quinta
revoluções industriais, e alguns progressos sociais, notadamente a redução da
miséria abjeta e redução da pobreza extrema nos cantos mais recuados e
populosos do planeta, graças à disseminação dos progressos da ciência e dos
avanços da tecnologia.
Mas, de forma cada vez mais clara, passamos a ouvir, a ler,
assistir a declarações preocupantes sobre uma possível nova conflagração
global, de forma como não tivemos desde a primeira metade do século XX, com a
particularidade ainda mais horrífica de que as ameaças agora envolvem o uso de
armas nucleares, que não existiam até 1945, quando foram usadas pela primeira e
única vez na fase final da guerra no teatro do Pacífico.
A Grande Guerra resultou de cálculos errados feitos por
dirigentes arrogantes, dotados do espírito medieval das guerras de conquista e
dominação com as "tecnologias" dos exércitos montados a cavalo,
quando ela foi a primeira guerra industrial da era moderna. A Segunda Guerra
Mundial foi inteiramente mecanizada, muito pouco em trincheiras, como na Grande
Guerra, e mais com base em blindados, encouraçados e aviação, com base em
petróleo. A guerra moderna já é baseada em tecnologia de ponta, baseada na
eletrônica avançada, em indústrias sofisticadas e comunicações sem fio,
satelitárias. Isso já é de uso corrente, mas o que assusta mesmo é o que sobrou
da Segunda Guerra Mundial, o domínio das armas nucleares, agora com vetores de
longo alcance, praticamente em escala planetária.
Estamos falando da eliminação da vida humana, material e
natural, sobre vastas porções do planeta, reduzindo os agentes bélicos a
escombros contaminados e o resto do planeta enviado de volta a uma pobreza
ancestral. A época atual poderia ter sido bela novamente, com os progressos da
tecnologia, a redução da pobreza em imensas porções da terra e dos avanços da
democracia e dos direitos humanos em quase todas as partes do planeta, a partir
de um itinerário pacífico da terceira onda de globalização, nos anos 1990. Mas,
a partir dos anos 2000, ela parece ter se convertido numa "mauvaise
époque", uma época feia pelo aumento dos poderes autoritários, pelo
reforço dos espíritos expansionistas, agressivos em relação aos progressos
visíveis da democracia depois da implosão da União Soviética e da conversão da
China comunista às virtudes da economia de mercados livres.
Depois da divisão bipolar do planeta durante a Guerra Fria,
de 1947 a 1991, temos aparentemente uma nova fratura entre as grandes
potências, a preeminência da ordem ocidental construída nos estertores da
Segunda Guerra sendo atualmente contestada pelo novo poderio econômico e
militar de potências adversárias dessa ordem, sobretudo sua recusa da
democracia e dos direitos humanos, no conceito ocidental do termo, que
acreditávamos que poderia ser universal. A divisão parece ter se convertido
numa segunda Guerra Fria, que ameaça converter em guerra quente – talvez uma
conflagração direta – pela agressividade das duas potências autocráticas,
claramente opostas à ordem ocidental. Não pretendo ser um analista das relações
internacionais no plano geopolítico, mas sou um observador atento do itinerário
da política externa e da diplomacia do Brasil no último meio século e o que
vejo me deixa extremamente preocupado, ao constatar que o atual governo, o de
Lula 3, parece já ter escolhido o seu campo, o dos "promotores" da
"nova ordem global multipolar" (sic), o que está em clara ruptura com
os padrões tradicionais da diplomacia brasileira, de afirmada autonomia em
relação às políticas das grandes potências e de neutralidade em face dos
conflitos interimperiais.
Não parece mais ser o caso atualmente, e isso pode ser
prejudicial ao Brasil, não apenas no domínio dos seus objetivos e interesses
nacionais, de crescimento econômico e desenvolvimento social, mas também no
campo dos valores e princípios democráticos e humanistas que sempre esposamos.
Estamos numa "época feia" para o Brasil também?
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4766, 22 outubro 2024, 3 p.