A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (6)
Paulo Roberto de Almeida
(...)
A luta armada e os derrotados vingativos: uma reflexão
pessoal
A luta armada no Brasil, à
diferença de outros experimentos guerrilheiros na América Latina, e de guerras
civis na Ásia ou na África, foi relativamente breve, pouco cruenta e atingiu
uma fração mínima da população, se é que se pode falar em população, no caso de
umas poucas centenas de engajados ativos em seus diversos exercícios tentativos
e alguns milhares de militares e policiais dedicados à sua repressão. Ela pode
ter uma extensão maior, se considerarmos os primeiros ensaios, quase patéticos,
dos brizolistas na imediata sequência da mudança de regime em 1964. No seu
conceito mais restrito, porém, consistindo nas diversas iniciativas de
inspiração cubana, de natureza mais urbana do que rural, ela durou,
provavelmente, menos de seis anos, aos quais podem ser acrescentados os quatro
ou cinco de guerrilha “maoísta” nas selvas do Araguaia, até meados da década
seguinte. A maior parte desses experimentos foi bisonha, com muita
improvisação, quase nenhuma inspiração, alguma transpiração, mas a repressão,
no começo despreparada, foi brutal e eficaz: todos os focos, nas cidades e nos
campos, foram eliminados a partir do planejamento e do engajamento dos
militares nas tarefas da repressão direta, que contou mais com força bruta do
que propriamente com inteligência: ela também foi feita mais de transpiração do
que de inspiração.
Não tendo sido um
protagonista direto, mas somente um espectador engajado num dos lados da
contenda, e isso apenas tentativamente, sem jamais ter passado às vias de fato,
ou seja, assumido responsabilidades de “combate”, talvez eu não seja a pessoa
mais qualificada para oferecer meu testemunho sobre os chamados “anos de
chumbo”, inclusive porque estava fora do país nos momentos mais repressivos do
regime militar. Sou inclusive suspeito para me pronunciar, em razão da minha
postura essencialmente crítica em relação ao que nós, da esquerda, fizemos,
como provocação inútil, caótica, quixotesca, ao regime militar, que de outra
forma não teria embarcado (disso tenho certeza) na voragem arbitrária de uma
repressão que em alguns momentos assumiu características selvagens, quando os
militares achavam que os pobres guerrilheiros, que éramos nós, representavam um
perigo real para o regime e para a sociedade. Infelizmente, quase toda a
historiografia em torno dessa fase menos dignificante da história brasileira é
muito enviesada, para ser considerada seriamente numa avaliação isenta sobre o
período e seu impacto para o presente. Mas tentarei oferecer uma reflexão
isenta sobre a questão, como forma de testemunhar sobre um passado a que
assisti, e que considero deva ser totalmente superado, para que o Brasil avance
olhando para a frente, não para trás.
A luta armada, como disse,
obedeceu, com a exceção do episódio maoísta no interior do Brasil, a uma
inspiração essencialmente cubana, ainda que métodos, situações políticas e,
obviamente, elementos humanos tenham sido totalmente diversos no Brasil do que
foi a guerra de guerrilhas em Cuba, que teria supostamente servido de modelo
para os empreendimentos realizados no Brasil de meados dos anos 1960 ao início
da década seguinte. A revolução cubana foi, de fato, um fenômeno eletrizante no
contexto latino-americano, bem mais do que sua importância real na história
política do século 20 ou sua capacidade de transformar significativamente a
realidade nos países da região. Todos os experimentos realizados sob sua
inspiração direta – e na maior parte dos casos com seu apoio material –
fracassaram: ou foram fragorosamente derrotados militarmente, ou se extinguiram
por ineficácia prática, ou, ainda, sobreviveram apenas como deformação grotesca
do projeto original, como no caso dos narco-guerrilheiros da Colômbia e do
Peru, convertidos em meros criminosos, traficantes e sequestradores.
No Brasil, sua importância
foi bastante reduzida, em termos práticos, ainda que a própria esquerda, e seus
escribas gramscianos, e também os militares, tenham a ela atribuído uma
relevância histórica que efetivamente não tem. A luta armada foi um fenômeno marginal,
e os poucos casos de terrorismo mais marginais ainda, mas uma história isenta,
completa, não passional, de todos os seus aspectos ainda esteja para ser
escrita. Ela não foi tão traumática quanto o foi na Argentina, no Chile, no
Peru e na Colômbia, para ficar nos casos mais relevantes, nem todos similares
em dimensão, características e impacto residual, ou permanente. Em vários
desses países, o grau de repressão foi tão vasto, que mesmo as lideranças
políticas mais moderadas tiveram de acenar com algum “julgamento da História”,
quando não com julgamentos reais. Este talvez seja um dos falsos “problemas”
vinculados a uma avaliação isenta da luta armada no Brasil: mesmo não tendo a
importância histórica, e um impacto efetivo num largo número de indivíduos,
como nos casos acima mencionados – e estando muito longe de assumir a dimensão
social de um fenômeno como o do Apartheid, na África do Sul – não parece haver
justificativa razoável para a instalação de uma “comissão da verdade” ou sequer
de julgamentos a posteriori, como reclamam os derrotados vingativos.
No Brasil, isso não se
justificaria, e as tentativas atuais de se retomar os erros do passado – de um
só lado, diga-se de passagem – estão condenadas ao repúdio da maior parte da
cidadania, ainda que possam provocar algum alarido jornalístico e talvez algum
desconforto momentâneo do lado das antigas “forças repressoras”. Meu julgamento
pessoal é o de que o governo atual – composto exatamente por grande número de
personagens vinculados à esquerda armada do passado – está criando um problema
para si mesmo, e para o que lhe suceder, na tentativa de contemplar as demandas
daqueles a quem chamo de “derrotados vingativos”, por não terem aceito o
julgamento da história e por pretenderem, de maneira reacionária, fazer girar
para trás a roda da História. Mas vejamos quais seriam os argumentos que
sustentam a minha tese.
(Continua...)
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