Basicamente correto, mais ainda não deu o
passo necessário para considerar que foram as ações armadas da esquerda que
destaparam a caçambo dos gorilas que passaram a torturar indiscriminadamente.
Antes, tinhamos tido um caso ou outro de
exageros militares, mas o ambiente ainda permitia ações democráticas de
protestos contra a "ditadura", ou ditablanda, como se poderia
reconhecer.
Depois que as esquerdas passaram à ação, os
militares sentiram cheiro de 1935, e aí foram implacáveis.
Por que as esquerdas não reconhecem sua
responsabilidade na criação da repressão?
Paulo Roberto de Almeida
Tiro no pé: Por
que rever a Lei da Anistia é um erro
ALFREDO SIRKIS
Folha de São Paulo,
domingo 06 de abril 2014
RESUMO Julgamento
de crimes cometidos pelo Estado ocupa centro do debate nos 50 anos do golpe no
Brasil. Para deputado e ex-guerrilheiro, é improvável e incongruente levar à
prisão "militares de pijama" por fatos daquela época quando foco
deveria ser fazer cessar a tortura, vigente desde antes do regime militar e
ainda existente.
FOI FRANCAMENTE irônico o resultado da recente pesquisa do Datafolha sobre a
Lei da Anistia. Há uma maioria favorável a revê-la para poder julgar os
torturadores e uma maioria, maior ainda, para rejulgar a nós, ex-guerrilheiros
pelas ações que cometemos.
Por um instante me vi, com meus 63 anos, no
tribunal, respondendo pelos dois sequestros de embaixadores dos quais
participei, aos 19, e que propiciaram a libertação de 110 presos políticos,
alguns eventualmente destinados à Casa da Morte. Na época fui condenado duas
vezes à prisão perpétua (com mais 30 anos de lambuja para a encarnação
subsequente) pelas auditorias militares.
Costumo dizer que, daquilo tudo, não me
orgulho nem me envergonho. Mas já tive pesadelos horrendos: a organização me
ordena a executar o embaixador suíço, Giovanni Enrico Bucher --um sujeito
boa-praça que não gostava da ditadura-- porque tinham se recusado a libertar
todos nossos presos. Tenho uma pistola na mão, mas não quero me tornar um
assassino. Acordo coberto de suor frio.
Graças a Deus, aquilo terminou bem, e
nossos 70 companheiros foram mandados a Santiago do Chile porque consegui
convencer nosso comandante, Carlos Lamarca, a aceitar a recusa de alguns dos
presos "estratégicos" e negociar a sua substituição por outros que a
ditadura Médici aceitava soltar. Hoje vejo num sequestro desse tipo, de um
diplomata inocente, ameaçado de execução, mesmo sob uma ditadura, um ato no
limite do terrorismo, no que pese o nosso desespero de então. Em alguns casos,
esse limite foi ultrapassado. Penso no marinheiro inglês metralhado na praça
Mauá, na bomba de Guararapes ou na execução daquele militante que queria deixar
uma organização
.
BALANÇA
É
possível equiparar esse punhado de atos criminosos à tortura generalizada,
institucionalizada, sancionada desde o nível presidencial que se abateu não
apenas sobre nós, resistentes armados, como sobre opositores sem violência,
como no caso do PCB, e milhares de "simpatizantes" e outros, presos
por equívoco?
Claro que não; mas essa anistia
"recíproca" foi resultado de uma correlação de forças dos idos de
1979, um acordo político que permitiu a libertação dos presos e nossa volta do
exílio.
O primeiro problema de rever essa lei para
poder julgá-los, 40 e tantos anos depois dos fatos, é a repercussão sobre
outros complicados processos de redemocratização pelo mundo afora.
Frequentemente, para remover um regime de força, é preciso pactuar com os que
ainda ocupam o poder e ainda têm enorme capacidade de fazer dano.
As torturas e execuções na África do Sul e
na Espanha não foram menores do que no Brasil --é o mínimo que se pode dizer--
mas lá a opção foi não colocar os antigos repressores nos bancos de réus.
Na África do Sul, a lógica da Comissão da
Verdade foi reconstituir os fatos e obter dos responsáveis pelo odioso
apartheid a confissão, não com vistas à condenação penal, mas à expiação moral
e a superação conjunta de tudo aquilo. Também foram colocados na mesa para uma
catarse de superação coletiva certos episódios sangrentos dentro da maioria
negra.
Confesso que senti satisfação ao ver o
general Jorge Rafael Videla terminar a vida numa prisão argentina. Penso, no
entanto, que a razão decisiva para julgar (uma parte) dos comandantes daquele
regime assassino foi o prosseguimento das conspirações militares já no período
democrático, com quarteladas durante os governos de Raul Alfonsín e Carlos
Menem.
No Chile, alguns poucos foram julgados, mas
o general Augusto Pinochet Ugarte continuou comandando o Exército por um bom
tempo na transição e só sofreu embaraço jurídico no Reino Unido, jamais no
Chile.
Não há uma formula única,
"correta". No que pese o sentimento de busca de justiça das vítimas e
seus familiares --que respeito profundamente, à diferença daqueles que querem
apenas surfar politicamente na causa-- trata-se de uma decisão jurídica, por um
lado, e de uma questão política, por outro. Juridicamente, o STF já se
pronunciou a esse respeito. Politicamente, vejo a revisão como contraproducente
e concordo plenamente com a presidente Dilma Rousseff quando se manifesta
contrária à anulação da anistia.
NARRATIVAS
Desde
os anos 80, vem prevalecendo, grosso modo, a narrativa da esquerda sobre os
"anos de chumbo". Os verdugos dos porões do DOI-Codi viveram vidas
existencialmente miseráveis. Uma parte, desproporcional, já morreu de morte
morrida; outros tornaram-se criminosos comuns, bicheiros, contrabandistas.
No estamento militar há um sentimento geral
de condenação àquela máquina de torturas e execuções --que acabaram inclusive
atentando fortemente contra a hierarquia militar e sujando a imagem das Forças
Armadas--, embora sem nenhuma propensão a aceitar a narrativa da esquerda. Não
iremos convencer os militares a adotar, agora, um maniqueísmo reverso ao deles,
na época.
Por todo ordenamento jurídico
brasileiro, hoje seria totalmente impossível --a não ser que se viesse a adotar
toda uma nova legislação de exceção-- condenar esses militares de pijama, na
maioria septuagenários ou octogenários, a servir penas na prisão.
Num país onde assassinos abjetos como os
que torturaram e mataram o jornalista Tim Lopes saem da prisão por
"progressão de pena" em quatro ou cinco anos, fazer um ex-general ou
coronel do DOI-Codi ir para a cadeia por crimes cometidos há mais de 40 anos é
improvável e incongruente.
Qual o risco político de coloca-los agora
no banco do réus?
Tendo prevalecido a nossa narrativa, desde
os anos 1980, seria da lógica jornalística agora ouvir a deles, desde o palco e
holofotes que agora lhes estão sendo propiciados. Alguns se arrependem. Qual a
sinceridade disso? Há os que assumem friamente seus crimes, e aí temos a
novidade, o gancho para difundir sua contranarrativa: "Isso mesmo,
torturei, cortei dedos, matei, joguei no rio, no mar e daí? Guerra é
guerra".
Se há uma maioria de brasileiros que fica
compreensivelmente horrorizada, há uma minoria que se identifica e se sente
reconfortada em ver, afinal, sua "verdade" difundida agora com todas
as letras. "Levanta-se a bola" para figuras como Ustra ou Malhães,
propicia-se farta cobertura de mídia para que eles se comuniquem com uma
extrema-direita desorganizada, difusa, mas real. Ganham espaço para bulir com
aquele sentimento que leva o público do primeiro "Tropa de Elite"
--quando José Padilha ainda não pagara tributo ao politicamente correto-- a
aplaudir as torturas infligidas ao traficante com um saco plástico.
A prioridade no Brasil, em relação à
tortura, não é tentar, inutilmente, mediante a revisão da anistia, colocar na
cadeia um ou outro torturador do DOI-Codi dos anos 1970, mas fazer cessar
aquela tortura que continua ocorrendo hoje, agora, a todo momento, em dezenas
de delegacias de roubos e furtos ou destacamentos de policiamento ostensivo,
contra marginais pobres e negros.
Aquela velha tortura de sempre, de antes e
de depois do Estado Novo e do regime militar, quando ela foi, excepcionalmente,
infligida também à classe média intelectualizada e politizada.
Nesse sentido, apesar de todos os bons e
altivos argumentos e da justificada indignação de quem sofreu e gostaria de ver
punidos aqueles criminosos, a revisão da "anistia recíproca" de 1979
é um erro político cujo maior problema é, na prática, dar uma segunda chance e
propiciar um público renovado para uma narrativa que já enterramos nos anos
1980. É, no fundo, um tiro no pé.
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