Crossing the Empire, 2014 (6)
Leituras no Colorado
Paulo Roberto de Almeida
Ler é a minha segunda natureza, como
todo mundo sabe. Talvez não, acredito mesmo que seja a primeira, pois não tenho
a menor ideia de qual seria a minha natureza profunda, minha essência
primordial, como diriam os filósofos (não me perguntem quais). Então fiquemos
com essa única que já me basta: como sou um produto dos livros, vivo com
os livros, para os livros, nos livros e pelos livros, e assim vou indo pela
vida, sem tropeçar em nenhuma pedra literária, pois sei escolher o que leio,
embora leia de tudo. Ah, sim: uma vez bati o carro atrás de um outro, coisa
pouca, pois estava lendo e dirigindo, obviamente. Mas é que eu estava recém
começando meu doutoramento, em Berna, e tinha recebido uns livros que tinha
encomendado de uma livraria americana pelo correio: apressadinho, já fui
desembrulhando no carro para ver o que eu tinha recebido, e pimba: o gelo do
inverno fez meu carro derrapar numa freada brusca em semáforo. Não me lembro o
que aconteceu depois, mas me lembro perfeitamente de ter emprestado um dos
livros para um amigo, que nunca mais me devolveu. Ah, esses amigos
traiçoeiros...
Bem, nesta manhã de terça-feira, 2
de setembro, Carmen Lícia e eu fomos visitar as esculturas em vidro do Chihuly,
no jardim botânico de Denver, como relatei no post anterior. Já de saída, na
lojinha, enquanto Carmen Lícia ficava remexendo em coisas bonitas (mas acabou
comprando só um magneto), eu fiquei vendo os livros, como sempre. Coisas da
natureza, botânica, jardinagem, conservação, essas coisas chatas da
sustentabilidade, nada para mim. Mas, claro, tinha algo, este livro: The
Flower of Empire, de Tatiana Holway, a história da vitória régia.
Nada a ver com o Brasil e o nosso Amazonas, e
sim com a Guiana Britânica, que pelo mapa do livro era muito maior do que ficou
posteriormente, com um grande pedaço hoje pertencente ao Brasil, e um enorme
pedaço que a Venezuela abocanhou depois. Enfim, foi um explorador britânico
quem descobriu aquela enorme flor num rio amazônico, em 1847, teve o maior
trabalho para desvencilhá-la de todas as suas raízes, embrulhar tudo (maneira
de dizer) e mandar para a capital do império, no mesmo ano em que a Rainha Vitória
começa o seu longo reinado de mais de meio século. Em sua homenagem, a planta
ficou sendo assim conhecida, e até serviu de inspiração para a construção do
Crystal Palace em Londres, que serviu de local para a primeira exposição
universal, em 1851. Toda essa história está detalhadamente documentada e
contada no livro dessa escritora formada em ciências naturais, com um bom
suporte iconográfico, entre eles o mapa da Guiana ampliada.
A esse propósito, os colegas do
setor sabem que a Venezuela reivindica, há muito tempo, praticamente metade da
Guiana, toda a sua extensão ocidental, o que deixaria o país bastante
diminuído. O Coronel Chávez, aquele botocudo do socialismo do século 18,
ameaçou invadir a Guiana, uma vez, tendo sido dissuadido pelo Brasil (isso foi
antes dos companheiros chegarem ao poder, ainda bem). A razão da nossa
“ingerência” no assunto é muito clara. Na arbitragem feita mais de cem anos
atrás a propósito da disputa territorial entre o Brasil e a Grã-Bretanha, na
qual nosso árbitro foi o infeliz Joaquim Nabuco – que saiu amargurado da
“solução” pró-britânica dada pelo rei italiano –, o Brasil acabou consentindo
na demarcação injusta para nós (com base nos materiais preparados pelo barão do
Rio Branco), apenas para não criar uma nova contenda territorial, pois já
tínhamos o caso ainda em curso do Acre, com a Bolívia. A partir dessa
“derrota”, o Barão decidiu nunca mais recorrer à arbitragem para a solução dos
casos pendentes, passando à negociação direta. Mas, quando o botocudo do Chávez
ameaçou invadir a Guiana, o Brasil de FHC (não ele, mas os diplomatas que
trataram do caso, que não eram os amigos do Chávez, nem os amadores que vieram
depois) disseram que se o Chávez invadisse aquelas terras ele estaria invadindo
território brasileiro, e nesse caso o Brasil seria obrigado a não aceitar mais
o laudo do rei italiano e novamente declarar seus direitos sobre aquele imenso
território. Apenas com isso Chávez recuou, mas não sei se algum novo maluco por
lá, e mais amadores do nosso lado fazem a situação desandar novamente.
Bem, isso não está no livro,
obviamente, apenas sou em quem lembro, pois enquanto eu folheava o livro, e
contemplava o mapa e as outras ilustrações, eu meu lembrei dessa história
antiga e atual.
Concluo: a vitória régia não foi roubada do
Brasil pelos ingleses, mas por um inglês de um território inglês. E digo isso
porque até hoje alguns historiadores improvisados ficam falando do roubo da
hevea brasiliensis pelos ingleses, como se todo mundo não praticasse esse tipo
de “empréstimo” natural. A unificação alimentar, animal e vegetal do mundo
sempre se fez à base de empréstimos voluntários e involuntários. O café, ao que
se saiba, foi trazido ao Brasil por um português que o buscou numa das Guianas,
onde tinha chegado trazido por alguém das costas da África. Temos centenas,
milhares de espécies que cruzam os continentes, algumas sendo verdadeiras
pragas no novo ambiente. Exotismo sempre pode dar errado, como no caso dos
companheiros.
Mas divago. Deixem-me falar agora das duas
outras leituras que fiz, numa livraria de Boulder, onde estivemos pela tarde.
Comecei pela estante de economia, mas acabei
indo para a de história, e retirei dois livros para ler no café. O primeiro é o
último de Eric Hobsbawm, uma coleção de ensaios culturais, sobre o mundo
burguês, vários deles inéditos em inglês, com várias conferências feitas na
Áustria: Fractured Times: Culture and Society in the Twentieth Century
(NY: The New Press, 2014).
Fiquei lendo várias partes, entre elas a
introdução, partes de ensaios nas suas três partes, e o último, sobre o mito do
cowboy americano. Todos os ensaios revelam a cultura clássica da Europa
central, adquirida por Hobsbawm em sua juventude, e não têm aquele ranço
marxista de seus outros livros de história. Eu, que conheço bem a obra de
Hobsbawm, o considero um grande historiador, com alguns senões aqui e ali, pela
sua adesão religiosa ao comunismo. Aliás, no plano moral, creio que se trata de
uma falha extremamente grave, pois afinal de contas o comunismo trucidou com centenas
de milhões de pessoas nos seus setenta anos de vida, ainda condena outros
milhões aos Gulags norte-coreanos, às prisões abjetas de Cuba, e a uma situação
de autocracia e de opressão política no caso da China, sem falar nos candidatos
a ditadores aqui do lado. Mas recomendo o livro, pois o Hobsbawm que ali está é
o intelectual da alta cultura germânica, não o historiador marxista instalado
na Inglaterra.
Por acaso, acabei pegando para ler, e depois
comprei, o número atual da revista conservadora americana The National Interest, onde figura uma bela resenha de David A.
Bell (professor da era das revoluções norte-atlânticas em Princeton) sobre esse
livro, e ele chama o Hobsbawm de burguês e de judeu (o que é absolutamente
verdade). Com toda a sua virulência revolucionária e comunista, Hobsbawm nunca
deixou de ser um burguês e um judeu, mesmo que ele não gostasse dos
estereótipos associados a esses dois personagens típicos da era do capitalismo
moderno.
O outro livro que fiquei lendo foi o de Michael
Reid, ex-correspondente da Economist no Brasil, que acaba de publicar um livro
sobre o qual já falei aqui – e até corrigi uns dois ou três erros dele, o que
acho natural num estrangeiro – e que pode ser buscado na janela de pesquisa
deste blog: Brazil: the troubled rise of
a global power.
Considero que existem diversos problemas com a análise
dele, uma vez que se trata de um estrangeiro que tenta entender o Brasil a
partir de leituras e conversas, com um pouco de pesquisa. Está razoável para um
público externo, mas continua alimentando as mesmas ilusões que muitos
analistas, inclusive brasileiros, mantém sobre a fase atual, dos companheiros.
Sintetizo o erro fundamental: eles confundem políticas dos companheiros com
orientações do Brasil, e para mim existe uma distância enorme entre as duas
coisas. Mas, um dia me explico.
Termino, finalmente, recomendando a leitura do
n. 133 (setembro-outubro de 2014) da revista The National Interest, com muitos artigos interessantes sobre a
política externa de Obama, o problema da Rússia e vários outros temas mais.
Talvez exista alguma coisa no site da revista (www.nationalinterest.org/), mas não
deve ser permitido aos não assinantes.
Bem, vou ler a revista agora, junto com a
Foreign Affairs, que também tem material sobre a Rússia, nossa aliada no Brics
(enfim, não seria a minha, só é dos companheiros, que gostam de escolher
ditaduras para adular).
Paulo Roberto de Almeida
Denver, 2 de setembro de 2014
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