quinta-feira, 20 de março de 2025

Biblioteca Infantil Municipal Anne Frank, em São Paulo, minha primeira alma mater - Paulo Roberto de Almeida

Biblioteca Infantil Municipal Anne Frank, em São Paulo, minha primeira alma mater

Paulo Roberto de Almeida

    Tenho mantido um diálogo à distância com animadores e responsáveis pelas comunicações da Biblioteca Infantil Municipal Anne Frank, no bairro do Itaim, em São Paulo, o local de minha infância e dos meus primeiros aprendizados e brincadeiras, ainda na fase pré-alfabetização. Reproduzo aqui abaixo parte de minhas reflexões, retiradas da memória de décadas passadas, sobre meus momentos felizes da primeira infância. 

        Suponho que os livros de minha infância já não mais estão disponíveis atualmente no catálogo da Biblioteca Infantil Anne Frank – velhos Monteiro Lobato da Brasiliense, nas edições dos anos 1950, Emílio Salgary, Karl May, Malba Tahan, Jules Verne e outros – e entendo que as coleções hoje estejam até mais voltados aos adolescentes e jovens pré-adultos do que apenas na primeira infância. 

        Muitos anos atrás, compareci à biblioteca para rever esses livros que encantaram e formaram minha primeira capacidade intelectual, mas como era ainda numa fase dos primeiros laptops portáteis, com sistemas operacionais peculiares, todos os registros foram perdidos, mas ficou o registro na memória das primeiras leituras, assim como dos primeiros filmes vistos no auditório: as comédias de Oscarito e Grande Otelo nas produções da Atlântida, Tarzan do primeiro Jonny Weissmuller, Roy Rogers, Hopalong Cassidy, o primeiro Zorro com seu amigo Tonto, Gordo e Magro, Três Patetas e muitos outros da época, segunda metade dos anos 1950. Anos de otimismo no governo JK, primeira Copa do Mundo de Futebol e aquela sensação de que ninguém poderia segurar o Brasil. Conseguiram, não apenas os militares, mas nossas próprias crises políticas internas, ao início dos anos 1960, com inflação e temores alimentados de um improvável comunismo.
Nosso percurso, desde então, foi errático e, ao mesmo tempo, prometedor, com avanços sociais e materiais por um lado, e recuos em outro, segurança pública, persistência das desigualdades, mediocridade das elites políticas e empresariais. O que fica de tudo isso? A certeza de que lugares acolhedores como uma biblioteca infantil democrática podem fazer toda a diferença na vida de muitas crianças vindas de uma condição modesta, como era o meu caso. Por isso mesmo, toda a minha gratidão à Biblioteca Infantil Anne Frank pelas oportunidades que me deu de me elevar intelectualmente, assim por todo o lazer oferecido sob a forma de filmes e brincadeiras.

Fica o preito de gratidão… 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 20/03/2025

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Uma postagem anterior: 

As bibliotecas de minha infância e adolescência 

https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/09/as-bibliotecas-de-minha-infancia-e.html


Intelectuais na Diplomacia Brasileira: A Cultura a Serviço da Nação Organização: Paulo Roberto de Almeida (Francisco Alves)

 Próximo livro sendo preparado para publicação:


Intelectuais na Diplomacia Brasileira: A Cultura a Serviço da Nação
Organização: Paulo Roberto de Almeida
Rio de Janeiro: Francisco Alves; São Paulo: Editora da Unifesp, 2025

Índice

Prefácio , 13
Celso Lafer

Apresentação: intelectuais brasileiros a serviço da diplomacia , 23
Paulo Roberto de Almeida
Nas origens da feliz interação entre o Itamaraty e a cultura brasileira , 23
Por que uma nova iniciativa aliando diplomatas e cultura, muitos anos depois? 27
Um novo projeto cobrindo outros intelectuais associados à diplomacia brasileira 32

Bertha Lutz: feminista, educadora, cientista , 35
Sarah Venites
Não tão breve nota introdutória , 35
Uma formação cosmopolita , 38
A ciência, a educação e o Museu Nacional , 40
Política feminista, no Brasil e no mundo , 46-7
O legado de Bertha e considerações finais , 54

Afonso Arinos de Melo Franco e a política externa independente , 57
Paulo Roberto de Almeida
Um membro do patriciado mineiro, de uma família de estadistas e intelectuais 57
Vida intelectual de Afonso Arinos, de uma família de escritores , 58
Um diplomata natural, chanceler num período atribulado , 63
A solução parlamentarista, sempre no horizonte , 73
A crise brasileira e seu caráter permanente , 75
De volta ao planalto, como senador e constituinte , 79

San Tiago Dantas e a oxigenação da política externa , 85
Marcílio Marques Moreira
Marcos de uma vida intensa , 85
San Tiago Dantas e os apelos do autoritarismo , 87
A trajetória na luta democrática , 90
Uma fina sensibilidade cultural , 91
O ingresso na vida política , 92
San Tiago e a reforma do Itamaraty , 94
San Tiago, diplomata , 95
Uma visão original da política externa e da política internacional , 99
San Tiago, o pacifista , 102
Em busca de uma esquerda “positiva”: San Tiago e Merquior , 104

Roberto Campos: um humanista da economia na diplomacia , 107
Paulo Roberto de Almeida
Uma vida relativamente bem documentada, senão totalmente devassada 107
O diplomata enquanto economista e, ocasionalmente, homem de Estado 112
Além da economia: um observador sofisticado do subdesenvolvimento brasileiro e latino-americano 117
Além da economia: o humanismo na sua versão irônica e política , 125
A premonição das catástrofes evitáveis, um fruto de sua racionalidade , 129
Um longo embate contra sua própria instituição , 132
A Weltanschauung evolutiva de Roberto Campos: do Estado ao indivíduo 136

Meira Penna: um liberal crítico do Estado patrimonial brasileiro , 145
Ricardo Vélez-Rodríguez
Breve síntese biográfica , 145
A crítica de Meira Penna ao Estado patrimonial , 146
O Brasil e o liberalismo , 148
Patrimonialismo, o mal latino , 149
Patrimonialismo e familismo clientelista , 153
Patrimonialismo e formalismo cartorial , 157
Patrimonialismo e estatismo burocrático , 160
Patrimonialismo e mercantilismo , 161
Patrimonialismo e corrupção , 163
Alternativas ao patrimonialismo , 165
Um Tocqueville brasileiro , 167

Lauro Escorel: um crítico engajado , 171
Rogério de Souza Farias
Esperançosa inteligência , 171
Retórica militante , 174
Escolástico inútil , 177
Cultura da política , 182


Sergio Corrêa da Costa: diplomata, historiador e ensaísta , 193
Antonio de Moraes Mesplé
Os anos 40 , 193
D. Pedro I e a exceção brasileira , 198
Floriano Peixoto e a história diplomática da Revolta da Armada , 206
Juan Perón, o hipernacionalismo argentino e a conexão nazista , 217
A globalização lexical e a Francofonia , 230
Um diplomata de escol , 234

Wladimir Murtinho: Brasília e a diplomacia da cultura brasileira , 237
Rubens Ricupero
Colocar o Estado a serviço da cultura , 237
As origens e os episódios latino-americanos , 238
A história de Wladimir é um romance de aventuras , 240
As marcas de Murtinho na cultura do Brasil , 242
Brasília como nova capital da cultura brasileira , 244
O legado de Wladimir Murtinho em Brasília e para o Brasil , 246

Vasco Mariz: meu tipo inesquecível , 251
Mary Del Priore
Uma infância carioca , 251
Como se fabrica um escritor e musicólogo? , 252
Itinerários na diplomacia: Porto e Belgrado , 254
De volta à América Latina e novos desafios diplomáticos , 256
A obsessão pela música , 258
Um longevo diplomata-escritor , 262
Vasco: demasiadamente humano , 271

José Guilherme Merquior, o diplomata e as relações internacionais 279
Gelson Fonseca Jr.
O intelectual e o diplomata , 280
Encontros com Merquior , 284
Os textos sobre questões diplomáticas , 289
O intelectual antes do diplomata , 306

A coruja e o sambódromo: sobre o pensamento de Sergio Paulo Rouanet 309
João Almino
Diplomacia , 309
Literatura , 311
Filosofia , 313
Iluminismo e universalismo , 314
Universalismo e etnocentrismo , 316
Relativismo e particularismos , 318
Civilização ou barbárie , 319
A permanência da obra , 323

Apêndices:
1. O Itamaraty na cultura brasileira (2001), sumário da obra , 325
2. Introdução de Alberto da Costa e Silva à edição de 2001 , 327
3. Alberto da Costa e Silva – 1931-2023, Celso Lafer , 343

Sobre os intelectuais na diplomacia , 349
Sobre os autores , 353

quarta-feira, 19 de março de 2025

Uma proposta para o impasse na Ucrânia - Graham Allison


Quem aceitará um ‘Acordo de Mar-a-Lago’? - Martin Wolf (Financial Times, Valor Econômico)

Quem aceitará um ‘Acordo de Mar-a-Lago’?

Martin Wolf*

Valor Econômico, quarta-feira, 19 de março de 2025


O que está sendo proposto é a recriação de um sistema global de gestão das taxas de câmbio

A política comercial caótica de Donald Trump só pode levar ao caos econômico. Então, será que o governo Trump pode se deparar com algo mais coerente e menos prejudicial, e ainda assim atender aos objetivos protecionistas do presidente? Talvez. Alguns membros, incluindo Scott Bessent, secretário do Tesouro, e Stephen Miran, presidente do Conselho de Assessores Econômicos, acreditam que sim.

Se alguém quiser entender essa abordagem mais sofisticada, deve ler “A User’s Guide to Restructuring the Global Trading”, publicado em novembro de 2024. O autor afirma que “este ensaio não é uma defesa de políticas”. Mas, se parece um pato, é um pato. Vindo de um homem em sua posição atual, isso dever ser interpretado como uma defesa de políticas.

Apoiando o argumento de Miran está uma proposta feita pelo economista belga Robert Triffin no começo dos anos 1960. Triffin disse que a demanda crescente por dólares enquanto ativo de reserva só poderia ser suprida por déficits em conta corrente persistentes dos EUA. Isso, por sua vez, significava que o dólar estava persistentemente valorizado em relação às necessidades de equilíbrio na balança de pagamentos.

Com o tempo, ele argumentou, esse desempenho comercial fraco minaria a confiança no preço fixo do dólar em relação ao ouro. E assim, de fato, ocorreu. Em agosto de 1971, em resposta a uma corrida ao dólar, o presidente Richard Nixon suspendeu a conversibilidade do ouro. Após duras negociações, um acordo foi firmado sobre novos conjuntos de paridades do dólar em relação a outras grandes moedas. Mas isso não durou. Logo, essas novas paridades colapsaram. O velho sistema de Bretton Woods de taxas de câmbio fixas, mas ajustáveis, foi substituído pelas taxas de câmbio flutuantes de hoje.

Miran aplica essa perspectiva ao atual dilema dos EUA. Por isso, é preciso ver o que aconteceu nas décadas de 1960 e 1970 como um paralelo mais apropriado para o que está sendo discutido hoje, do que os acordos do Plaza e do Louvre da década de 1980. O último visava gerenciar um regime de taxas de câmbio flutuantes em um momento de desequilíbrio entre o dólar e outras moedas, especialmente o iene japonês e o marco alemão. O que está sendo proposto agora é a recriação de um sistema global de gestão das taxas de câmbio.

A justificativa para isso, segundo Miran, é que, assim como na década de 1960, o desejo da maioria dos outros países de manter o dólar como moeda de reserva está elevando seu valor, abrindo assim em enorme déficit em conta corrente. Isso pressiona a produção de bens comercializáveis, especialmente os manufaturados.

Isso cria um dilema para os EUA entre as possibilidades de financiamento mais barato e alavancagem internacional, de um lado, e os custos sociais e de segurança fundamental de um setor manufatureiro mais fraco, do outro. No entanto, Trump quer proteger a indústria nacional e manter o papel global do dólar. Assim, a política precisa atingir os dois objetivos.

Uma possibilidade pode ser uma ação unilateral dos EUA para enfraquecer o dólar. Uma opção aqui seria um aperto fiscal combinado com uma flexibilização monetária. Mas isso atrapalharia o desejo de Trump de estender os cortes de impostos concedidos por ele em 2017. Outra possibilidade seria forçar o Federal Reserve (Fed) a desvalorizar o dólar. Mas isso poderia ter efeitos devastadores sobre a inflação e o dólar, como aconteceu na década de 1970.

Uma outra possibilidade seriam as tarifas sozinhas. Mas, se outras condições forem mantidas, isso levaria a uma valorização do dólar, o que prejudicaria o setor exportador americano. Desse modo, diz Miran, as tarifas também deveriam ser usadas como arma nas negociações para um acordo global ou, se for considerado necessário, serem complementadas por tal acordo.

O desejo da maioria dos outros países de manter o dólar como moeda de reserva está elevando seu valor, abrindo assim em enorme déficit em conta corrente. Isso pressiona a produção de bens comercializáveis, especialmente os manufaturados e cria um dilema para os EUA

Assim, o objetivo de um setor industrial mais forte, a ser entregue por uma combinação de tarifas e um dólar mais fraco, precisa da cooperação global. Minha colega Gillian Tett descreveu os possíveis detalhes do que seria um “Acordo de Mar-a-Lago”.

Ele tem dois aspectos principais. O aspecto econômico é liberar as restrições econômicas discutidas acima. A maneira de fazer isso, sugere Miran, é transformar o endividamento de curto prazo em empréstimos de prazos ultralongos, “convencendo” os detentores estrangeiros de títulos do Tesouro dos EUA a trocar suas posições por títulos perpétuos em dólar. Isso daria aos EUA mais margem para buscar sua combinação desejada de políticas fiscal e monetária frouxas. O aspecto político é apontar que aceitar tal acordo seria o preço para ser visto como amigo. Caso contrário, um país seria visto como inimigo, ou no máximo, flutuando entre as duas posições. Em um sentido preciso, isso poderia ser visto como um “esquema de proteção”.

Esta proposta levanta quatro questões. A primeira é se a análise de Miran sobre as relações entre o papel do dólar como moeda de reserva, o déficit crônico em conta corrente dos EUA e a fraqueza do emprego e da produção industrial está correta. Deve-se duvidar dela, porque os EUA estão longe de ser o único país de alta renda com queda na participação do emprego na manufatura.

A segunda questão é se o novo acordo monetário proposto de fato permitiria aos EUA combinar a emissão de uma moeda de reserva com seus objetivos setoriais de forma mais eficaz do que qualquer outra alternativa plausível.

A terceira, é se há alguma probabilidade de acordo com Trump sobre o conjunto complexo de objetivos e instrumentos dessa proposta.

A última questão é se Trump é capaz de manter qualquer acordo firmado por ele. Afinal de contas, ele abandonou a Ucrânia, colocou em dúvida o compromisso com a Otan e atacou o Canadá.

Os últimos dois pontos são, evidentemente, os mais importantes. Seu governo é capaz de fazer um acordo em que qualquer pessoa ou país sensato possa confiar? Acho que não. No entanto, a análise dos aspectos econômicos também é importante. Pretendo abordar isso na próxima semana. 

 

*Martin Wolf é o principal comentarista econômico do Financial Times.

Em defesa dos conservadores (uma lição de democracia, liberalismo, conservadorismo e outras coisas mais) - Augusto de Franco (revista ID)

Em defesa dos conservadores

Jornalistas e analistas políticos, sobretudo quando afinados com ideias ditas progressistas, costumam desvalorizar os conservadores. Por exemplo, criticam o Congresso atual do Brasil por ser demasiadamente conservador. É como se ser conservador fosse ruim, de alguma forma inadequado, quando não problemático para a democracia. Sobretudo para os populistas de esquerda (hegemonistas e antipluralistas) ser conservador é um problema grave. Para eles, os conservadores passam a ser os inimigos a ser extirpados.

Isso está simplesmente errado. Sem conservadores (ditos de direita), aceitos como players legítimos, não pode haver democracia liberal.

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Cabe dizer, preliminarmente, que conservadores não são o contrário de liberais. Tanto é assim que existem liberais-conservadores. Conservadores são o contrário, isto sim, de reacionários e de revolucionários.

Aqui é preciso esclarecer que liberal (no sentido político do termo) é quem toma a liberdade (e não a ordem) como sentido da política. Nesse sentido, Clístenes, Efialtes, Péricles, Aspásia e Protágoras eram liberais. E Spinoza – vinte anos antes de Locke – também era liberal, mas não Hobbes. E foram liberais Locke, Montesquieu, Rousseau, Jefferson, Madison e os Federalistas, Paine, Constant, Tocqueville, Mill, Dewey, Popper e Arendt. E ainda, Berlin, Dahl, Havel, Lefort, Bobbio, Castoriadis, Dahrendorf, Rawls, Maturana, Sen, Przeworski, Fukuyama e Rancière. Os liberais se confundem, portanto, com os principais inventores e intérpretes democráticos da democracia.

Alguns mencionados na lista acima são conservadores. Outros são mais inovadores. Conservadores e inovadores não estão em contradição: ambos são players importantes do jogo democrático. Há uma tensão entre ambos, conservadores e inovadores. Essa tensão é saudável para a democracia porque permite que as regras do jogo – as instituições e os procedimentos do regime democrático – sejam mantidas, enquanto o próprio jogo continue sendo jogado, inspirando a criação de novas instituições e procedimentos adequados à cada avanço do processo de democratização. A democracia é alostática. Tem que se manter enquanto avança. É a metáfora da bicicleta: parou de pedalar, cai. Por isso os inovadores são tão importantes. Mas os conservadores também.

Sem liberais-inovadores não teria sido inventada e reinventada a democracia. Sim, a democracia, quando surgiu ou ressurgiu, foi uma formidável inovação política. Por outro lado, sem liberais-conservadores, nenhuma democracia teria se mantido.

Precisamos esclarecer essa confusão conceitual. Seria pedir demais que, na crise da democracia em que vivemos (sob uma terceira onda de autocratização), a análise política democrática também não estivesse dando sinais de falência. Suas categorias envelheceram. Seus esquemas classificatórios de regimes ficaram inadequados.

Tenho proposto um novo esquema básico para uma classificação desses termos que muitas vezes se confundem e nos confundem. Recoloco a questão do ponto de vista da proximidade dos comportamentos políticos (não das ideologias declaradas) com dois eixos ortogonais: o eixo da democracia e o eixo da autocracia.

Claro que os reacionários disfarçados de conservadores e os revolucionários travestidos de progressistas não concordam com nada isso.

Conservadores (ditos de direita) não são problema para a democracia. A não ser quando são puxados por reacionários nacional-populistas (ditos de extrema-direita), que são, via-de-regra, golpistas. Progressistas (ditos de esquerda) não são problema para a democracia. A menos quando são neopopulistas, quer dizer, hegemonistas.

O problema são os novos populismos do século 21: o nacional-populismo (dito de extrema-direita) e o neopopulismo (dito de esquerda). Todos os populismos são antipluralistas e, como tais, adversários da democracia liberal.

Os reacionários de extrema-direita, que se apresentam como conservadores de direita, desprezam os verdadeiros conservadores de direita. Acham que eles fazem parte de “o sistema”. Como esses reacionários são antissistema, acham que os conservadores de direita só servem quando podem ser puxados pelo nariz. Puxados, é claro, por eles.

Os populistas-autoritários ou nacional-populistas, ditos de extrema-direita, não querem fazer política. Querem fazer uma revolução reacionária para destruir o que chamam de “o sistema”. A democracia, a convivência democrática normal, como modo político pluralista de administração do Estado baseado na conversação, na negociação, na busca do consenso é, para eles, uma enfermidade própria desse sistema. Por isso eles são, fundamentalmente, antidemocráticos. Seu projeto é, sempre, ao fim e ao cabo, instalar uma autocracia.

Trump é bom. Porque começou a destruir o sistema. Bolsonaro era bom. Porque queria destruir o sistema. Orbán é bom. Porque está destruindo o sistema. Modi é bom. Porque está destruindo o sistema. Bukele é bom. Porque está destruindo o sistema. Milei é bom. Porque pode acabar destruindo o sistema. Ventura, Abascal, Wilders, Weidel, Salvini, Le Pen, Farage, são bons. Porque querem destruir o sistema. Ora… esse pessoal pode ser tudo, menos conservador. Eles são revolucionários. Revolucionários para trás. Quer dizer, reacionários.

Existe realmente um movimento molecular antissistema na gênese e ascensão da extrema-direita. Esse movimento tem as características de uma revolução. Nos Estados Unidos de hoje, uma revolução retrópica (reacionária) MAGA coligada a uma revolução distópica (futurista, mas darwinista social) dos tecno-feudalistas.

No Brasil atual, líderes como Allan dos Santos, Luiz Philippe de Orléans e Bragança, Carla Zambelli, Ricardo Salles, Bia Kicis, Marcos Pollon ou Damares Alves não são conservadores. São populistas-autoritários (ou nacional-populistas), alguns golpistas, todos antipluralistas, reacionários travestidos de conservadores, iliberais que usam a democracia contra a democracia.

Para a democracia não há nenhum problema em ser progressista dito de esquerda. O problema é ser populista de esquerda (neopopulista). Porque o neopopulismo (o novo populismo de esquerda do século 21) é hegemonista e antipluralista.

Frequentemente, os revolucionários que chamam a si mesmos de progressistas querem, em grande parte, construir outro tipo de regime democrático, onde a democracia seja redefinida como cidadania para todos (ou para a ampla maioria) ofertada pelo Estado quando nas mãos certas (ou seja, nas mãos dos progressistas), a redução das desigualdades socioeconômicas (operada, é claro, pelo Estado nas mãos certas) seja condição para a fruição das liberdades civis, os direitos políticos sejam iguais para todas as minorias (menos para as minorias políticas que não sejam progressistas, isto é, os conservadores estarão fora). Daí, evidentemente, não sairá nenhum tipo de democracia.

No Brasil atual, líderes como João Pedro Stedile, Guilherme Boulos, Frei Betto, Luiz Marinho, Gleisi Hoffmann, Breno Altman ou José Dirceu não são progressistas. São neopopulistas, hegemonistas e antipluralistas, revolucionários socialistas disfarçados de progressistas, iliberais que usam a democracia contra a democracia.

Os bolsonaristas, embora sejam populistas-autoritários (ou nacional-populistas), iliberais, antipluralistas e reacionários, têm o direito de existir na nossa democracia, disputar eleições e participar da vida política. Desde que não violem as leis.

Os lulopetistas, embora sejam neopopulistas, não-liberais, hegemonistas, antipluralistas e, em parte, revolucionários travestidos de “progressistas”, têm o direito de existir na nossa democracia, disputar eleições e participar da vida política. Desde que não queiram violar ou bypassar os critérios da legitimidade democrática de Ralf Dahrendorf: além da liberdade e da eletividade, a publicidade ou transparência (capaz de ensejar uma efetiva accountability), a rotatividade ou alternância, a legalidade e a institucionalidade.

Ambos, porém, são problemas para a democracia. Os primeiros porque, tendo uma proposta antissistema, dificilmente não acabarão enveredando para o golpismo – o que viola as leis escritas. Os segundos porque, tendo uma proposta hegemonista, acabarão transgredindo os critérios da legitimidade democrática – o que viola as normas não-escritas que permitem o funcionamento da democracia.

Democracia é propriamente democracia liberal. Iliberais ou não-liberais (não importa se ditos de direita ou de esquerda) são, sempre, problemas para a democracia.

Já os conservadores, não. Isso nada tem a ver com ser “conservador nos costumes”, que não é matéria da política. Cada qual conserve os costumes que quiser. Conservador, no sentido político do termo, é outra coisa. É um comportamento necessário à manutenção (e, portanto, à continuidade) do regime democrático. Se alguém não conservar as instituições e os procedimentos democráticos, nenhuma democracia pode perdurar.

Esta é uma defesa dos liberais-conservadores (democratas formais) feita por um liberal-inovador (democrata radical).

Revista ID é uma publicação apoiada pelos leitores.





Reciprocidade: um conceito mutável nos anais da diplomacia brasileira - Paulo Roberto de Almeida

Reciprocidade: um conceito mutável nos anais da diplomacia brasileira

  

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Nota sobre a insistência do governo Lula sobre a aplicação do conceito de reciprocidade na questão dos vistos para turistas de EUA, Canadá, Japão e Austrália.

 

 

        Durante décadas, desde os anos 1950 até praticamente os nossos dias, a diplomacia brasileira defendeu ardorosamente o princípio da NÃO-RECIPROCIDADE, por considerar, acertadamente, que as diferenças fundamentais entre países desenvolvidos e em desenvolvimento deixavam estes em desvantagens no comércio internacional. Lutou tanto contra a reciprocidade, que a não reciprocidade tornou-se um princípio quase equivalente às regras básicas do sistema multilateral de comércio (nação-mais-favorecida, tratamento nacional, não discriminação, reciprocidade justamente), consagrado como "tratamento especial e mais favorável para países em desenvolvimento".

        Leram bem? MAIS FAVORÁVEL! Isto significa que os países em desenvolvimento devem ser tratados em melhores condições, ou seja, obtendo concessões tarifárias e outras dos países desenvolvidos SEM obrigação de RECIPROCIDADE.

        Se isso se aplica no comércio internacional, a mais forte razão deve ser aplicado em serviços internacionais, com especial destaque para o turismo ou viagens de negócios, onde as assimetrias são ainda mais evidentes, ou seja, dificilmente podem ser aplicadas regras de reciprocidade, pois os países são muito diferentes entre si. 

        Em outros termos, reciprocidade é um conceito geral, que NÃO PODE ser aplicado AUTOMATICAMENTE, cabendo medir o potencial e as condições especiais de cada uma das partes envolvidas na relação de intercâmbio. 

        Aplicado ao turismo, implica em que países receptores devem ser amplamente favoráveis à ampliação dos fluxos de turistas e outros viajantes ocasionais. 

        Observando a situação real das viagens internacionais e dos fenômenos migratórios, cabe registrar a realidade de um enorme fluxo de pessoas de países em desenvolvimento desejosas de se instalar em países desenvolvidos, por segurança, oportunidades de trabalho, estudos para a família, para escapar de uma situação de penúria e de insegurança em seus países, etc.
        Reciprocidade abstrata e genérica não iode ser invocada em todos os casos, e justamente no domínio de vistos turísticos ou de negócios, os procedimentos aplicados pelos países são determinados pelas suas próprias regras consulares, e não precisam se pautar por regras de reciprocidade, como não o são do terreno do sistema de comércio multilateral.

        Da mesma forma, "tarifas recíprocas" tampouco são comuns, pois que cada país tem seu próprio nível de competitividade e maior ou menor dependência (ou interesse) de abastecimento externo, complementar ou substitutivo de algum fornecimento interno (que nem sempre existe, e não pode ser "recíproco", pois que países não são semelhantes, sequer similares).

        Concluindo: o Brasil NÃO precisaria ter regras recíprocas no terreno consular, como de fato nunca teve com o universo da comunidade internacional (tanto é assim que países do Mercosul sequer exigem vistos, passaportes ou outros requerimentos).

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4876, 19 março 2025, 2 p.


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Meu mais recente livro – que não tem nada a ver com o governo atual ou com sua diplomacia esquizofrênica, já vou logo avisando – ficou final...