Fernando Henrique Cardoso conversou com o Estado na tarde de quinta-feira, em seu apartamento, em São Paulo. Ele acabara de chegar de um evento promovido pelo governo da Dinamarca. O cansaço logo se dissipou quando começou a falar sobre seus mestres.
Qual característica mais forte de cada um desses pensadores que marcou sua carreira?
Fernando Henrique Cardoso - Começo por Joaquim Nabuco. Era um sujeito capaz de combinar um estilo aristocrático com forte preocupação social. Ele era um sociólogo de fato, o que era raro na época. Apesar de ter um certo pendor pela monarquia e esteticamente ser conservador, Nabuco era um democrata. Por isso que o comparo a Tocqueville, que era um reacionário mas compreendia as mudanças de tempo. Também gosto de Nabuco por considerar a democracia inglesa superior à americana por causa da noção da igualdade perante à lei.
O senhor vê alguma semelhança com a sua trajetória?
Fernando Henrique Cardoso - Em alguns pontos, sim, pois ele, como eu, conciliou uma vida intelectual com outra política, e também porque enfrentou todo o drama envolvido (risos).
É curiosa a diferença apontada pelo senhor entre a visão que Nabuco tinha do Império comparada com a de Sergio Buarque de Holanda.
Fernando Henrique Cardoso - A análise do Sergio é brilhante e tem menos repercussão que merece - Raízes do Brasil é o livro que o fez entrar para história. É um belo ensaio, mas o outro também é genial. E, na contraposição entre o democrata Sérgio Buarque e o aristocrata Joaquim Nabuco, esse se deixava enrolar pelos meandros do Império, enquanto Sérgio via nesse Império a dominação escravocrata. Ele desmistifica a tradição de que aquele governo era civilizador. Acho que, entre todos os pensadores, é o mais explicitamente democrático. Afinal, Sérgio escreve Raízes do Brasil nos anos 1930, marcados pela ascensão do comunismo e do integralismo. Assim, a aposta que ele fez era rara, pois, na época, comunista é que era democrata e ele era basicamente liberal, acreditava que a ascensão das classes populares resultaria na democracia. E seu livro foi lido ao contrário, como se portasse uma visão tradicional, uma outra maneira de ser Gilberto Freyre. Algumas de suas frases ainda são atualíssimas, como "só existe democracia com a lei da universal". O Sérgio seria um analista ideal para o que está acontecendo hoje.
Como assim?
Fernando Henrique Cardoso - Ele veria que a ascensão do sindicalismo não resultou necessariamente em democracia - ao contrário, vem reforçando a matriz tradicional, corporativista, patrimonialista, da discricionariedade. O instinto democrático tornou-se clientelista. Foi absorvido pela cultura tradicional brasileira.
Por falar em Gilberto Freyre, um dos destaque do livro é a forma como o senhor reavalia sua obra, dando-lhe mais importância.
Fernando Henrique Cardoso - Tive pouca convivência com ele, mas, quando li sua obra pela primeira vez, desenvolvi um horror pela sua posição política. Eu tinha muita resistência por dois motivos - a primeira porque, em São Paulo, tentávamos fazer uma sociologia empírica, científica, e a visão que se tinha dele (precipitada, na verdade) era de que se tratava mais um ensaísta (e conservador) que um analista. Quando reli sua obra, descobri um grande intelectual, a despeito de ser conservador.
O senhor deixou nomes de fora?
Fernando Henrique Cardoso - Sim. José Bonifácio, por exemplo, primeiro pensou o Brasil. Cito muito sua importância, mas não me aprofundo. Também não falo de Rui Barbosa, ícone do liberalismo, mas que não me influenciou. Nunca li sua obra, embora merecesse. Talvez seja um preconceito, pois venho de uma família de militares positivistas. Enquanto meu bisavô era monarquista, meu avô era a favor da abolição e meu pai participou das revoluções de 1922 e 24. Todos tinham horror do Ruy Barbosa, que era mais liberal enquanto eles apoiavam o Estado. E confesso que herdei um pouco dessa aversão.
E como foi a relação com Caio Prado Jr.?
Fernando Henrique Cardoso - Era um escritor seco, mas moderno, que notou detalhes importantes na relação do Brasil colonial com a metrópole portuguesa, no latifúndio e na escravidão. Um livro que considero pouco valorizado é A Revolução Brasileira, no qual é revisionista com relação às teses do Partido Comunista. Ao mesmo tempo em que era militante, tinha uma importante formação intelectual. Não se saiu bem na filosofia, na dialética, mas era bom nas análises concretas, além de revelar uma noção sólida de geografia - ele não viajava como turista, mas em busca de aprendizado.
É visível sua admiração por Celso Furtado.
Fernando Henrique Cardoso - Porque ele inaugura uma nova tradição. Celso via o Brasil como um país subdesenvolvido em relação aos demais, apontando o crescimento econômico como principal solução para esse problema. Ele introduziu o viés da análise econômica na compreensão do retrato do Brasil. Se Caio tinha uma visão marxista, mas um tanto mecânica, Celso fez análise do processo de formação do mercado interno. Ele explica a dinâmica do processo ao mesmo tempo em que oferecia um projeto nacional com fundamento econômico. A minha geração cresceu lendo Celso Furtado. Nossa paixão, na época, anos 1950 e 60, era o desenvolvimentismo. Só depois, com regime autoritário, veio a paixão pela democracia, movimentos sociais, já nos anos 70.
É nesse momento que acontece uma mudança?
Fernando Henrique Cardoso - Sim, pois a ideia da formação do Brasil vai até minha geração. A partir daí, começa a ser diferente, pois começa a integração, a globalização, palavra, aliás, que ainda nem existia. Começávamos a entender que havia algo novo, a periferia do mundo estava se industrializando e buscava caminhos diferentes. Era preciso entender o interesse nacional de cada país em um contexto global. Caio dizia que não se entendia a colônia sem entender o vínculo com o império. Já Celso afirmava que era preciso romper o vínculo e desenvolver o mercado interno. Hoje, sabemos que o certo não é romper, mas refazer.
Esses pensadores funcionam como um farol para o senhor?
Fernando Henrique Cardoso - Sim, formataram meu pensamento atual. Mas hoje, com as ruas agitadas, não se sabe para onde ir. Antes, esses pensadores diziam o que fazer. O farol está agora na popa e só vamos para frente porque o mar está empurrando. Não quero personalizar, mas, desde o governo Lula, a visão do futuro está errada. Não se percebeu que a crise terminaria, como deve acontecer. Acreditava-se que os EUA entrariam em decadência e não vão. O Brasil fez o caminho contrário da China, que se concentrou na exportação para acumular capital e investir, enquanto aqui se montou a base a partir do consumo, uma solução trôpega. O consumo cresceu, mas quem consome não está feliz e protesta na rua. Quer outras coisas, sem saber exatamente o quê. Basta ver os cartazes de protesto: tarifa, PEC, saúde, corrupção. Por trás disso, surge uma mensagem poderosa: quero viver melhor e isso não significa apenas consumir. O processo lulista deu o contrário. Saturou rapidamente.
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Fernando Henrique Cardoso reúne textos sobre intelectuais que formaram seu pensamento
UBIRATAN BRASIL - O Estado de S.Paulo
Em seu processo de formação, o sociólogo e ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso alimentou-se das ideias de intelectuais que ajudaram a forjar e solidificar seus conceitos sobre a identidade e as grandes questões do País. Obras de Joaquim Nabuco e Euclides da Cunha despertavam sua atenção, assim como de mestres com quem teve a honra de conviver, como Sergio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes, Antonio Candido, Caio Prado Jr., Raimundo Faoro e Celso Furtado, entre outros.
São autores que ele interpreta como faróis, no sentido de ser um facho de luz que pode iluminar um caminho. Ao longo da vida acadêmica e política, Fernando Henrique escreveu sobre seus mestres, tanto na forma de ensaio como na de discurso. É esse material que forma Pensadores Que Inventaram o Brasil, seleção de textos escritos entre a década de 1970 e a atual, que será lançada oficialmente pela Companhia das Letras na terça-feira, no Masp, às 19 horas, quando começa um debate entre Fernando Henrique e o historiador José Murilo Carvalho, autor do posfácio do livro, com mediação da professora Lilia Schwarcz.
"Não se trata de uma obra pretensiosa, que pretende contar a história da cultura", avisa o sociólogo. "São textos sobre autores que me influenciaram. Uma leitura pessoal sobre como aprendi a olhar o Brasil."
Nos 18 artigos escolhidos - alguns foram publicados na extinta revista Senhor Vogue em 1978, outros, como o que analisa Raimundo Faoro, foram especialmente escritos para esse volume -, Fernando Henrique Cardoso trata de assuntos que sempre lhe foram caros, na carreira política ou na acadêmica, como a relação entre Estado e sociedade civil, os percalços do desenvolvimento econômico, a herança da colonização, a dificuldade em promover a justiça social.
Apesar de utilizar o mesmo rigor intelectual para todos, o sociólogo deixa transparecer sua simpatia pelos intelectuais com quem manteve uma relação próxima, como Florestan Fernandes, de quem foi aluno e assistente, ou Antonio Candido, também professor e mais tarde colega. E, apesar do viés econômico ter caracterizado mais a sua obra, Celso Furtado faz parte da seleção pela lucidez com que sempre apontou o melhor caminho para o desenvolvimento do País.
Fernando Henrique aproveita também para apresentar um mea culpa e, em um texto de 2010, recolocar Gilberto Freyre, antes apontado como reacionário, no panteão dos grandes pensadores do Brasil.
Capítulos mais saborosos são aqueles que misturam interpretação analítica com testemunhos e evocações pessoais
Elias Thomé Saliba - Especial para o Estado
"Clássico é um livro que as gerações dos homens, urgidos por razões diversas, leem com prévio fervor e com uma misteriosa lealdade." Esta notável definição de Jorge Luis Borges poderia servir de epígrafe para as leituras e releituras dos clássicos brasileiros que Fernando Henrique Cardoso realiza em Pensadores Que Inventaram o Brasil. Escritos por razões diversas e cobrindo um extenso período, que vai de 1978 a 2013, são 18 ensaios que revelam não apenas as obras daqueles pensadores que inventaram o Brasil, mas também muito da trajetória intelectual do próprio autor. Pertencente à geração imediatamente posterior aos clássicos da ciência social brasileira, Fernando Henrique publicou suas primeiras obras naqueles anos de questionamento das grandes interpretações do Brasil, nos quais as "visões gerais" começavam a ceder espaço àquelas investigações mais pontuais e, ao mesmo tempo, mais especializadas e mais inovadoras, como foram, aliás, os próprios livros do sociólogo Fernando Henrique.
Embora irregulares, alguns dos capítulos mais saborosos são aqueles que misturam interpretações analíticas com testemunhos e evocações pessoais, pois Fernando Henrique conheceu - e em alguns casos conviveu - com autores como Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes, Antonio Candido e Celso Furtado. Recorda os bons tempos de quando entrou na Faculdade de Filosofia, em 1949 - localizada ainda no prédio da Praça da República e com classes que não tinham mais do que 12 alunos. Relembra, ainda, fazendo referência aos seus colegas, que todos queriam mesmo ser socialistas e não sociólogos. E que de repente se viram frente a um grupo de jovens professores que vestiam aquele obrigatório avental branco de cientistas de laboratório, como Florestam Fernandes e, mais discretamente, Antonio Candido - que lhes ensinaram a nunca transigir com o rigor da análise, com a solidez da pesquisa ou com qualquer coisa que prejudicasse a fluência dos argumentos.
Além de ensaios menores sobre Euclides da Cunha, Paulo Prado, Caio Prado Jr. e Sérgio Buarque, e de uma primorosa resenha de Os Parceiros do Rio Bonito, de Antonio Candido, as análises mais detalhadas recaem sobre Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre, Celso Furtado e Raymundo Faoro. O ensaio sobre Nabuco, de difusa inspiração freudiana, recupera os episódios da infância do grande abolicionista, incluindo a afetiva convivência com os escravos e as dramáticas perdas familiares. Já ao discorrer sobre a trajetória política de Nabuco, Fernando Henrique parece indiretamente falar um pouco de si - do intelectual que participa da política, se entrega inteiramente a ela em dados momentos, mas não quer se despersonalizar e nem perder seus mais caros valores existenciais.
Já os ensaios mais longos sobre Gilberto Freyre constituem uma espécie de desabafo de consciência culpada do autor, que pertenceu a uma geração que, durante os anos 1950 e 1960, tratou de rotular o autor de Casa Grande & Senzala como o reacionário criador e propugnador de uma (ilusória) democracia racial brasileira. Rótulos que nasceram menos de uma discutível "escola paulista de Sociologia" e mais da primeira leitura de um sociólogo militante, ansioso por cobrar dos outros uma posição de recusa da ordem estabelecida. Sem deixar de apontar os deslizes e os devaneios literários de Freyre, Fernando Henrique - desta feita escrevendo já em 2010 - ressalta a força mítica da obra do pernambucano: a sociedade patriarcal; as relações desiguais, mas próximas, entre as raças; o repúdio do racismo como guia heurístico (sem prejuízo dos deslizes racistas) e a afirmação de uma cultura singular, acabaram se tornando parte tácita e indistinguível da realidade brasileira. Mito é muito simplesmente a narrativa de uma história que não aconteceu, mas também daquela história que gostaríamos de acreditar que aconteceu - ou que ainda virá a acontecer, a qual fruímos, à maneira de Borges, com "prévio fervor e misteriosa lealdade". De qualquer forma, ao definir o estilo de Freyre como encantatório, cheio de reveladoras epifanias, Fernando Henrique não se esquece ainda de apontá-lo como um inesperado precursor daqueles estudiosos que criaram um método todo particular, no qual as sutilezas do estilo narrativo substituem os modelos teóricos e os conceitos abstratos.
Também se destacam as observações sobre Caio Prado Jr: um autor no qual "o método e os achados interpretativos caminham juntos, sem que ele esteja a cada instante batendo no peito para fazer o ato de contrição dos marxistas acadêmicos".
Se apenas o epílogo do livro reproduz uma aula magna, ministrada pelo então ministro das Relações Exteriores aos alunos do Instituto Rio Branco, poderíamos dizer que o estilo de quase todos os ensaios é menos do político e mais aquele de um fluente professor - que também nos dá a deixa para uma outra definição de um clássico: "quando o livro é grande, os andaimes pesam menos e é preciso ver menos a maquinaria utilizada e mais a beleza da obra construída, mesmo que, às vezes, sem muito rigor". Nesta elegante e ponderada releitura da pedagogia da brasilidade, talvez seja mesmo possível reconhecer o que há ainda de atual e de inatual naqueles clássicos - todos eles um tantinho angustiados em pensar o futuro do País a partir de um retrato panorâmico de seu povo e de sua história. Se alguns daqueles retratos panorâmicos envelheceram, outros ainda fazem falta, sobretudo num país que vivencia - como, aliás, todo o mundo contemporâneo - uma crise de perspectivas de futuro.
* ELIAS THOMÉ SALIBA É HISTORIADOR, PROFESSOR DA USP E AUTOR DE RAÍZES DO RISO, ENTRE OUTROS
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