As voltas que o mundo dá
Paulo Roberto de Almeida
Diplomata, professor
(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)
Comentários sobre as inversões e ciclos das políticas nacionais e das relações internacionais.
As relações internacionais guardam uma íntima relação com a política interna daquelas grandes potências que têm a capacidade de influenciar decisivamente a agenda dos assuntos globais, incluindo aqui relações normais de intercâmbio, fluxos de pessoas e capitais ou até, em casos extremos, guerras civis ou guerras entre esses Estados. O mundo vinha numa onda de globalização inédita nos anais da economia mundial nas últimas três décadas do século XIX e na primeira do século XX, quando o acirramento de tensões entre as coalizões de grandes potências e seus aliados menores, assim como o erro de cálculo das autocracias da Europa central e oriental – Alemanha, Áustria-Hungria e Rússia – quanto a uma rápida resolução dos problemas precipitou o mundo na guerra global mais devastadora até então conhecida. Foi uma guerra mecânica, industrial, não mais feita de cavalaria e de artilharia entre exércitos se enfrentando em campo aberto – como ainda nas guerras da era napoleônica e no seu imediato seguimento –, mas de metralhadoras, canhões de longo alcance, carros blindados e até aviões, sem falar das armas químicas.
As negociações de paz de Paris, em 1919, foram tão desequilibradas, ao consagrar as imposições dos vencedores, que os resultados provocaram repercussões de tal magnitude, sobretudo no terreno econômico, que se arrastariam para uma repetição dos enfrentamentos em um novo enfrentamento vinte anos depois. O entre guerras foi marcado por uma rejeição tão disseminada dos horrores registrados naqueles quatro anos de conflito, 1914-18, que o pacifismo se estendeu na maior parte das democracias ocidentais, que foram as que se saíram vencedoras. Enquanto as potências que saíram insatisfeitas do conflito continuaram a manter expectativas de revanche, os vencedores foram dominados pelos isolacionistas (nos EUA, por exemplo) ou pelos appeasers, os pacifistas, sobretudo na França e Grã-Bretanha. Enquanto a democracia se firmava nos segundos, os primeiros foram levados a regimes reacionários, conservadores ou claramente fascistas, ao lado de experimentos expansionistas que levaram a novas fontes de conflitos. A Rússia praticamente se isolou na construção do socialismo em um só país, ao passo que os demais cediam aos apelos do protecionismo, do nacionalismo e da autossuficiência. Foi um período de retraimento desastroso das democracias.
A devastação do segundo conflito global foi muitas vezes superior ao da Grande Guerra, inclusive porque se somou aos impulsos genocidas que já vinham se manifestando a partir dos totalitarismos, por vezes contra o próprio povo ou visando minorias étnicas. Uma nova ordem internacional foi sendo criada a partir do aprendizado feito pelas democracias avançadas: Bretton Woods, ONU, Gatt, Otan, integração europeia, voto das mulheres, direitos sociais e trabalhistas, tratados multilaterais e declarações sobre direitos humanos. A democracia floresceu em muitas partes, a despeito mesmo dos totalitarismos comunistas e dos golpes de Estado e regimes militares na América Latina, África e Ásia. O otimismo cresceu ao longo dos anos, mesmo atravessando a crise do keynesianismo e do Estado de bem-estar social, logo reforçado pelo fim do socialismo um pouco em todas as partes. Com o fim da União Soviética e a conversão da China à economia de mercado, o mundo parecia caminhar para o reforço da ordem criada no imediato pós-guerra, quando a própria Rússia era integrada ao G-7 e começava um programa de cooperação com a Otan, ao passo que a China era aceita no Gatt-OMC.
Ventos contrários começaram a agitar esse novo cenário de convergência, dada a “ascensão do Resto”, e a perda de empregos (não só industriais) nos países do capitalismo avançado. Um novo nacionalismo e o velho protecionismo ascenderam à superfície, a partir da crise dos anos 2008-2010, ao passo que agitação e guerras civis na periferia lançaram levas de imigrantes econômicos e de refugiados de guerra em direção de grandes democracias de mercado: os partidos de direita, xenófobos e contrários à globalização, deram um inédito vigor às tendências antiglobalistas de demagogos políticos. A União Europeia e seus órgãos executivos, sobretudo os eurocratas de Bruxelas, começaram a ser atacados, e a própria Otan foi acusada de ter sido afetada por “morte cerebral”. A globalização e conformação de uma agenda comum entre as grandes potências do G-20 sofreram recuos não apenas temporários, mas sobretudo uma nova escalada de tensões entre estas. Uma nova onda de desigualdades crescentes reforçou o apelo dos demagogos e dos seus sistemas políticos ditos iliberais.
Foi nesse contexto que o neoczar da Rússia se lançou à reconquista do antigo império soviético. Mas algo surpreendente ocorreu então: a UE, mesmo amputada da Grã-Bretanha, recuperou uma unidade raramente vista, e até a Otan foi procurada por aqueles que temiam o abraço do urso russo. A ordem mundial alternativa concebida pelas duas grandes autocracias contemporâneas não parece mais estar na ordem do dia, em vista da disposição das velhas e novas democracias em defender o patrimônio já adquirido de valores e princípios situados no arco civilizatório do Direito Internacional. Mas, o mundo vai mudar, embora sua direção ainda não esteja plenamente conformada, dado que grande parte dos países em desenvolvimento – que são maioria nos organismos multilaterais – ainda não tomou partido na atual contenda entre o G-7-UE-Otan, de um lado, e a Rússia-China de outro. Os circuitos multilaterais ainda padecem da descoordenação criada primeiro pela pandemia, em seguida pela guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, e não se tem certeza se e quando um diálogo entre os dois contendores será novamente possível. O mundo se encaminha para uma possível recessão, como já ocorrida sob os choques do petróleo, das dívidas externas dos países em desenvolvimento, das crises financeiras dos anos 1990 e 2000, cujo contornos não estão ainda definidos, como tampouco a guerra na Ucrânia.
Muitos cenários estão abertos aos analistas de relações internacionais, jornalistas e aos próprios estadistas dos grandes atores (quando existem). Prognósticos estão sendo feitos, mas cabe evitar analogias com processos ou fenômenos anteriores, do passado recente ou de fazes mais longínquas. O processo histórico é sempre único e original e nenhuma grande potência atual, ou mesmo alguma coalizão entre elas, é capaz de determinar a natureza e o ritmo do rumo das relações internacionais a partir de agora. Em qualquer hipótese, países como o Brasil, e com ele o restante da América Latina, terão pouco peso na direção dos processos e eventos do futuro de curto e médio prazo. Estamos ocupando a segunda classe de um barco em meio às turbulências do momento. Oxalá prevaleça o bom-senso.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4177: 19 junho 2022, 3 p.
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