domingo, 1 de julho de 2012

China-Brasil: uma relacao assimetrica - texto PRA (2005)

Desde o início do governo Lula registrei os imensos equívocos e as ilusões ingênuas (e vamos enfatizar essa redundância) que os companheiros no poder mantinham em relação à China, seu governo e suas orientações de política externa.
O texto que segue abaixo, no entanto, permaneceu inteiramente inédito, até agora, pois se tratava apenas de um conjunto de notas para desenvolvimento posterior. Acredito que elas possam sinalizar mais claramente meu pensamento sobre a questão.



A China e o Brasil: notas sobre uma relação assimétrica

Notas para desenvolvimento
Paulo Roberto de Almeida (11-13 maio 2005)

1. Sobre a China:
A China não tem e não quer ter parceiros, estratégicos ou de qualquer outro tipo.
A China é, para todos os efeitos, o seu próprio, e único, parceiro; ela quer continuar assim e acha que se basta a si mesma.
A China sempre foi uma nação sozinha, isolada e solitária, tanto nos contextos regional e internacional, como do ponto de vista de seu próprio desenvolvimento econômico e social, historicamente baseado num desperdício inacreditável de homens e de recursos materiais, com a elite dirigente consumindo esses fatores sem controle de ninguém e de nada, nem do próprio meio ambiente.
Esse processo continua e deve continuar a ocorrer do mesmo jeito, hoje talvez até de forma ainda mais intensa, já que ela pode “mobilizar” recursos de outros países.
A China produziu, em eras passadas, algumas poucas e boas idéias, teve um mandarinato relativamente eficiente, em termos de “burocracia weberiana” e se tornou a maior economia planetária com base numa espécie de entropismo míope. Mas até o século 18, pelo menos, ela continuou a ser a maior economia planetária, não tanto pelas interações (que eram poucas), mas pela sua própria “massa atômica”.
Quanto ela deixou de ter idéias, ou quando as idéias dos outros foram mais poderosas, pois que apoiadas em canhoneiras, ela foi humilhada, dominada e esquartejada. Isso feriu fundo a auto-estima e o orgulho nacionais dos chineses.
Eles conseguiram, depois de décadas de lutas (mais intestinas do que contra os inimigos externos, pois que ninguém consegue dominar a China), reverter a decadência e tomar novamente seu destino em mãos.
Não tem a mínima importância histórica, ou estrutural, que essa retomada tenha sido feita sob o domínio do comunismo, um modo de produção absolutamente “passageiro” na história milenar da China.
Com comunismo ou socialismo de mercado, o novo mandarinato de burocratas e de membros da nova nomenklatura trabalha para confirmar o destino secular da China, que é o de novamente se tornar a maior economia planetária e ditar suas regras para os “bárbaros” do exterior.
A China está operando essa volta a um lugar de preeminência econômica no planeta (a segurança militar é mera decorrência disso), mas os atuais imperadores e mandarins têm consciência de que ela não mais poderá fazer isso isoladamente, como ocorreu até o século 18, pois as condições do mundo mudaram.
A China assumiu plenamente o conceito de interdependência econômica global, mas como ocorre com o famoso moto orwelliano, num mundo totalmente interdependente, alguns são mais interdependentes do que outros.
A China quer e vai ser interdependente à sua maneira, isto é, acomodando-se a regras às quais ela não mais pode se furtar, mas interpretando-as à sua maneira, e distorcendo-as para seu melhor conforto e segurança. Isto se aplica em quase todos os terrenos de interesse substantivo, mas especialmente às regras de comércio internacional e de investimentos estrangeiros.
A China não pretende à dominação do mundo, mas ela não pretende mais que o mundo, ou seja, o círculo das superpotências, a domine mais. Isso não vai ocorrer, e a China sabe que tem de conviver com as superpotências, mas não quer se submeter às regras existentes (que aliás nem são ditadas por essas superpotências, mas decorrem do processo de globalização capitalista).
A preocupação principal dos atuais imperadores e mandarins chineses é assegurar emprego (e, portanto, comida) a meio bilhão de chineses pobres, que podem, à falta de condições mínimas (mas mínimas mesmo) de existência, perturbar a paz no Império do Meio, e com isso afetar o poder e a dominação dos atuais dirigentes.
Etapa importante nesse processo é transformar a China na principal fábrica planetária, aliás a única maneira de acomodar algo como 400 ou 500 milhões de chineses que precisam de emprego (e que não os terão nem na agricultura nem nos serviços).
Como ela só pode fazer isso construindo o seu próprio capitalismo manchesteriano (que certamente deixaria Engels de queixo caído), a China PRECISA destruir empregos no resto do mundo, pois essa é a única condição de sobrevivência de algumas dezenas de milhões desses chineses “flutuantes”. (…)
Por coincidência, essa é também a “missão histórica” que lhe foi assignada, atualmente, pela globalização capitalista, um processo impessoal, não controlado por nenhum país ou conjunto de corporações, mas que corresponde à “lógica” do sistema atual de alocação de investimentos e de organização espacial da produção de mercadorias.
Como a China trabalha com aportes ilimitados de homens e capital (com alguma limitação em outros recursos produtivos, como os de know-how e ciência básica), ela não terá nenhuma dificuldade em manter esse ritmo alucinante de destruição de empregos em todo o resto do mundo pelas próximas duas gerações pelo menos (ou seja, pela próximo meio século).
A China está ascendendo rapidamente na escala de agregação de valor, não apenas publicando exponencialmente em revistas científicas, mas passando da simples cópia e adaptação tecnológica para a inovação completa, já tendo chegado também ao design e marcas. Seu catch-up promete ser ainda mais impressionante do que o do Japão e da Coréia do Sul e provavelmente não haverá nada comparável na história econômica mundial.
Com tudo isso, a China vai agir exatamente como sempre agem os centros da economia mundial: organizando sua própria periferia de “abastecimento”, que ela espera poder controlar da forma como fazem os imperialismos modernos: não pela via extrativista, mas por redes de negócios centrados em circuitos financeiros próprios, chineses.

2. Sobre o Brasil:
O Brasil como “bric” é um tijolo meio mole, pois ele vai demorar mais do que os outros “brics” a transformar ciência em tecnologia, estando ainda preso a uma imensa “bola de ferro” feita de finanças precárias, um mercado de crédito insuficiente, um eforço de poupança desviado por um Estado perdulário e uma estrutura tributária absolutamente desadaptada a uma economia exportadora, além de irracional mesmo do ponto de vista do mercado interno. Os principais problemas do Brasil não são de ordem tecnológica ou mesmo empresarial, e sim de natureza educacional e estatal, ambos deficientes ao extremo.
Esses problemas são de natureza essencialmente política, pois parece haver uma notória deficiência de quadros esclarecidos no sistema político brasileiro: os representantes eleitos não conseguem se por de acordo sobre um diagnóstico simples da realidade brasileira e sobre as vias de superação dos problemas mais cruciais. Mesmo se conseguissem, não conseguiriam se por de acordo sobre um reordenamento dos gastos públicos e dos investimentos.
Não ajuda o fato de a classe política brasileira ser muito diversificada e heterogênea, não sendo mais composta apenas de coronelões e políticos profissionais, mas também de representantes corporativos, de mandarins sindicais, de aventureiros de toda espécie.
Do ponto de vista da sua inserção econômica mundial, o Brasil continuará deficiente, haja vista a dificuldade de abertura aos investimentos e aos intercâmbios de todo tipo. A classe política brasileira ainda pretende construir o “capitalismo nacional”, exatamente como nos anos 1950. O mundo não vai esperar até que isso seja feito, para então “acolher” o Brasil: ele vai continuar sem o Brasil.

3. O Brasil e a China: grandes promessas, tristes realidades
A China quer o Brasil como abastecedor prioritário de produtos alimentícios e de outras commodities para sua gigantesca máquina industrial. Ela pretende inundar o Brasil e já o está fazendo, de produtos manufaturados correntes.
O Brasil não conseguirá bater a China no terreno da indústria tradicional, isto é, aquela da segunda revolução industrial: ele será fragorosamente batido, como estão sendo todas as demais potências industriais.
A designação da China como “parceiro estratégico” é absolutamente inconseqüente do ponto de vista da estratégia chinesa; trata-se de uma decisão unilateral, gratuita e, portanto, irrelevante do ponto de vista de “como devem ser as coisas”, exatamente, entre o Brasil e a China.
Não importa se essa história começou com um acordo de parceria tecnológica para o lançamento de satélites por foguetes chineses: o Brasil poderia ter estabelecido a parceria com outros países, e a situação de fato não mudaria muito. Talvez o Brasil pudesse até ter “comprado” lançamentos mais baratos e mais interessantes em parceria com outros países. Toda a retórica da cooperação científica e tecnológica, não passa disso, uma retórica.
As indústrias brasileiras, se desejarem sobreviver no mundo manchesteriano-chinês, deverão fazer como todas as outras: avançar na concepção e desenho e mandar fabricar na China, só assim elas conseguirão sobreviver enquanto empresas, do contrário perecerão corpos e bens. Vão-se os operários e sobram os engenheiros. Quanto mais cedo esse processo começar, tanto melhor para as empresas brasileiras candidatas à sobrevivência no mundo darwinista chinês.
Alguma renda extra será possível de obter nos projetos conjuntos de fornecimento energético alternativo a partir do Brasil e nos produtos intensivos em recursos naturais, como corresponde às vocações ricardianas do Brasil.
Seria melhor que o Brasil não fizesse grandes “planos estratégicos” em relação à China, pois isso não serve para muita coisa: a China fará aquilo que ela pretende fazer segundo o seu interesse nacional, e não se deixará demover por nenhuma promessa de “aliança estratégica” ou qualquer outro arranjo que contemple interesses supostamente simétricos. Melhor fazer aquilo que corresponde ao nosso próprio interesse nacional, sem esperar correspondência ou resposta de qualquer parceiro que seja, em especial da China.
Incidentalmente, a concessão do status de “economia de mercado” não deve alterar muito o panorama geral e seu desenvolvimento inexorável: ela só atrapalha os desejos protecionistas de alguns ramos da indústria brasileira, tendo uma incidência setorial em mercados de trabalho específicos. Talvez constitua, aliás, um exercício útil do ponto de vista do cenário de “serial killer” que virá mais adiante, quando a China for plenamente integrada ao regime gattiano normal (o que ocorrerá até 2015).
A concessão desse status foi um favor diplomático absolutamente gratuito e unilateral, sem qualquer vantagem de caráter recíproco, e uma renúncia inacreditável de soberania. Ela também foi um absurdo do ponto de vista político, mas representou apenas uma antecipação do que ocorrerá inexoravelmente no terreno econômico. Ela apenas obriga as empresas brasileiras a correrem mais rápido, o que talvez não seja uma coisa má, pois elas estavam se acostumando com muita proteção e nenhum desafio, desde 1995, pelo menos.

Paulo Roberto de Almeida, São Paulo-Bogotá, 11-12 de maio de 2005.

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