Paulo Roberto de Almeida
Evitemos os perigos da “mitologia da coerência” no estudo da História
Em breve será publicado meu novo livro Dos Protoaustríacos a Menger: Uma Breve História das Origens da Escola Austríaca de Economia. Na introdução, escrita à guisa de exórdio, procuro advertir para alguns pontos que julguei relevantes, não apenas para que se possa compreender a mensagem do livro, mas – dentro de objetivos mais amplos – se passe a lidar com obras de História em geral.
É, naturalmente, um livro sobre a História do Pensamento da Escola Austríaca, desde suas origens pós-escolásticas até aquele que é considerado, com justiça, o fundador dessa fascinante abordagem da Economia, das Ciências Sociais, da Filosofia Política, do Direito e, de modo mais abrangente, da Filosofia e da própria vida. Nosso percurso, portanto, abrangerá cerca de seis séculos de História, que vão do século XIV ao final do século XIX.
Por esse motivo, cabem algumas reflexões, colhidas de diversos autores e de minha própria experiência, sobre Teoria Econômica e História, para que não caiamos no erro comum de julgar cada pensador apresentado no livro como se ele estivesse vivo hoje, como se fosse nosso contemporâneo, como se pudéssemos falar com ele pelo Skype ou pelo celular. É claro que não é assim e vou tentar explicar por quê.
O grande filósofo espanhol do século XX José Ortega y Gasset sustentava que a História é um sistema, com um papel muito importante, pois é por meio de seu estudo que, conhecendo o ambiente, os usos e costumes dos pensadores do passado, podemos compreender adequadamente o presente, para que no futuro tentemos evitar o que não deu certo, procurar apreender o que deu certo e, então, aplicar nosso conhecimento ao estado das artes vigente que, certamente, mudou em relação ao dos estudiosos do passado. Na verdade, nem a Escola Austríaca nem qualquer outra, em qualquer área científica, jamais foram corpos unificados de pensamento: foram e ainda são muito mais conjuntos de fragmentos colhidos aqui e ali, de diversos autores e que com o passar do tempo foram constituindo um corpo comum de conhecimentos, compartilhado pelos estudiosos de cada tendência.
Ora, isso pode ser escrito de outra forma: a História – para usarmos a linguagem de Hayek (e que foi sugerida por Menger em 1871) – é uma ordem espontânea, ou seja, um processo dinâmico de acontecimentos e decisões movidos pela ação humana, porém sem que obedeçam a estruturas previamente planejadas. Mergulhar, portanto, na História, é estudar a ação humana dos nossos antepassados, aprender em que erraram e acertaram e investigar porque erraram e acertaram, de acordo com as circunstâncias das épocas em que viveram. A História, assim como a linguagem e os mercados, são processos de tentativas e erros, são procedimentos de descobertas dinâmicos e permanentes.
Estudar a História é, portanto, investigar a ação humana pretérita
Estudar a História é, portanto, investigar a ação humana pretérita, nos campos da Economia, da Filosofia Política, do Direito, da Política e, consequentemente, do poder – que, aliás, nada mais é do que a dimensão política da ação humana, como demonstra magnificamente, em “Potere – La dimensione politica dell’azione umana” (editado por Rubbettino em 2013), o professor italiano Lorenzo Infantino, da Faculdade de Economia LUISS Guido Carli, de Roma.
Agrada-me o alerta do Prof. Peter J. Boettke, da George Mason University, na Virgínia, um dos austríacos de maior renome acadêmico da atualidade, que no capítulo 11 (“Back to the future: Austrian economics in the twenty-first century”) e no prefácio do livro “Handbook on Contemporary Austrian Economic” [publicado por Edgard Elgar, em 2010, por ele editado], adverte com bastante propriedade que a Escola Austríaca contemporânea não é um corpo unificado de pensamento e que seria um grande erro sugerir que é.
Boettke é o autor de “Living Economics: yesterday, today and tomorrow” [The Independent Institute-Universidad Francisco Marroquin, 2012]. Esse livro ganhou, em novembro de 2012, o Prêmio de melhor livro sobre a Escola Austríaca, concedido pela Foundation for Economic Education (FEE) em associação com a Society for Development of Austrian Economics (SDAE). Nele o autor introduz a ideia de que a ciência econômica afeta todas as esferas da vida, nos mercados, em uma cabine de voto, em uma igreja, em família ou em qualquer atividade humana. O Prof. Boettke acredita que a economia não é apenas um jogo para ser jogado por profissionais inteligentes, mas uma disciplina que aborda as questões práticas mais urgentes em qualquer momento histórico. Na economia, estão em jogo a riqueza e a pobreza das nações e a extensão e a qualidade de nossas vidas gira em torno das condições econômicas que nos condicionam. E, mais que tudo, que a Ciência Econômica não é um corpo consolidado, uma rocha, mas que ela vive, vale dizer, transforma-se e se aprimora ao longo do tempo.
Vejamos o que escreve no prefácio:
“Kirznerianos, rothbardianos e lachmannianos são vários rótulos que têm sido utilizados para caracterizar indivíduos e as suas contribuições. Misesianos e hayekianos são metaetiquetas que têm sido muitas vezes usadas por amigos e inimigos das respectivas vertentes de pensamento dentro da Escola Austríaca Moderna. Da forma como a enxergo, a Economia Austríaca contemporânea é um programa de pesquisas progressivo e não um corpo resolvido de pensamento e esse é o único caminho a seguir – o que significa que não devemos nos preocupar com a fidelidade às obras de qualquer pensador passado ou presente e sim em apenas buscar a verdade tal como a enxergarmos, acharmos e tomarmos ideias produtivas onde quer que possamos encontrá-las”. (tradução minha)
Na verdade, não há nada de novo nessa afirmativa. Esta era a maneira como Mises e Hayek enxergavam as ciências sociais. O cruzamento das ideias de Menger e Böhm-Bawerk com as de economistas ingleses como Wicksteed (tinturas austríacas) ou mesmo Mill (cuja famosa quarta proposição fundamental influenciou a Teoria Austríaca do Capital), economistas suecos, como Wicksell (de quem a Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos absorveu o conceito de taxa natural de juros), economistas franceses como Turgot e Bastiat, belgas como De Molinari, italianos, como Bandini, Galiani e Delfico, espanhóis (como a maioria dos mais proeminentes pós-escolásticos e, no século XIX, Jaime Balmes)e economistas americanos (como Knight e Clark), era a melhor alternativa que Mises e Hayek vislumbravam a respeito da atividade intelectual de um economista. Tal cruzamento não significa completa concordância ou consistência, mas sim uma seleção capaz de melhorar as concepções sobre a economia.
O famoso historiador inglês Quentin Skinner, em “Meaning and Understanding in the History of Ideas” [in: History and Theory, Vol. 8, No. 1, 1969], antecipava o mesmo alerta a respeito do erro de considerarmos a História como um sistema fechado, que aqui repito: “Este procedimento dá aos pensamentos de vários escritores clássicos uma coerência e um ar geral de um sistema fechado, que podem nunca ter alcançado ou até mesmo sido feitos para alcançar”.
Deveria ser senso comum que a compreensão de textos escritos há cem, duzentos, trezentos ou mais anos, pressupõe a compreensão tanto do que seus autores tinham a intenção de dizer, como da maneira que esses autores desejavam que suas ideias fossem tomadas. Logo, a capacidade de compreender um texto deve ser também a de compreender tanto a intenção a ser compreendida como a intenção de como deve ser entendida.
A questão essencial com que nos confrontamos ao estudar qualquer texto, é o que o seu autor, no momento em que escreveu para o público que pretendia alcançar, desejava comunicar alguma ideia ou proposta. Portanto, o objetivo essencial de qualquer tentativa de compreender as afirmativas do autor, deve ser o de identificar essa sua complexa intenção.
Consequentemente, a metodologia apropriada para a história das ideias deve se preocupar, antes de qualquer outra coisa, com a demarcação de todo o conjunto de comunicações que poderia ter sido convencionalmente realizado por ocasião do enunciado dado pelo autor e, depois, com o delineamento das relações entre o enunciado dado e o contexto linguístico mais amplo, como um meio de decodificar a intenção real do pensador.
Existe uma crença quase metafísica a que a mitologia da coerência – isto é, a de que as doutrinas são corpos unificados de pensamento -, dá origem: ela leva a se esperar de um escritor que não apenas mostre coerência interna – que se transforma, assim, em um dever de cada intérprete revelar, mas também que todas as barreiras aparentes a essa revelação, constituídas por quaisquer contradições aparentes que o trabalho do escritor possa sugerir conter, não podem ser barreiras de fato, simplesmente porque não podem existir contradições.
Uma vítima constante dessa mitologia da coerência, inclusive por parte de muitos austríacos, é Hayek. Tenho lido muitas críticas a ele no sentido de que teria sido um “social democrata” ou um “intervencionista”, o que os leva a classificar Hayek simplesmente como um teórico liberal do século XX; entretanto, o que esses críticos deixam em segundo plano é que os pontos de vista dele e, principalmente, o público para quem escrevia e as circunstâncias da época em que ele tinha quarenta anos, em plena era dos autoritarismos, eram completamente diferentes de seus pontos de vista, do público e das circunstâncias existentes quando ele tinha oitenta anos.
Skinner explica que se podem identificar dois postulados positivos e gerais. O primeiro diz respeito aos métodos adequados para estudar a história das ideias: por um lado, é um erro escrever biografias intelectuais concentrando-se nas obras de um determinado escritor, ou escrever histórias de ideias analisando a morfologia de um determinado conceito ao longo do tempo. Esse tipo de estudo é inadequado. Por outro lado, isso não nos permite concluir, como às vezes se afirma, que nenhuma forma particular de se estudar a história das ideias é mais satisfatória do que qualquer outra. Skinner sugere então uma metodologia alternativa, que não seja sujeita a qualquer dessas inadequações. O que ele sugere, em poucas palavras, é que a compreensão de textos pressupõe a compreensão tanto do que eles tinham a intenção de dizer e de como este significado era destinado pelo autor a ser tomado.
Outra observação geral refere-se ao valor de se estudar a história das ideias. A possibilidade mais interessante, ao discutir tanto as causas das ações como as condições para compreender as propostas científicas, é a de um diálogo entre a discussão filosófica e as evidências históricas.
Skinner sugere um ponto importante sobre o valor filosófico de se estudar a história das ideias. Por um lado ele deixa claro que qualquer tentativa de justificar o estudo do tema em termos de problemas perenes e verdades universais a serem aprendidas com os textos clássicos é ingênua. Qualquer declaração de princípios é inevitavelmente a personificação de uma intenção particular, em uma ocasião especial, dirigida à solução de um problema particular, e, portanto, específica para a sua situação de uma forma que tentar ignorar esse fato só pode ser sinal de ingenuidade.
Aprender com o passado – e jamais poderemos aprendê-lo em sua totalidade – a distinção entre o que é necessário e o que é produto apenas de nossas próprias dúvidas momentâneas é a chave para nossa própria autoconsciência
A implicação principal disso é que não é meramente que os textos clássicos não possam estar preocupados com as nossas perguntas e respostas, mas apenas com as de seus próprios autores; há também, a implicação de que só existem respostas individuais a questões individuais, com tantas respostas quantas questões diferentes e tantas perguntas quanto questionadores diferentes. Não há, consequentemente, nenhuma esperança de buscar o ponto certo no estudo da história das ideias pela tentativa de aprender diretamente com os autores clássicos, concentrando-se em suas tentativas de respostas a perguntas supostamente intemporais.
Exigir da história do pensamento uma solução para os nossos problemas imediatos é, assim, incorrer em uma falácia não apenas metodológica, mas, no dizer de Skinner, um erro moral. Mas aprender com o passado – e jamais poderemos aprendê-lo em sua totalidade – a distinção entre o que é necessário e o que é produto apenas de nossas próprias dúvidas momentâneas é a chave para nossa própria autoconsciência.
Já Rothbard lembra que em toda a obra de Mises está presente a tese de que são as ideias que fazem a história, e não a história que faz as ideias. Mises sabia que apenas ideias com bases sólidas podem servir de sustentáculos a programas de ação econômicos e políticos capazes de alcançar os resultados desejados. E sabia, naturalmente, que ideias derivadas de premissas e lógicas equivocadas levam necessariamente a interpretações errôneas da realidade e que essas ideias resultarão numa conduta que “não somente deixa de alcançar os objetivos desejados por seus autores e defensores como também cria um estado de coisas que – do ponto de vista das avaliações destes – é menos desejável do que o estado de coisas anterior”.
O Prof. José Manuel Moreira (que me concedeu a honra de escrever o Posfácio de meu modesto livro), na página 50 de sua tese de doutoramento (resumida), Filosofia e metodologia da economia em F. A. Hayek – ou a descoberta de um caminho “terceiro” para a compreensão e melhoria da ordem alargada da interação humana [Universidade do Porto, 1994, no terceiro tópico do capítulo I, em que trata de teoria e história], ressalta com muita propriedade que:
“Hayek defenderá a complementaridade do tratamento histórico e teórico, mas ao mesmo tempo manterá que a aspiração a tornar a história uma ciência teórica é em si contraditória com uma outra exigência defendida por muitos historicistas (e particularmente pelos marxistas), a de que a teoria deveria sempre ser histórica”.
E prossegue o notável economista português esclarecendo que Hayek não negava que a História lida com eventos únicos, singulares, isolados, mas que isso não é uma característica exclusiva da história da humanidade. Por essa razão, enfatizava que a distinção entre teoria e história não tem conexão com a diferença entre os objetos concretos utilizados pelos dois métodos e que, assim sendo, as duas espécies de conhecimento são necessárias para que possamos compreender os fenômenos concretos, sejam eles da natureza ou da sociedade humana.
Por sua vez, Edward H. Kaplan, em sua resenha – “Writing History: Essay on Epistemology” ao livro de Paul Veyne, “Writing History: Essay on Epistemology” (Middletown, Conn. Wesleyan University Press, 1984 (ed. original em francês, de 1971, publicada em The Review of Austrian Economics, Volume 1. Ludwig von Mises Institute, 1987, iBook) escreve que Veyne nega que a história seja uma ciência social, uma vez que qualquer ciência verdadeira utiliza um conjunto de abstrações como objeto, enquanto a História os fixa em elementos particulares concretos.
Para Veyne, o historiador os compõe como “verdadeiras novelas” e assim se parece mais com um romancista do que com um cientista. Isto porque, como o romancista cria ficções às quais ele se esforça para dar uma aparência de verdade, ele pode ter que realizar o tipo de pesquisa em documentos semelhantes aos estudados normalmente pelo historiador. Este último, obviamente, não precisa criar personagens ou incidentes, mas, tal como o romancista, ele tem que decidir sobre algum “enredo” que se encaixe em sua narrativa. E escreve:
“Uma ciência do homem é possível e até certo ponto já existe, mas a história não é e não pode ser essa ciência. Tal ciência deve, Veyne argumenta (citando Mises, Hayek e Schumpeter), ser praxeológica. Se os objetos da história são eventos específicos, os objetos de uma verdadeira ciência humana devem ser abstrações que podem ser manipuladas na mente, independentemente do mundo de onde foram tiradas”. (tradução minha)
Por fim, nunca é demais lembrar que uma das características da Escola Austríaca é o individualismo metodológico. Assim sendo, cada agente – e, no caso do livro, cada pensador – é um indivíduo diferente dos demais, tanto nos aspectos objetivos como, principalmente, nos subjetivos. Ora, esta característica das pessoas, elaborada cientificamente pela Escola Austríaca mediante o individualismo metodológico, por si só já deve ser suficiente para espantar a lenda da “mitologia da coerência”, um fantasma muito mais em conformidade com as ideias coletivistas do que com a defesa das liberdades individuais.
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