domingo, 14 de dezembro de 2025

Um prefácio meu sobre um livro de Dennys Xavier apresentando a obra de Thomas Sowell (2020) - Paulo Roberto de Almeida

Reproduzo novamente uma postagem minha de 2020, quando foi publicado o livro de Dennys Xavier sobre Thomas Sowell 

quarta-feira, 4 de março de 2020

Breves Lições com Dennys Xavier: Thomas Sowell (LVM)


Hoje tive o prazer de receber não um, o mais recente, mas QUATRO livros editados pela LVM, todos eles sob o emblema unificado de "Breves Lições", ensaios organizados pelo professor Dennys Garcia Xavier em torno da vida e da obra de quatro grandes economistas liberais: Friedrich Hayek (também um filósofo), Hans Hoppe (igualmente filósofo e sociólogo), Ayn Rand (mais uma romancista e filósofa do que propriamente economista) e, sobretudo, Thomas Sowell, um livro que tive a honra e o privilégio de prefaciar.

Thomas Sowell é, possivelmente, um dos maiores economistas americanos vivos, e já
deveria ter recebido o Prêmio Nobel, não tanto por suas elaborações "matemáticas", mas sobretudo pelo seu imenso trabalho de "educação popular" nas mais variadas vertentes da economia, não só relativas a problemas tipicamente americanas, como o racismo, por exemplo, mas sobretudo pelo trabalho enciclopédico que ele desenvolve em escala universal, de "pedagogia econômica" num terreno que os franceses chamariam de haute vulgarisation, ou seja, traduzir fenômenos complexos em linguagem acessível ao leigo, ao leitor não especializado. Tenho vários livros dele, sobretudo o Thomas Sowell Reader, que é um compêndio de seus mais importantes ensaios e artigos de opinião, todos eles rigorosamente embasados num enorme conhecimento da história do mundo, em todas as épocas.

Dennys Xavier conduziu um trabalho primoroso de coordenação de ensaios sobre os grandes pensadores da liberdade em seus quatro livros até agora produzidos sobre esses gigantes da filosofia social de cunho liberal, até libertário.

Meu prefácio ao livro de Thomas Sowell começa por uma confissão: demorei muito tempo a descobri-lo, mas também quando o fiz, comecei a comprar os seus livros sequencialmente.

“Thomas Sowell: um intelectual completo”; Brasília, 12 julho 2019, 9 p. Prefácio a livro organizado por Dennys Garcia Xavier com contribuições de estudos sobre o grande economista americano por estudiosos do Brasil. Publicado no livro intitulado Thomas Sowell e a aniquilação de falácias ideológicas: Breves Lições, com organização de Dennys Xavier (São Paulo: LVM, 2019, 312 p.; ISBN: 978-6550520168).

Nele eu digo basicamente o seguinte: 


"Um dos livros de Sowell que mais aprecio, porque talvez também combine com meu espírito contrarianista, é o seu famoso Economic Facts and Fallacies (2008), na verdade um tipo de abordagem que ele seguiu, invariavelmente, em muitos dos seus demais livros, em especial aqueles voltados a desmentir políticas distributivistas, ações afirmativas, supostos efeitos do racismo ou das disparidades sociais, demonstrando aos incautos, com base em certezas acachapantes, como nosso julgamento superficial sobre a aparente “racionalidade” de certas opções políticas não fazem nenhum sentido do ponto de vista da eficiência ou da consistência econômica. O frontispício dessa obra, uma citação de John Adams, deixa transparecer sua atitude básica em face de opiniões subjetivas ou de percepções de senso comum: 
Fatos são coisas teimosas; e quaisquer que sejam nossos desejos, nossas preferências, ou os ditados de nossas paixões, eles não podem alterar o estado dos fatos e das evidências.


Paradoxalmente, ele trata os principais postulados econômicos como evidências de alcance geral, tal como revelado no título de seus livros mais conhecidos, e mais usados como text-booksBasic Economics: A Citizen's Guide to the Economy (2000) e Basic Economics: A Common Sense Guide to the Economy (3ª. edição, 2007). Em consonância com essa atitude inerente à sua metodologia, ele nunca hesitou em marchar contra a corrente, seja nas questões raciais – um tema especialmente delicado num país com remorso de seu apartheid passado, talvez nunca terminado, e que empreendeu uma cruzada nas ações “afirmativas” –, seja nos problemas de desigualdades de renda dentro e entre os países. Ele não apenas toma posição contra essas verdades de senso comum, que nada mais são do que pensamento politicamente correto envelopado em belas frases progressistas, como demonstra, com apoio em estudos empiricamente embasados, como a visão dos bem pensantes e das almas caridosas não passam no teste da realidade prática ou da eficiência econômica. Nisso ele se aproxima de um outro intelectual que também nadou contra a corrente durante a maior parte da sua vida: o francês Raymond Aron, tão denegrido em sua terra natal quanto, entre nós, Roberto Campos ou Eugênio Gudin, dois liberais clamando no deserto. 
O debate econômico nos Estados Unidos – em grande medida graças aos grandes bastiões do liberalismo clássico que são os think tanks da linha hayekiana ou miseniana, e escolas de pensamento econômico como Chicago – nunca foi tão dominado pela vertente social-democrática quanto o foi na Europa continental, em especial na França e nos países latinos. Na França, por sinal, durante muito tempo se repetiu que era “melhor estar errado com Jean-Paul Sartre do que ter razão com Raymond Aron”, mas é também verdade que a praga do politicamente correto teve início nas universidades americanas para depois se espalhar como erva daninha por instituições congêneres de quase todos os países do mundo. Na América Latina, a chegada da praga foi mais delongada, pois o desenvolvimentismo estava na linha de frente do debate público, sujeito às controvérsias conhecidas e que foi abordado em várias das obras tipicamente econômicas de Sowell: como seria de se esperar ele recusa as teorias vulgares da dependência e da exploração como causas do atraso.
A maior parte das falácias econômicas é partilhada por pessoas não formalmente instruídas na teoria ou na história econômica. Mas mesmo economistas podem ser levados a defender algumas falácias simplesmente por ignorar certos fatos econômicos – a verdadeira obsessão de Sowell com a fundamentação empírica de todas as suas demonstrações – ou por operar um corte seletivo na realidade econômica, sem observar uma metodologia rigorosa que os teria levado a outras “descobertas” ou argumentos. No caso da América Latina, por exemplo, não só a opinião pública educada (entre elas políticos e acadêmicos), mas também economistas se deixaram seduzir pela “teoria”, aparentemente “comprovada pela evidência histórica”, da “deterioração dos termos do intercâmbio”, ou seja, a baixa relativa e contínua dos preços das matérias primas comparativamente ao valor dos produtos industrializados. O confronto tendências opostas entre preços de commodities e de manufaturas alimentou vários programas de industrialização substitutiva, com todas as consequências criadas pelo excesso de protecionismo e de dirigismo estatal nas décadas seguintes à disseminação dessa “teoria” a partir de suas fontes cepaliana e prebischianas. A França, por sua vez, é um dos poucos países do Ocidente avançado onde livros de economistas recomendando a adoção explícita e aberta do protecionismo recebem certa adesão entre colegas."

Eu recomendaria a todos os meus leitores que adquirissem não só o Thomas Sowell, mas os três outros: Hayek, Rand, Hoppe, pois os ensaios neles contidos – dezenas de brilhantes textos de intelectuais brasileiros – equivalem a uma grande aula de economia.

 

Um debate sobre a política externa brasileira a propósito da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia - Paulo Roberto de Almeida

 Um debate sobre a política externa brasileira a propósito da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.
Respondendo a um comentarista anônimo sobre uma postagem de meu blog.


        Uma postagem de meu blog Diplomatizzando recebeu comentários de um leitor anônimo, em 14/09/2025, a propósito desta postagem, do dia imediatamente anterior: https://diplomatizzando.blogspot.com/2025/09/duas-guerras-dois-massacres-duas.html.
        Eu me referia à diferença de posturas da política externa do governo Lula, refletido em declarações de sua diplomacia, em relação aos conflitos paralelos de Gaza – objeto de críticas severas ao governo de Netanyahu, nas quais se mencionou inclusive o termo de genocídio – e a guerra de agressão (não existe nenhuma outra palavra senão essa) da Rússia contra a Ucrânia, jamais condenada ou criticada pelo governo lulopetista e objeto, inclusive, de um apoio objetivo, pois que o governo Lula aumentou de maneira expressiva suas impostações de fertilizantes e combustíveis russos, ou seja, concedendo um tratamento desigual, e contraditório com respeito a posições tradicionais da diplomacia brasileira.
        Recomendo que os interessados neste debate leiam primeiro a minha postagem e se detenham depois no comentário feito pelo leitor anônimo, que reproduzo abaixo, na qual destaquei, em itálico [aqui entre aspas], afirmações que serão objeto de minhas considerações: 

 
"Caro professor,
Sou um grande admirador e leitor há anos do seu blog. Partindo da minha posição de ignorante, direi algumas especulações. Formalmente, houve a condenação de ambos os autores. "Sanção não funciona e ainda agrava a vida dos civis." A globalização criou interdependência. "A Europa continua comprando petróleo russo através da Índia". "O Brasil depende do fertilizante russo. Qualquer disrupção afetaria brutalmente a economia interna e externa. Além de crise alimentar (alguém deixaria de receber alimento). O Brasil assinou, nos últimos anos, diversos contratos e acordos com a Rússia." Em áreas estratégicas e importantes ao Brasil. Ou seja, no mundo ideal haveria condenação constante da Rússia, mas "o tempo de hoje é bem diferente daquele de Rui Barbosa": "não há imparcialidade entre o direito e a injustiça" O Direito Internacional foi uma luz, porém vilipendiada pelas potências. "A regra do jogo só é respeitada quando todos os membros jogam dentro da regra." Todavia, a natureza humana, por ser livre, há de trapacear. E assim caminha a história, como sempre foi, entre som e fúria. Como você disse: "Eu já sei a resposta, como diplomata experiente que sou, pelas razões das diferenças". "Então, professor, caso a questão esteja lhe perturbando emocionalmente, experimente psicoterapia." É preciso integrar a nossa sombra para vivermos bem. Eu já sofri com isso e só por isso estou comentando. Espero que o professor fique bem e continue com o coração esperançoso, pois uma coisa é saber da realidade... e outra é continuar no caminho certo. (Como você sempre demonstrou em suas posições)."

PRA:
        Pois bem, devo, em primeiro lugar agradecer ao meu anônimo comentarista, que suponho seja um colega diplomata, e desculpar-me por demorar algum tempo para autorizar a publicação de seu comentário, agora feita, e para responder a seus argumentos, que encontrei sobranceiros, se assim posso dizer, como pretendendo ensinar-me coisas, ou dar-me uma lição sobre coisas que eu não percebi, ou que seria muito ingênuo ou irrealista por aceitar serem realidades do mundo, com as quais não concordo, (para talvez, equivocadamente). Ele se permite até desprezar Rui Barbosa, por achá-lo démodé, ou seja, ultrapassado. Eu sublinhei seus comentários em itálico, para melhor responder ao envergonhado comentarista. Vamos lá, portanto, para que algumas coisas fiquem estabelecidas. 

 
        Caro comentarista anônimo,
        Permita-me responder a suas afirmações, ainda que do alto de algumas certezas que não recebem meu assentimento, num tom de condescendência com meus “equívocos”. Grato, em primeiro lugar, por ser um leitor fiel e longevo de minhas postagens, e espero que possa ter aproveitado algumas delas (não todas, pois vejo que contesta quase toda esta postagem). Vou apenas destacar algumas afirmações suas, e tentar responder.

1) “Sanção não funciona e ainda agrava a vida dos civis.”
        Posso até concordar, mas esse é um “remédio” utilizado como substituto à guerra direta, bem mais custosa, e agravadora da vida dos civis. Foi usada desde a mais remota antiguidade (guerra de Troia, já ouviu certamente falar), em assédios a fortalezas medievais e no bloqueio de Napoleão contra a Inglaterra e desde no bloquei continental contra toda a Europa dominada pelo imperador francês. Depois a guerra se encarregou de agravar ainda mais a vida dos civis. A Grande Guerra levou a Alemanha imperial à fome, assim como a Turquia, e nas negociações de paz de Paris Woodrow Wilson defendeu as sanções como “remédios mais terríveis do que a guerra”, sendo, portanto, introduzidas na convenção da Liga das Nações, o primeiro instrumento (oligárquico) que tentou defender a paz, mas que obviamente falhou (a despeito de sanções, modestas, contra a Itália, por exemplo). Se sanção não funciona é sua opinião, mas as grandes potências voltaram a reproduzir os mesmos artigos da Liga na Carta da ONU, desde o rompimento de relações diplomáticas, a sanções financeiras, o bloqueio naval, etc. Nem sempre funciona, como sabemos, mas o Iraque de Saddam Hussein pagou um alto preço (sua população sobretudo) pela invasão do Kuwait. A Rússia vem sofrendo sanções por sua violação deliberada da Carta da OTAN, e parece que elas têm funcionado parcialmente, embora países importantes (China, Índia e outros, inclusive o Brasil) as tenham violado, em parte pela alegação de que são “ilegais”, por não serem “multilaterais” (um argumento capcioso, em virtude do uso abusivo do direito de veto pelo Estado agressor).

2) “A Europa continua comprando petróleo russo através da Índia.”
        Pode até ser, mas não está provado. Países são dependentes de certos produtos essenciais e governos são hipócritas, como sabemos. Mas isso não invalida o argumento, pois a Carta da ONU continua preconizando sanções contra Estados agressores. Fico com a Carta.

3) “O Brasil depende do fertilizante russo. Qualquer disrupção afetaria brutalmente a economia interna e externa. Além de crise alimentar (alguém deixaria de receber alimento). O Brasil assinou, nos últimos anos, diversos contratos e acordos com a Rússia.”

        Argumento capcioso. O Brasil pode até depender de fertilizante importado (o que é uma falha de sua estrutura produtiva), não necessariamente de fertilizante russo, pois existem muitos outros países que poderiam nos fornecer (ou você acha que o mundo inteiro depende do fertilizante russo?). Não haveria disrupção nenhuma se buscássemos fornecedores de outros países. Isso de “crise alimentar” é uma hipótese não confirmada, e, até me permito agregar, totalmente ridícula. O Brasil assinou acordos com dezenas de países, e o que isso tem a ver com o respeito à Carta da ONU e necessidades específicas de nossa agricultura?

4) “...o tempo de hoje é bem diferente daquele de Rui Barbosa...”
        Recomendo que você leia toda a conferência de Rui Barbosa, de 1916 – existe uma excelente edição da Casa que leva seu nome: Conceitos Modernos do Direito Internacional (1983), para depois explicar melhor porque ele estaria superado. Rui Barbosa é um dos esteios doutrinais da diplomacia brasileira e algumas de suas lições figuram no eixo central do multilateralismo contemporâneo. Volte a me escrever depois de fazer o dever de casa.

5) “A regra do jogo só é respeitada quando todos os membros jogam dentro da regra.”
        Entendo, pelo seu argumento, que o Direito Internacional não tem importância nenhuma, e que devemos voltar ao tempo em que o direito da força primava sobre a força do Direito (o que ainda pode ser o caso, mas não diga, por favor, que isso é o novo normal).

6) “Então, professor, caso a questão esteja lhe perturbando emocionalmente, experimente psicoterapia.”
        Não se trata propriamente de um argumento político, mas apenas uma demonstração de comiseração para comigo, e por isso nem ouso recusar ou criticar. Apenas registro o conselho como uma preocupação de natureza paternal, o que talvez seja o caso (o que duvido) se você for bem mais velho do que eu. Não sendo, fica a sugestão, mas posso dizer que toda a minha postagem desvelou preocupação com a credibilidade de nossa diplomacia, não uma angústia pessoal.
 

        Continue lendo e criticando minhas postagens, escrevo exatamente com esse objetivo.
        Saudações acadêmicas e diplomáticas.


Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 5146, 14 dezembro 2025, 4 p.

O filósofo francês Pascal Bruckner recebe o prêmio da Laicidade: discurso ao receber o Prêmio (Le Point)

 O filósofo francês Pascal Bruckner recebe o prêmio da Laicidade. Ver abaixo o seu discurso ao receber o Prêmio

Pascal Bruckner : « La France est détestée non parce qu’elle opprime les musulmans, mais parce qu’elle les libère »
Le philosophe, romancier et essayiste français de 76 ans remet ce mardi soir à l’Hôtel de Ville de Paris le 19e prix de la laïcité. Voici son discours.

PRA:  Recomendo ouvir seu discurso falado, pois tem pequenas diferenças com o que vai aqui reproduzido.

Par Pascal Bruckner
Le Point, 09/12/2025 à 18h00
https://www.lepoint.fr/societe/pascal-bruckner-la-france-est-detestee-non-parce-qu-elle-opprime-les-musulmans-mais-parce-qu-elle-les-libere-09-12-2025-2605083_23.php


Je voudrais ici inverser l'ordre des discours : non pas m'alarmer des atteintes à la laïcité mais me demander pourquoi la France fait l'objet d'une telle hostilité de la part des fondamentalistes et des bigots de tous les pays, y compris du nôtre. La rage contre Paris vient de la séduction qu'exerce notre modèle sur de nombreux croyants. Quand la République, après des siècles de combats d'une violence inouïe contre l'Église, aboutit à la loi de 1905, elle ne se déleste pas seulement du poids écrasant que le catholicisme exerçait sur l'école et la pensée, elle construit un rapport à la religion qui va séduire de nombreux dirigeants.
Dont Kemal Atatürk qui, à Ankara, dès 1924, va imposer une laïcité d'État à une population qu'il juge abrutie par des siècles d'endoctrinement coranique. En quoi le président Recep Tayyip Erdogan, lorsqu'il pointe un doigt accusateur contre nous, trahit aussi l'héritage du fondateur de la Turquie moderne. Le pacte français est simple : l'État est neutre, aucune religion ne dicte la décision politique, la foi doit s'exprimer de façon discrète dans l'espace public, ce sont la loi et les mœurs qui régissent la conduite des individus dans leurs interactions.
Sur ce plan, la France se traduit par la visibilité du féminin, comme le notait la romancière américaine Edith Warton, dès 1918, admirative de la façon dont les femmes avaient à l'arrière, durant le premier conflit mondial, sauvé la nation quand les hommes étaient au front. Le goût de la conversation entre les sexes, la persistance des rapports de séduction, la coquetterie des passantes dans les rues, voilà ce qui irrite, entre autres, les barbus. Edith Warton serait stupéfaite, aujourd'hui, de voir tant de nos jeunes filles attifées en bonnes sœurs, noyées sous les abayas et les burkinis au nom de Dieu.
Champ de bataille
La laïcité à la française, devenue un champ de bataille d'interprétations opposées, organise la coexistence pacifique entre les cultes mais permet aussi de s'en affranchir. Elle prévient la persécution des fois par l'État mais aussi la persécution des consciences par une religion d'État. Grande différence d'avec le monde anglo-saxon : elle protège les religions, elle nous protège des religions. La loi républicaine est au-dessus de la loi divine, car elle organise l'égalité de tous les citoyens.
Affolement des fondamentalistes : la France est détestée non parce qu'elle opprime les musulmans mais parce qu'elle les libère. Elle offre à chaque croyant la possibilité de vivre sa foi mais aussi d'en changer, voire de l'abandonner ou de se convertir à une autre. L'indifférence en matière de religion devient une option offerte à chacun : terrible perspective pour qui veut imposer rites et ablutions, jour et nuit, de la naissance à la mort.
La protection des minorités est aussi le droit pour chacun de leurs membres de s'en retirer sans dommages, par l'éloignement ou l'oubli, de se forger un destin propre, d'exister à titre de personne privée qui ne se déduit pas de ses racines. C'est la grande différence d'avec le multiculturalisme nord-américain qui rive chacun à sa couleur de peau, à ses origines. La laïcité est aussi le droit, sur le plan religieux, de délaisser la foi de ses parents, voire d'en embrasser une autre. Le chantage à la solidarité ethnique, raciale, religieuse, à la fidélité à l'oumma servent de rappel à l'ordre pour les déserteurs éventuels et bride leur aspiration à la liberté.
N'en déplaise aux bigots du Washington Post, de Fox News, du New York Times, wokistes de gauche ou de droite, toujours prompts à nous faire la leçon, on ne voit pas d'exil massif des musulmans de France vers le Maghreb ou le Machrek. Au contraire. Ils savent que chez nous ils auront la possibilité de se sentir français avant d'être catholiques, athées ou musulmans et pourront reléguer leur croyance à la vie familiale ou dans leur for intérieur, voire la suspendre.
À ce propos, pour tous ceux qui adhèrent encore à la fable et à la farce d'une Amérique terre d'élection de la liberté d'expression, rappelons que pas un journal outre-Atlantique n'a publié les caricatures de Charlie Hebdo. Ils ont vomi sur Charlie même après l'attentat. Les nazis ont le droit de défiler, toutes bannières déployées comme bon leur semble, mais la satire religieuse est bannie. Et depuis que l'administration Trump a ouvert un « bureau de la foi » dans l'enceinte de la Maison-Blanche, les choses ne vont pas s'arranger.
L'islam politique est assiégé
On décrit parfois l'Hexagone comme une forteresse assiégée en proie à un adversaire implacable. On peut renverser la proposition avec autant de pertinence : derrière les vociférations de ses adeptes, l'islam politique est lui aussi assiégé. Nous sommes plus forts que nous le croyons, les fous de Dieu plus faibles qu'ils ne le pensent, car nous les avons déjà gangrenés de l'intérieur. Nous occupons leurs cerveaux, nous hantons leurs âmes et c'est ce qui les enrage. Ne minimisons pas l'extraordinaire séduction qu'exerce encore le mode de vie occidental et spécialement français, contrepartie de l'aversion que d'autres lui vouent.
Combien dans le monde musulman sont aussi gagnés par l'impatience de la liberté, un style de vie qui conjoint l'amour de l'existence et l'accomplissement individuel ? Ce dont ils veulent être libérés, ce n'est pas tant de la foi que du cléricalisme, de la superstition, de la bêtise. Religion et spiritualité sont loin d'être synonymes, on peut être un fidèle mécanique qui répète les mêmes incantations sans les comprendre et suit les observances de ses ancêtres. C'est pourquoi nous ne pouvons pas reculer sur nos principes, prôner, comme beaucoup le recommandent, surtout à gauche, un apaisement qui serait l'autre nom du renoncement. La laïcité ne fonctionne que si toutes les parties en présence jouent le jeu.
Qu'une seule confession se cabre et se dise persécutée et toute la mécanique s'enraye et dégénère en débats byzantins. Notons pour le déplorer combien la gauche, si prompte à bouffer du curé et à dénoncer l'extrême droite, peine à prononcer le mot d'islamisme, redoutant plus que tout de stigmatiser une « minorité opprimée ». Et saluons, avec tristesse, la performance du leader Insoumis, Jean-Luc Mélenchon, qui a réussi devant une commission d'enquête parlementaire, ignorante ou passive, à revendiquer pour sa seule formation tout le catéchisme laïque, lutte contre l'antisémitisme compris. Plus le mensonge est gros, plus il passe.
Il faudra un jour tordre le cou à cette rengaine ânonnée depuis plus d'un siècle selon laquelle nous vivrions en Europe dans un désert spirituel. Y a-t-il un seul continent où les citoyens disposent d'autant d'outils culturels, opéras, théâtres, librairies, bibliothèques, cinémas, où le souci philosophique, l'interrogation sur les fins dernières, est plus développé que chez nous ? La France accorde à ses concitoyens, musulmans, juifs, bouddhistes, agnostiques ou chrétiens, fatigués des incantations, des rituels, la chance unique d'être allégés du fardeau céleste.
Dieu est fatigué
À titre personnel, je n'ai rien contre le prosélytisme religieux s'il s'avance comme une proposition offerte à tous et non comme l'imposition d'un message à prendre ou à laisser, sous peine d'égorgements. La croyance est aussi un marché dont les grandes confessions tentent de prendre une part grandissante : voyez la concurrence entre évangéliques et catholiques romains en Afrique et en Amérique latine. À condition que la prédication emprunte la voie de la persuasion et non celle de la terreur. Toute grande religion est digne de respect dès lors qu'elle est capable de se modifier, comme l'a fait l'Église romaine lors de Vatican II entre 1962 et 1965, de se transformer sans se renier.
Mais Dieu lui-même est sans doute lassé d'être invoqué en permanence par des hommes et des femmes qui bafouent son message, le compromettent avec des passions trop humaines. Quelle présomption de croire qu'on peut insulter Dieu, le blesser ou pire encore prétendre qu'on va le venger, nettoyer dans le sang la souillure du blasphémateur. Qu'on l'adore ou qu'on l'ignore, il demeure, si toutefois il existe, hors de notre atteinte.
L'écrivain américain Saul Bellow, commentant la fameuse expression allemande « Glucklich wie Gott in Frankreich » (Heureux comme Dieu en France), expliquait dans le New York Times du 13 mars 1983 : « Dieu serait parfaitement heureux en France parce qu'il ne serait pas dérangé par les prières, rites, bénédictions et demande d'interprétation de délicates questions diététiques. Environné d'incroyants, Lui aussi pourrait se détendre le soir venu, comme des milliers de Parisiens dans leur café préféré. Peu de choses sont plus agréables, plus civilisées qu'une terrasse tranquille au crépuscule. »
Ce que Paris et plus généralement la France offrent aux étrangers, c'est la possibilité de bien vivre dans le silence ou la discrétion du Divin.
Je ne sais pas si Dieu est grand.
Je pense qu'il est surtout fatigué.

à lire aussi Valentine Zuber : « La laïcité n'est pas une exception française, mais une manière française de séparer l'État et les religions »
à lire aussi Philippe Portier : « La laïcité est redevenue un lieu de conflictualité »

Ucrânia encontrou tesouro contra a Rússia no lugar mais inesperado: locações secretas de filmagens - PH

Ucrânia encontrou tesouro contra a Rússia no lugar mais inesperado: locações secretas de filmagens 

História de Fire Point resume fenômeno ucraniano: criatividade industrial convertida em poderio estratégico e transformada em ator militar fundamental

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PH Mota

Redator

Que a guerra na Ucrânia se tornou o maior laboratório de drones do planeta em termos de combate é indiscutível. Tanto a Rússia quanto, principalmente, a Ucrânia, elevaram esses dispositivos a um patamar que configura uma indústria bélica sem precedentes, colocando as máquinas como o exército do futuro em qualquer conflito.

O que não era tão conhecido era a origem da maioria dos drones ucranianos.

Origem e metamorfose

O que começou há três anos como uma agência de locações e adereços em porões e garagens se transformou em uma indústria bélica em escala quase industrial: a Fire Point, cujo proprietário e executivos vêm do mundo do cinema e da construção de mobiliário urbano, passou da montagem de drones com peças comerciais à produção, segundo seus executivos, de centenas de munições propelidas e de longo alcance em pelo menos trinta locais secretos espalhados pela Ucrânia.

Mas há muito mais, pois a empresa cresceu tanto que se consolidou com contratos na casa dos bilhões de dólares num único ano. Uma transição que reflete a rápida profissionalização e comercialização de iniciativas nascidas do patriotismo e da urgência em fevereiro de 2022, quando oficinas clandestinas improvisadas se tornaram uma resposta eficaz (embora precária e fragmentada) a uma invasão em larga escala.

Produção, design e emprego

Os produtos da Fire Point, como o drone FP-1, são máquinas simples feitas de materiais (poliestireno, madeira compensada, plásticos e fibra de carbono de reciclagem), mas montadas com uma lógica de produção em massa: decolagem assistida por foguete, motor de dois tempos, alcance medido em centenas de quilômetros e ogivas com mais de cinquenta quilos em alguns modelos.

 Seu catálogo também inclui o promissor míssil Flamingo, um dispositivo maior, com motor a jato e autonomia e carga teóricas que, se confirmadas em escala, poderiam reconfigurar a capacidade ucraniana de atingir alvos em profundidade. A filosofia industrial ucraniana aqui é clara: barato, descartável, massivo. A eficiência não exige reprocessamento ou longevidade, apenas que alguns exemplares ultrapassem as redes de defesa e cumpram sua missão específica.

FP-1

Estratégia e efeitos militares

A proliferação dessas munições permitiu à Ucrânia sustentar uma campanha sistemática contra infraestruturas energéticas russas (refinarias e centros logísticos), buscando não apenas um efeito tático, mas também pressão estratégica e influência em eventuais negociações.

multiplicidade de fabricantes nacionais e a adaptabilidade técnica obrigaram a Rússia a enfrentar uma erosão diária de sua aparente imunidade aérea, forçando-a a realocar recursos defensivos e a considerar a guerra de baixo custo como um vetor decisivo. 

A ascensão meteórica da Fire Point não ocorreu sem controvérsias: denúncias públicas e auditorias apontam para licitações obscuras, ausência de negociações de preços obrigatórias, questionamentos sobre a qualidade técnica inicial e o possível envolvimento de atores ligados à mídia e ao meio empresarial próximos ao poder.

A Agência Nacional Anticorrupção investigou ligações com figuras associadas ao círculo presidencial e há apelos parlamentares para investigar preços, especificações e a destinação de lucros multimilionários. Apesar disso, a narrativa pública combina suspeita e exaltação: heróis nacionais e empresários estratégicos que reforçaram a capacidade defensiva, enquanto ativistas e analistas exigem mais controles e transparência nos contratos de guerra. 

 Industrialização e ecossistema

 O fenômeno não é um caso isolado, mas o centro de uma revolução industrial: milhares de empresas, centenas focadas em drones de longo alcance e dezenas competindo por contratos, atraem fundos estrangeiros, parceiros e projetos de joint venture. 

Órgãos estatais criam incentivos, enquanto fundos internacionais (como o recente veículo norueguês-ucraniano) mostram que o ecossistema está começando a se profissionalizar e a buscar legitimação comercial e tecnológica além da emergência. Para a defesa europeia e norte-americana, a Ucrânia agora oferece uma experiência única em missões não tripuladas e desenvolvimento rápido, o que desperta grande interesse tanto militar quanto industrial.

Sem dúvida, o equilíbrio levanta dilemas: a economia de guerra interna reduz a dependência de doações de aliados e aumenta a capacidade ofensiva, mas levanta questões sobre controle democrático, prestação de contas e o risco de que os lucrativos negócios de guerra se perpetuem além da necessidade estratégica.

Além disso, a proliferação de sistemas baratos e massivos exacerba a natureza assimétrica do conflito e apresenta riscos de escalada e responsabilidade difusa por objetivos seletivos e danos colaterais.

Perspectivas

Em suma, a história da Fire Point sintetiza o fenômeno ucraniano: a criatividade industrial (em muitos casos, não há outra escolha) convertida em um músculo estratégico, uma indústria que emergiu do voluntariado e se transformou em peça chave do aparato militar, mas também em foco de controvérsia por sua velocidade, suas margens e a opacidade típica de um país em guerra.

O desafio futuro é duplo: consolidar as capacidades tecnológicas e produtivas que continuam a ter um bom desempenho em combate e, ao mesmo tempo, inserir esse setor próspero em estruturas de governança e transparência que impeçam que a eficiência bélica evolua para economias de corrupção ou captura política.

 

'Memórias', do embaixador Marcos Azambuja, é uma aula de diplomacia - Elio Gaspari (FSP)

 Itamaraty

 'Memórias', do embaixador Marcos Azambuja, é uma aula de diplomacia

Embaixador foi um grande contador de histórias, engraçado, irreverente e até picante

Azambuja fala mais de suas ideias e das ideias dos outros

Elio Gaspari, Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada"

Folha de S. Paulo. 14/12/2025

O Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) acaba de publicar "Memórias", do embaixador Marcos Azambuja (1935-2025). São 368 páginas de longas entrevistas dadas a Gelson Fonseca Jr., Monica Hirst e Alexandra de Mello e Silva.

É uma aula de diplomacia e serviço público, na voz de um diplomata, ex-secretário-geral do Itamaraty, embaixador em Buenos Aires e Paris. Quando os diplomatas rememoram, falam mais de si. Azambuja fala mais de suas ideias e das ideias dos outros. Faz isso com uma certa desembargadorização (palavra que ele usava).

O embaixador Marcos Azambuja durante palestra no Cebri, no Rio de Janeiro - Tomaz Silva - 18.jul.24/Agência Brasil

Azambuja foi um grande contador de histórias, engraçado, irreverente e até picante. Nas entrevistas fez poucas concessões à leveza. Tratando de Lula, disse:

"Eu acho que um dia o Lula, como se fosse um rei francês, deverá ser numerado: Lula 1º, Lula 2º, Lula 3º, Lula 4º. O Lula que chegou ao poder é o Lula 5º ou o Lula VI".

Falando do general João Baptista Figueiredo:

"O fim do governo Figueiredo é um dos momentos mais melancólicos da história do Brasil. Aquele homem fisicamente deteriorado, cercado de pessoas que o manipulam em certa parte. É um Brasil diminuído."

Sua irreverência impediu que fosse definido como um diplomata de vitrine. Suas memórias revelam o pensador que havia naquele personagem divertido.

Estranho às modas da Casa, via o Brasil à sua maneira:

"Vou tentar resumir tudo o que eu tenho pensado em política externa. Eu acredito que o Brasil tem poder suficiente para participar dos jogos exclusivos de desenho do mundo, mas não tem a capacidade de resistir a essas tendências. Em outras palavras, eu não creio que o Brasil tenha poder suficiente para criar um obstáculo a nada que vá nascer. O que ele tem é capacidade de influência de alguns aspectos daquilo que está nascendo. Portanto, não é de fora, se juntando a um coro que será inócuo, mas sim de dentro, influenciando num bom sentido."

Em 1982, o governo de Ronald Reagan queria invadir o Suriname.

O Brasil condenou a ideia, se ofereceu para acalmar o ditador local e avisou:

"O Brasil não gosta de tropas na sua fronteira".

Falando do prazer que teve na embaixada em Paris, matou a pau:

"Na França, quase todo brasileiro vai expressamente para não fazer nada".

 

·                https://www1.folha.uol.com.br/colunas/eliogaspari/2025/12/memorias-do-embaixador-marcos-azambuja-e-uma-aula-de-diplomacia.shtml

 

Comentários

Marcos BenassiHá 7 horas

Que diferença, hein, sêo Elio? Hoje, o Brasil põe algum limite no "soft Power" (que de mole, tem nada não) gringo, contendo suas biguitéquis e dá exemplo, falando "pra fora", à Austrália. Diplomacia é treco misteriosíssimo!

 

Maria LopesHá 9 horas

O embaixador Azambuja escreveu vários artigos para a Revista Piauí. Ótimos. As Memórias vão para a lista .

 

 

Com disputa entre Poderes, Brasil vive baderna institucional - CHRISTIAN LYNCH (FSP)

Com disputa entre Poderes, Brasil vive baderna institucional

CHRISTIAN LYNCH

FSP 13.12.2025 

[RESUMO] Em análise da conjuntura política do país, autor argumenta que reconstruir um modelo de governabilidade estável se tornou inviável, já que cada Poder busca reafirmar a sua supremacia sem um pacto mínimo de convivência. Enquanto o Executivo busca recuperar seu poder de agenda, o STF resiste a perder espaço, a extrema direita bolsonarista tenta voltar à Presidência e o centrão se empenha em consolidar sua hegemonia no Congresso.

O artigo 2º da Constituição afirma que os Poderes da República são "independentes e harmônicos entre si". Trata-se de uma quimera: se são independentes, não são automaticamente harmônicos e, se pretendem sê-lo, precisarão moderar essa independência.

A harmonia institucional não decorre do texto constitucional, mas de modelos de governabilidade criados a partir de sua interpretação — modelos capazes de coordenar expectativas, prerrogativas e ambições de cada Poder, criando previsibilidade em suas relações. Quando esses modelos existem, o regime constitucional respira; quando se desfazem, o país entra em espiral de instabilidade.

Ao longo de dois séculos, tais modelos variaram conforme conjunturas e correlações de força. O chamado modelo regressista ou saquarema, criado por Bernardo Pereira de Vasconcelos, estabilizou, nos anos 1840, um sistema parlamentar em que o Executivo imperial impunha direção ao nascente Estado nacional. A política dos governadores, inaugurada por Campos Sales em 1900, traduziu-se em um arranjo que garantiu ao Executivo republicano a governabilidade coordenando as oligarquias estaduais.

Já no período pós-1988, o presidencialismo de coalizão organizado por Fernando Henrique Cardoso ofereceu, a partir de 1994, uma estrutura relativamente estável de trocas institucionais e permitiu previsibilidade à condução política. Nenhum desses arranjos era idílico, mas todos domesticaram o conflito e contiveram a instabilidade.

Há dez anos, contudo, o Brasil vive sem modelo eficiente de governabilidade. O que funcionara desde os anos 1990 — o presidencialismo de coalizão com dominância do Executivo — entrou em colapso. Assistimos a Poderes que se digladiam, se sabotam e tentam se anular mutuamente, em um ambiente em que a possibilidade de golpe, alto ou baixo, reaparece sempre que um deles se percebe acuado.

A República funciona como uma permanente guerra de trincheiras, sem regras estáveis, arbitragem reconhecida ou horizonte de acomodação. Nenhum ator reconhece limites estáveis ao exercício de sua autoridade.

A instabilidade crônica explodiu com a Lava Jato, que inaugurou aquilo que chamei de revolução judiciarista: uma investida de inspiração neoconstitucionalista que atribuiu ao Judiciário um protagonismo sem precedentes, convertendo-o de árbitro em ator político central. O próprio modelo de governabilidade, o presidencialismo de coalizão, passou a ser combatido como intrinsecamente corrupto.

Desfeita a lógica que coordenava expectativas e administrava conflitos, instalou-se a luta institucional: decisões judiciais com pretensão de dirigir o país, um Ministério Público investido da missão de purificar a República e um sistema político acuado. O equilíbrio possível implodiu, e nada foi colocado no lugar.

O Legislativo dominado pelos partidos da direita institucional, vulgarmente chamados de centrão, reagiu, tentando neutralizar o Judiciário apoderando-se do Executivo. O impeachment de Dilma Rousseff deve ser compreendido nesse contexto, não como mero desdobramento de crise econômica ou dos protestos de rua, mas como operação de reposicionamento institucional do Congresso contra a preeminência do STF (Supremo Tribunal Federal) e da Lava Jato.

Apoiado por Gilmar Mendes, Michel Temer desmontou, gradualmente, os dispositivos de poder acumulados por Curitiba. Foi o "termidor" da revolução judiciarista. Não por acaso, o Tribunal Superior Eleitoral, então presidido por Gilmar, absolveu Temer e o manteve no poder: por "excesso de provas".

A eleição de Jair Bolsonaro representou um baque inicial nesse processo. Bolsonaro jamais compreendeu a máquina do Estado e nunca formulou diagnóstico realista da conjuntura. Seu populismo reacionário era guiado pela ignorância e pelo negacionismo, travestidos de senso comum conservador. Apostou em um bonapartismo retrógrado, que restauraria a ditadura militar por meio de um cesarismo de WhatsApp.

O fracasso o jogou no colo da classe política que dizia combater. Ao enterrar a Lava Jato e alugar o governo ao centrão para sobreviver, entregou-lhe as chaves do Orçamento, abrindo-lhe caminho para a captura do Executivo. Simultaneamente, a extrema direita declarou guerra ao STF, produzindo um ambiente de hostilidade permanente que o centrão soube instrumentalizar — ora como ameaça, ora como biombo.

Realizou-se então metade do sonho do centrão: estabelecer, no Brasil, por uma espécie de parlamentarismo bastardo, a hegemonia de uma oligarquia congressual autorreprodutível, financiada pelo Fundo Eleitoral e pelas emendas parlamentares. Nesse sentido, a eleição de Lula, em regime de governo minoritário, não foi má para o bloco. O centrão não queria a autocracia estúpida de Bolsonaro, que ameaçava inclusive seu espaço; queria um Executivo fraco, dependente, obrigado a negociar sua sobrevivência cotidiana com um Congresso hegemonizado por lideranças conservadoras.

A debilidade estrutural do governo, somada à distância ideológica entre a média do Executivo (social-democrata) e a média do Parlamento (conservadora), criou o ambiente ideal. Pôde ocupar metade da Esplanada e entregar apoio apenas seletivo, jamais estrutural, à agenda presidencial.

Na impossibilidade ou na falta de desejo de assumir regime parlamentarista, o centrão limita-se a conservar e, quando possível, ampliar a hegemonia adquirida com a apropriação do Orçamento, o controle da agenda e a expansão da própria base parlamentar. Opera como polvo de múltiplos tentáculos, ajustando simultaneamente sua relação com três polos: a extrema direita bolsonarista, o STF e o Executivo fragilizado.

Apoia o STF contra o golpismo mais radical — porque o golpismo ameaça também o Congresso —, mas resiste à anistia ampla dos golpistas, porque não deseja recolocar Bolsonaro no jogo de 2026. O centrão quer a extrema direita como força útil, não dirigente. Por isso, deixa ao STF o serviço sujo de punir deputados golpistas, preservando-se do desgaste perante o eleitor radicalizado.

É nesse contexto que se compreende o acordo informal entre governo e STF. Separado do Congresso por distância ideológica incontornável e destituído dos instrumentos tradicionais de cooptação, Lula buscou no STF alguma compensação.

O tribunal, por sua vez, deseja punir os golpistas que tentaram destruí-lo e prevenir que um novo ciclo legislativo, especialmente no Senado, organize o impeachment de ministros em 2027. Daí o "judiciarismo de coalizão": recorrer ao tribunal, sobretudo aos ministros mais novos, como Flávio Dino, para conter perdas legislativas, preservar parte do poder orçamentário e impor limites ao apetite predatório do Congresso. É aliança de circunstância entre dois Poderes em posição defensiva: o Executivo, fragilizado, e o STF, desafiado.

Mas o centrão reage também a essa aproximação. Seu segundo grande objetivo — além de preservar a autonomia orçamentária que garante sua reeleição indefinida — é a absoluta impunidade de seus membros. Não basta controlar o Orçamento, é preciso controlar o alcance das decisões judiciais que atinjam deputados e senadores, golpistas ou corruptos. Para manter coesão e eminência, os líderes precisam assegurar aos parlamentares que seus mandatos dependerão exclusivamente deles. Ou seja, blindagem corporativa.

Quando a Câmara se recusa a cassar o mandato de Carla Zambelli, afrontando o STF, envia o recado: nenhum freio judicial será aceito quando tocar nas condições de autoproteção da oligarquia. A ordem de Alexandre de Moraes ao presidente da Câmara para cassar a deputada, no dia seguinte, evidencia o caráter particularmente agressivo da guerra entre Legislativo e Judiciário.

Em síntese, reconstruir um modelo tornou-se inviável porque cada Poder disputa supremacia. O Executivo tenta recuperar o poder de agenda do antigo presidencialismo de coalizão. O STF, fortalecido desde o mensalão, resiste a perder espaço. A extrema direita bolsonarista tenta voltar ao poder para destruir o sistema que a limita. O centrão empenha-se em consolidar sua hegemonia e neutralizar ou cooptar o Judiciário. Mais: quer recuperar o Executivo e a administração pública, não mais pelas mãos disfuncionais e golpistas do clã Bolsonaro, mas por meio de um candidato seu.

Essa assimetria impede um pacto mínimo de convivência: cada Poder tenta recuperar, preservar ou expandir seu espaço institucional.

A hegemonia parlamentar existe, mas não constitui modelo de governabilidade porque não é reconhecida como legítima pelos demais atores. Um regime pressupõe aceitação mútua, previsibilidade e deferência recíproca. Não foi o que vimos nos últimos dias — ao contrário.

Diante das eleições que se avizinham, o STF, o bolsonarismo e o governo atacaram o centrão quase simultaneamente e por motivos distintos. Contra o alijamento da família Bolsonaro de seus planos eleitorais, a extrema direita lançou a candidatura presidencial do filho mais velho do ex-presidente, agora presidiário. O STF também moveu suas peças: diante da ofensiva para promover impeachment de ministros em 2027, Gilmar Mendes alterou por liminar a interpretação da lei para blindar todo o tribunal. Já o governo fez o que pôde: segurou o pagamento de emendas, condicionando-o à aprovação de sua agenda.

Pressionado por todos os lados, o centrão distribuiu como prêmios de consolação seus presentes de fim de ano: ao bolsonarismo, a redução de penas dos envolvidos no golpismo, mas não a anistia; ao STF, o avanço da nova lei de impeachment, dificultando a remoção de ministros; ao Executivo, o andamento do projeto de redução da jornada laboral de seis para cinco dias e o restabelecimento do texto-base do projeto antifacção.

Em cada movimento, inclusive na proporção em que cedeu, porém, o centrão reafirmou sua condição a partir do Congresso como árbitro da política nacional. Montesquieu pode estar no inferno, mas não há dúvida sobre quem está no céu —ou quase: o centrão.

Reconstruir um modelo de governabilidade a partir do texto constitucional não é tarefa simples. É preciso algum consenso sobre o destino institucional —consenso distante, especialmente da extrema direita, empenhada em destruir a própria Constituição. O mero triunfo de qualquer dos três Poderes não parece oferecer automaticamente qualquer resolução duradoura da crise.

Do lado do Executivo, mesmo que Lula recuperasse parte das prerrogativas executivas do antigo presidencialismo de coalizão, isso não resolveria o problema: nenhum modelo anterior de governabilidade atribuía ao STF papel político de relevo. Embora o judiciarismo tenha sido constante na República, o tribunal jamais foi protagonista; tampouco atuou como poder moderador informal —papel, como se sabe, indevidamente exercido pelas Forças Armadas.

Por outro lado, a aceitação pura e simples da pretensão do STF como ator central não tem como resolver a situação. Há um problema de desenho institucional na Constituição, que torna o tribunal ao mesmo tempo órgão de cúpula do Judiciário e Corte constitucional. A Corte não pode ser árbitro e parte interessada ao mesmo tempo.

Para piorar, sua pretensão de supremacia tem sido aparentemente utilizada por determinados ministros para o exercício de práticas pouco republicanas, para não dizer corruptas. Daí que, por receio de punição ou simples arrogância dos honestos, muitos deles resistam a se submeter a códigos éticos de conduta e, principalmente, a qualquer possibilidade de controle externo.

Por fim, a formalização da hegemonia do centrão em sistema semipresidencial parece inteiramente inviável. O STF deseja a mudança do sistema, supostamente o bloco também, mas há resistência intransponível da esquerda hoje no governo, historicamente presidencialista.

Além disso, há dúvidas sobre a constitucionalidade de mudança sem plebiscito ou referendo, hipótese em que ela provavelmente seria novamente repelida, agora pela terceira vez. Na dúvida, a direita prefere ficar como está: mandando sem responsabilidade enquanto sonha em eleger seu próprio presidente.

Em um quadro como esse, a tendência sistêmica a longo prazo seria a estabilização oligárquica: o famoso acordão preconizado por um notório centrônico da década passada, "com o Supremo, com tudo". Em outras palavras, blindagem geral.

Mas essa estabilização tampouco garante estabilidade. A insatisfação crescente com a mais baixa qualidade da democracia fatalmente alimentará novas candidaturas antissistema: outro Bolsonaro, um Pablo Marçal, qualquer figura disposta a capitalizar o ressentimento acumulado. O arranjo oligárquico evitaria a quebra explícita, mas produziria uma erosão silenciosa que fragilizaria instituições, preparando terreno para novas aventuras antidemocráticas.

Avançamos, assim, para 2026. Nesse clima de baderna institucional e ideológica, chegam à mesa do eleitor os pratos do banquete eleitoral: o facho-reacionarismo da extrema direita, sempre pronto a vestir o manto da resistência à "tirania" do STF e do "comunismo", a democracia social da centro-esquerda, prometendo governar com poderes que já não possui, e o conservadorismo oligárquico centrônico, cada vez mais senhor do jogo.

Bom apetite.


The speed of the Russian offensive in Ukraine is the slowest of any war in the last 100 years - The Wall Street Journal

The speed of the Russian offensive in Ukraine is the slowest of any war in the last 100 years - The Wall Street Journal.

Putin is trying to portray the actions of the occupying army as an "inevitable victory," and Donald Trump seems to share this view. But the Ukrainian armed forces and independent experts say that the reality is quite different:

➡️ The Russian offensive is slow, and casualties are high. The speed of the advance is lower than in almost all major military campaigns of the last century, even compared to the Battle of the Somme in 1916, when the Allies pushed the Germans back 10 km.

➡️ The Russian army reached Pokrovsk, 8-10 km away, in August-September 2024, but the first groups of soldiers didn't enter the city until the end of October 2025—9-10 months longer than the Allies took at the Somme. 

➡️ Russian army documents state that the Russians plan to breach the fortifications at a rate of 1.5–3 km per day, but in reality, they are advancing at approximately 1.5 km per month.

Instead, Moscow is actively using disinformation and fake maps to influence foreign public opinion and Ukrainian society, the WSJ concludes.

Only Trump is stupid enough to believe everything the Russians say.

https://x.com/jurgen_nauditt/status/1999474879381361099?s=20


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