Réquiem para o Mercosul
Rubens Barbosa*
O Estado de S. Paulo, 24 de julho de 2012
...O Mercosul começou com um movimento andante
grazioso, passou pelas fases de andante con spirito, andante con moto, allegro
moderato e, com o novo membro, em vez de um allegro majestoso, vai acabar
lacrimoso...
Wolfgang Amadeus Mozart morreu cedo, com pouco mais
idade que o Mercosul, que completou 21 anos. Teve uma vida bastante agitada,
alternando momentos de sucesso e de dificuldades. Nos últimos anos, com a saúde
crescentemente debilitada, recebeu a visita de um misterioso personagem que
encomendou a criação de uma peça fúnebre, um réquiem, mediante o oferecimento
de boa recompensa. Mozart, sem recursos, acedeu e começou a compor, mas morreu
e deixou uma obra inacabada.
Lembrei-me do Réquiem de Mozart e do fim da vida do
compositor de Salzburg ao acompanhar os últimos desdobramentos do que está
acontecendo com o Mercosul. Os países-membros compuseram o Réquiem ao atenderem
ao pedido da Venezuela.
O Mercosul começou com um movimento andante grazioso,
passou pelas fases de andante con spirito, andante con moto, allegro moderato
e, com o novo membro, em vez de um allegro majestoso, vai acabar lacrimoso...
A chegada do visitante ao Mercosul, da maneira ilegal
como está sendo feita, encerra antecipadamente uma obra que poderia ser tão
grandiosa como a de Mozart. O quarteto - Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai
- poderia ter-se beneficiado de um processo de integração que, passando da
atual união aduaneira, levaria ao mercado comum.
Em 2006, quando foi admitido como membro pleno em
processo de adesão, sintomaticamente, em Córdoba, na Argentina, Hugo Chávez
disse que a partir daquele momento "tudo seria diferente, pois haveria um
relançamento do Mercosul". Chávez estava certo. A agonia do Mercosul
começou com sua politização. Passaram a predominar a retórica e as decisões
político-ideológicas sobre a realidade econômica. Esqueceu-se de que o Mercosul
não é uma união de governos, mas de Estados. A partir desse momento, mudou a
lógica do processo de integração do Cone Sul, com a formação do eixo Buenos
Aires-Caracas. Prevaleceram as agendas nacionais sobre a agenda da integração
regional. A Venezuela, por seu lado, procurará utilizar a plataforma do
Mercosul para seus próprios projetos.
O ingresso da Venezuela, aprovado - contra o
aconselhamento do Itamaraty - com o mesmo rito sumário, Dies Irae, que afastou
Fernando Lugo da presidência do Paraguai e determinou a suspensão do país,
representou uma agressão institucional. A adesão, decidida por motivos
políticos, sem cumprir as condições negociadas pelo Protocolo de 2006 nem ter
sido feito corretamente o depósito dos instrumentos de ratificação, pode
representar um custo altíssimo para os membros fundadores. A decisão abre a
porta para o ingresso da Bolívia, do Equador e do Suriname nas mesmas circunstâncias,
isto é, sem apreciação técnica. Como há algum tempo disse o presidente Lula,
"o Mercosul é como o coração de mãe: sempre cabe mais um".
Depois de politizar o Mercosul, pretende-se
transformá-lo num mecanismo de desenvolvimento econômico com ênfase no social e
no político, panaceia que resolveria todos os problemas dos países-membros.
Como se fora possível modificar uma realidade de dificuldades e de assimetrias
inevitáveis em qualquer exercício de integração, soprando uma "Flauta
Mágica", tocada de forma dissonante por apressados ideólogos.
Debilitado pelo descumprimento das normas e regras
previstas no Tratado de Assunção de 1991, bem como pelas recorrentes restrições
à liberalização e à abertura do mercado dos países-membros, o subgrupo
regional, como inicialmente previsto, chegou a seu fim de maneira inglória.
"Cosi Fan Tutti", todos fazem isso, repetem os formuladores das decisões
no bloco, referindo-se às barreiras protecionistas.
A disposição e a força criativa, que sobraram em
Mozart para compor o Réquiem, faltaram aos dirigentes do Mercosul nos seus
estertores para tentar reavivar seus mecanismos institucionais. No momento
atual, os entraves comerciais, a falta de apoio para a defesa dos interesses
setoriais que impediram a integração das cadeias produtivas afetadas por
medidas burocráticas ilegais, sobretudo da Argentina, desviando nossas
exportações para concorrentes asiáticos, e a insegurança jurídica tornaram o
Mercosul menos atraente para o Brasil.
Sem acabar com o Mercosul, pois nenhum governo está
preparado para assumir o ônus dessa decisão, o Brasil deveria libertar-se das
amarras da negociação conjunta para os produtos que poderiam ser liberalizados
com terceiros países que se dispuserem a negociá-los separadamente. Quem poderá
duvidar de que, com a Argentina e a Venezuela no bloco, dificilmente será
concluído qualquer acordo de livre-comércio com terceiros países? Parafraseando
Groucho Max, quem vai negociar com o Mercosul, que aceita a Venezuela de Chávez
como sócia?
Para o Brasil a entrada da Venezuela poderia ser
positiva do ângulo estratégico (o Mercosul estender-se-á da Patagônia ao
Caribe) e comercial (se for cumprido o que foi negociado no Protocolo de
Adesão, com a abertura do mercado venezuelano a produtos brasileiros pela
liberalização do comércio e pela aplicação da Tarifa Externa Comum). Sob o
aspecto político, contudo, poderá pôr a política externa brasileira em situação
delicada pela mudança do eixo Brasília-Buenos Aires e por eventuais problemas
internos na Venezuela, sem mencionar os possíveis vetos de Caracas a
negociações comerciais de nosso interesse.
O último movimento do Réquiem, Libera Me, que não foi
escrito por Mozart, ajusta-se ao quadro agonizante do Mercosul, pois inclusive
tem relação com o Brasil. Dentre as alternativas compostas para o final do
Réquiem estão "Os manuscritos do Rio", de autoria de Neukomm,
encontrados em 1819. Esse finale completa, de forma perfeita, o divertissement
mercosulino.
Libera Me! Réquiem para o Mercosul!
É triste ver o Mercosul virar tema de anedota.
* Rubens
Barbosa - FOI O PRIMEIRO COORDENADOR NACIONAL DO MERCOSUL
(1991-1994)
Um comentário:
Com a suspensão do Paraguai e a entrada da Venezuela morre o "Mercosul" e nasce... "A Grande Família"!(...ou "A Família Trapo"...whatsoever!)
...essa família é muito unida...!
Vale!
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