1360. “A relação Brasil-EUA e os sete pecados capitais da diplomacia bolsolavista”, jornal Zero Hora (RS; 14/08/202; link: ); e postado no blog Diplomatizzando (15/08/2020; link: ). Relação de Originais n. 3733.
Eis o texto original:
Sete pecados capitais da diplomacia bolsolavista
Paulo Roberto de Almeida
Diplomata de carreira, professor no Uniceub (Brasília)
A diplomacia bolsolavista, formulada em grande medida fora do Itamaraty e operada apenas formalmente por auxiliares da Casa, é feita de rupturas com respeito aos padrões históricos da política externa brasileira, que sempre foi tradicionalmente caracterizada pela busca de autonomia e comprometida, antes de mais nada, com o interesse nacional. Ela é tão bizarra no horizonte bissecular de nossa diplomacia que sequer pode ser assemelhada a uma espécie de desvio padrão numa linha de tendência da política externa nacional, pois ela se situa completamente fora do quadro. Observando-se cronologicamente seu desempenho em um ano e meio de esquisitices de inspiração bolsolavista, pode-se identificar os sete pecados capitais dessa diplomacia sui generis:
1) Ignorância: não parece haver dúvidas de que os que conduzem, de fato, as relações exteriores do Brasil são profundamente ignorantes sobre as relações internacionais e sobre a própria política externa do Brasil. O filho 03 do presidente, que exerce esse papel, não tem a menor ideia de quem foi, nem nunca ouviu falar de Henry Kissinger.
2) Irrealismo: esses “decisores” começam partindo de uma fantasmagoria, o tal de globalismo – que nunca demonstram existir empiricamente – e passam daí a atacar o método por excelência da diplomacia contemporânea: o multilateralismo.
3) Arrogância: como a anterior tribo dos lulopetistas, eles acham que tudo o que existia antes deles foi errado; o chanceler acidental vive apontando distorções na política externa dos últimos 30 anos (falou até “depois de Rio Branco”), não mencionando que serviu de forma obediente todas essas distorções até com entusiasmo (existem provas disso). Ele fez uma completa reforma do Itamaraty sem jamais consultar seus colegas de carreira: por cima.
4) Servilismo: a frase símbolo desse alinhamento automático é o famoso “I love you Trump”, disparado pelo presidente a seu colega americano em setembro de 2019 na ONU. Teve início no primeiro dia de governo quando se ofereceu uma base militar americana no Brasil, prontamente rejeitada pelos ministros militares; mas tem muitos outros exemplos.
5) Miopia: já manifestada numa alegada “ameaça globalista”, tem recusado a cooperação multilateral no combate a um desconhecido, até aqui, “comunavirus”; ela se manifestou em especial na animosidade em relação à China e numa adesão unilateral ao governo de Israel, desconhecendo a complexidade dessas relações e ameaçando negócios e investimentos extremamente relevantes para o presente e o futuro do Brasil.
6) Grosseria: Ela se manifestou sobretudo em direção de líderes estrangeiros que não pensam como o presidente, com ofensas a estadistas europeus comprometidos com a defesa do meio ambiente e também a dirigentes vizinhos de outras correntes políticas.
7) Inconstitucionalidade: a primeira já está comprometida no servilismo, ou seja, a renúncia à independência nacional, para subordiná-la a um dirigente estrangeiro, mas também existe a intervenção nos assuntos internos de outros países; a mais grave é o desconhecimento do Direito Internacional, manifestado no apoio às sanções unilaterais do governo americano, o que pode concretizar-se inclusive contra o próprio Brasil, como no caso das salvaguardas abusivas (e ilegais) contra exportações brasileiras de aço e alumínio.
Todos esses pecados se revelaram abertamente na recusa do multilateralismo, na negligência de normas consagradas do Direito Internacional, no abandono da formulação autônoma da política externa brasileira, na relativização da noção de interesse nacional, na substituição da diplomacia profissional pelos preconceitos de amadores ignorantes, assim como o desprezo pelos princípios constitucionais das relações internacionais. Dois exemplos, entre outros, da subordinação aos EUA: a aceitação do candidato americano à presidência do BID e a adesão ao veto de Trump à participação da empresa chinesa Huawei no leilão do 5G.
[Brasília, 3733, 12 de agosto de 2020]
Esse trabalho, na verdade, teve de limitar-se à imposição dos 2.000 caracteres com espaço, mas a intenção seria publicar um trabalho mais amplo, como reproduzido abaixo:
As eleições americanas e a política externa bolsonarista
Paulo Roberto de Almeida
Diplomata de carreira, professor no Uniceub (Brasília)
O primeiro elemento do título é, como dizem os americanos, self-explaining: desde George Washington, que exerceu dois mandatos sucessivos numa espécie de concessão inaugural a um dos “pais fundadores” de um regime presidencialista até então inédito na história dos sistemas constitucionais modernos, os Estados Unidos têm conduzido eleições regulares a cada quatro anos para escolher, sob o formato de colégio eleitoral, os seus dirigentes executivos. A limitação a dois mandatos foi introduzida em tempos excepcionais, depois que Franklin Roosevelt venceu quatro escrutínios, em meio à crise da Grande Depressão e à Segunda Guerra Mundial. É possível que Donald Trump não consiga renovar o seu, em virtude de erros sucessivos na condução do país, não apenas por causa da pandemia.
O segundo elemento requer uma explicação, justamente porque não se refere à política externa brasileira e sim bolsonarista. Isso se deve a que, nunca antes na história do Brasil, estivemos confrontados a uma diplomacia tão distante dos padrões habituais a que estamos acostumados no Itamaraty e nas relações exteriores do país. Alguns exemplos desse caráter inédito das posturas externas do governo Bolsonaro, aliás desde antes, são ilustrativos dessa caracterização. Logo após as eleições de outubro de 2018, o filho 03, tido como chanceler real do Brasil e candidato, por um tempo, à embaixada em Washington, passeou por Washington, em contato com familiares do presidente Trump, exibindo, já naquele momento, um boné da campanha “Trump 2020”. Ele também se manifestou publicamente, no mesmo sentido da xenófoba campanha do presidente americano contra os imigrantes, sobre a presença de brasileiros ilegais nos Estados Unidos, declarando-os “uma vergonha nacional”.
Logo depois, veio ao Brasil, John Bolton, então conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, velho falcão da Guerra Fria, um dos entusiastas da invasão do Iraque por George Bush Jr, em 2003, e antigo “inimigo” do Brasil, no período anterior à aceitação do Tratado de Não Proliferação Nuclear por FHC, em 1996. Ele reuniu-se com o presidente eleito no Rio de Janeiro, já acompanhado pelo chanceler escolhido – um diplomata jovem, sem expressão reconhecida no Itamaraty –, e ali iniciou-se um grande “namoro”, depois confirmado pelo próprio presidente com um sonoro “I love you Trump”, por ocasião da abertura dos debates na Assembleia Geral da ONU, em setembro de 2019. No próprio dia da posse, na presença do Secretário de Estado Mike Pompeo, o chanceler acidental alardeou, com a aparente concordância do presidente, a instalação de uma “base americana” no Brasil, apenas para ser imediatamente desmentido, e o projeto recusado, pelos assessores militares do governo, a começar pelo ministro da Defesa e pelo ministro do GSI.
O primeiro assunto de política externa a ocupar o governo Bolsonaro foi a crise da Venezuela, e mais uma vez se revelou o alinhamento automático da diplomacia brasileira com um projeto eleitoreiro do presidente Trump no sentido de forçar a queda do regime chavista; mais uma vez, os militares, a começar pelo vice-presidente Mourão, tiveram de se mobilizar para impedir que o território brasileiro fosse usado como plataforma de uma suposta ofensiva “humanitária” de ajuda ao povo venezuelano, capaz de deslanchar uma guerra civil e provocar desestabilização nos países fronteiriços, entre eles a Colômbia. O vice-presidente Mourão teve de pessoalmente liderar uma delegação brasileira a uma reunião do Grupo de Lima para barrar a aventura militar dos americanos, apoiada pelo chanceler, e confirmar a via diplomática para alguma solução, se possível, ao problema venezuelano.
Logo no primeiro semestre de 2019, o presidente pretendia fazer designar o seu filho Eduardo, o chamado chanceler efetivo, como embaixador do Brasil em Washington, o que recebeu rejeição unânime da classe política e da opinião pública de modo geral, uma vez que o deputado não tinha a menor condição de desempenhar tal cargo. Confirmando a política de submissão da diplomacia bolsonarista aos interesses do governo americano, e ao desejos do presidente Trump em especial, o Itamaraty – mais provavelmente os verdadeiros decisores pela política externa, todos eles estranhos ao Itamaraty – emitiu notas de apoio e de adesão a várias iniciativas ou ações do governo Trump sobre temas de relevância na agenda internacional: o assassinato do general iraniano Suleimani em Bagdá; a votação na ONU em resolução sobre sanções unilaterais (quando o Brasil ficou totalmente isolado, com Israel e os próprios EUA); um desequilibrado “plano de paz” para a Palestina (que não recebeu sequer o apoio de nenhum aliado da OTAN) e diferentes propostas levantadas no Conselho de Direitos Humanos sobre temas de igualdade de gêneros e direitos das mulheres e de minorias. O mais grave defeito dessas notas de apoio é o fato de elas terem ignorado completamente o Direito Internacional e até resoluções do Conselho de Segurança sobre seus temas, ou até contrariado os interesses nacionais (como a aceitação de sanções unilaterais americanas, o que pode até voltar-se contra o próprio Brasil).
Dois outros temas, da maior relevância para o Brasil, traduzem a compulsão do chanceler, e de seus patronos de fora do Itamaraty, de sempre alinhar a política brasileira aos interesses americanos, aliás desde antes mesmo de ser inaugurado o governo: presidente, familiares, chanceler, todos anunciaram a mais estreita aliança não apenas com os EUA, mas sobretudo com o governo Trump. Foi por causa dessa submissão total, para todos os efeitos práticos, mas também por crenças equivocadas de todos eles, que teve início antes mesmo da campanha eleitoral, esse largo exercício diplomático de servidão voluntária, começando pela animosidade demonstrada em relação à China, nosso maior parceiro comercial e o país que, sozinho, fornece praticamente um terço do saldo comercial externo. Essa hostilização, por razões puramente ideológicas, causou reações não só na China, como principalmente entre a comunidade dos homens de negócios que transacionam com a China, sobretudo no agronegócio (grãos e carnes), mas também em mineração (minérios e petróleo). Foi também pelas mesmas razões que os mesmos decisores equivocados começaram a sinalizar um veto brasileiro à participação da empresa eletrônica chinesa Huawei – já presente no Brasil há mais de uma década e grande fornecedora de equipamentos de comunicações e eletrônicos em geral – no leilão de seleção das empresas habilitadas a operar o sistema 5G no Brasil. Outras sinalizações irracionais foram manifestadas a propósito da pandemia do Covid-19, chegando o chanceler ideológico a falar de um “comunavirus” a esse respeito.
Os mais recentes escolhos nas frustrações acumuladas nas relações bilaterais com os EUA – que nunca corresponderam às demonstrações de submissão unilateral do Brasil – foram a renovada comunicação de que visitantes provenientes do Brasil não seriam admitidos nos EUA, em virtude da extensão da pandemia entre nós, assim como o anúncio, por Trump, de que poderia impor sanções a produtos brasileiros se o Brasil não reduzir as tarifas sobre o etanol americano, o que configura uma espécie de chantagem contra nossa soberania em matéria de política comercial. Registre-se que, contrariamente às normas do Gatt-OMC, a política comercial de Trump já impôs salvaguardas unilaterais e ilegais às exportações de aço e alumínio, de diversos países, não só ao Brasil, mas também a sócios dos EUA no Nafta, ou seja, Canadá e México. No plano mais geral, o governo Trump está desmantelando as instituições que os próprios EUA criaram desde Bretton Woods, em especial a OMC e seu sistema de solução de controvérsias. Nesse capítulo, a diplomacia submissa do Brasil também seguiu os EUA ao denegar o status de economia de mercado à China, um gesto considerado inamistoso pelo gigante asiático, e que talvez sirva de motivo para retaliações ponderadas.
Não obstante todas essas demonstrações de desapreço ao Brasil – assim como a outros supostos aliados dos EUA, na OTAN ou em outras instâncias –, a diplomacia bolsonarista continua a praticar um alinhamento praticamente automático às posturas do governo Trump, uma opção absolutamente inédita nos anais da política externa brasileira, mesmo considerando os tempos da luta comum contra o comunismo, durante a Guerra Fria, quando o suposto alinhamento nunca foi automático e quando ocorreu consistia numa espécie de barganha negociada em troca de alguma vantagem ou benefício ao Brasil, geralmente de natureza econômica. A suprema ironia dos bolsonaristas é que eles recusam a caracterização de ideológica para essa diplomacia feita de ruptura de padrões históricos da política externa brasileira, tradicionalmente caracterizada pela busca de autonomia e comprometida, antes de qualquer outra coisa, com o interesse nacional.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 3732, 11 de agosto de 2020
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