sábado, 21 de outubro de 2017

Meu primeiro texto contra os antiglobalizadores - Paulo Roberto de Almeida

Retornando de Paris no final de 1995, terra dos antiglobalizadores por excelência, desde sempre, encontrei os primeiros representantes da espécie brasileira entre os simpatizantes do PT, numa época em que ainda não existia o Fórum Social Mundial, mas já se desenhavam as estratégias dos chamados altermundialistas, ou antiglobalizadores, e sua busca por um mundo impossível, no qual a globalização não existiria.
Este foi provavelmente o primeiro artigo que escrevi a respeito, datado de fevereiro de 1996, mas que ficou inédito desde então.


As contradições da antiglobalização:
uma ordem internacional alternativa é possível ?

Paulo Roberto de Almeida

 
Comentando a conferência pronunciada na Índia pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso sobre as conseqüências sociais da globalização, o economista e professor da USP Paul Singer (em artigo publicado nesta Folha em 11.02.96, “O fim forçado das contradições”), tece algumas considerações sobre o suposto conformismo do Presidente em relação a propostas alternativas que o Brasil ou outros países poderiam eventualmente promover para escapar ou minimizar os efeitos nefastos que aquele processo acarreta. O lado negativo da globalização implica desemprego crescente, perda de soberania estatal sobre os processos produtivos, ausência de controle sobre os fluxos financeiros e, de modo geral, uma diminuição do bem-estar social para amplas camadas da população, quando não para países inteiros.
O pressuposto de Singer é o de que o Presidente tenta conciliar a realidade da globalização, considerada inevitável e incontornável, com os “velhos ideais da esquerda”, supostamente comprometidos com maior justiça social, objetivos distributivistas e um controle mais afirmado sobre o capital privado, de maneira a assegurar o predomínio dos “interesses nacionais” sobre os fins predominantemente egoístas do capitalismo internacional. Subjacente à sua argumentação está a idéia de que existe uma categoria de pessoas ou entidades que “manejam o capital global” ou que “selecionam vantagens comparativas” dos diversos países de forma a maximizar sua taxa de lucro. Aos países individualmente não restaria outra opção senão dobrar-se ao “arcabouço institucional e [ao] quadro regulatório [que] agradam [a]os dirigentes das grandes corporações”.
Voltamos assim a um dos mais velhos fantasmas da esquerda, que tende a conceber a ordem internacional como o resultado intencional de um grupo de países ricos ou de poderosas corporações multinacionais, organizando a seu bel-prazer - na calada da noite e ao abrigo de olhares indiscretos, geralmente nos salões acarpetados do mundo desenvolvido - a divisão internacional do trabalho e o papel que nela devem desempenhar os demais participantes do sistema global. É o que Marx chamaria de teoria conspiratória da história, ou seja, uma visão que coloca processos estruturais de largo prazo e de evidente complexidade intrínseca na dependência da vontade individual ou coletiva de alguns poucos atores desse atomizado mercado capitalista. Singer afirma, por exemplo, que a “globalização resultante da contra-revolução liberal do último quarto de século não precisa ser irreversível”, sem que ele diga exatamente quais seriam os mecanismos de reversibilidade desse fenômeno que vem se arrastando desde os tempos em que Marx e Engels escreviam o Manifesto do Partido Comunista, ou seja 150 anos atrás. Ele acredita ainda que “se houver vontade política por parte de alguns governos, a globalização poderá [a afirmação é peremptória] ser reorientada, deixando de estar submetida à hegemonia do capital privado”. Mais otimisticamente, ele proclama que “sempre será possível reinstaurar algum controle intergovernamental do movimento internacional do capital financeiro e produtivo, seja pela ação de um agrupamento informal de economias poderosas, como o G-7, por exemplo, ou de algum organismo multilateral, como o FMI ou o Banco Mundial”.
O Professor Singer não parece ter-se dado conta de que, nos tempos que correm, o G-7 controla uma parte progressivamente menor das riquezas ou fluxos financeiros e comerciais do planeta, que sua influência real sobre as transferências maciças de capital entre as economias chega a ser quase irrelevante ou que seus dirigentes, em cada encontro anual, estão mais preocupados com o estado calamitoso das finanças públicas em seus respectivos países (que influenciam os movimentos cambiais e a especulação contra suas moedas) do que com a suposta margem de liberdade deixada aos mercados e capitais privados. O G-7 é apenas uma tentativa (largamente insatisfatória) de conciliar objetivos internos e interesses nacionais das economias autoproclamadas mais poderosas e não um diretório internacional do sistema capitalista que, como Marx ensina, é absolutamente anárquico em suas formas de organização e distribuição. Singer também não percebeu que os volumes de recursos manipulados atualmente pelas instituições de Bretton Woods são ridiculamente pequenos comparados à enormidade dos fluxos transfronteiriços de capital, que se situam na faixa dos trilhões de dólares. O FMI, por exemplo, jamais teria conseguido organizar um pacote de ajuda ao México sem os “generosos” fundos aportados pelo governo dos EUA e é também conhecido que suas disponibilidades financeiras efetivas para sustentação de programas de ajuste estrutural ou de desequilíbrios em balanças de pagamentos são notoriamente insuficientes. Quanto ao Banco Mundial, sua carteira de empréstimos para o conjunto do planeta em 1996 é inferior ao volume de recursos que o BNDES pensa injetar (11 bilhões de dólares) na economia brasileira neste ano.
Acreditar que, nessas condições, esses governos ou entidades possam desviar o curso da globalização e suas exigências implacáveis é uma manifestação exagerada de otimismo, que não condiz com os dados do problema. O Professor Singer proclama, ainda assim, que “é mister que a esquerda e o movimento operário desenvolvam sua alternativa própria para a globalização, não para abolí-la mas para compatibilizá-la com os interesses das maiorias nacionais”. Curiosa manifestação de chauvinismo nacional num representante do pensamento marxista, supostamente comprometido com as virtudes do “internacionalismo proletário” que Marx empunhava naquele mesmo texto de 1848.
O Manifesto do Partido Comunista, como não deve ignorar o Professor Singer, é uma espécie de hino em louvor à burguesia revolucionária e ao poder propriamente avassalador do capitalismo modernizador. Cabia a este a imensa tarefa - propriamente revolucionária, na linguagem de Marx - de unificar os modos de produção arcaicos (feudais, asiáticos, pré-capitalistas, em suma) ainda em vigor em boa parte do planeta naquele período, aniquilando os “regimes bárbaros” que impediam a dominação do capital e a constituição de uma classe operária vigorosa que um dia, chegada à sua maturidade, colocaria em cheque a apropriação privada dos meios de produção. A esse processo, analisado em primeira mão por Marx, chamamos hoje eufemisticamente de “globalização”, ou seja, a homogeneização das condições produtivas pelas forças de mercado e a circulação irrestrita de bens e serviços num mundo sem fronteiras, quando ele nada mais é do que a realização final dos processos “inevitáveis” anunciados no Manifesto de 1848.
É verdade que o “programa marxista” de unificação do mundo sob as regras do capital foi interrompido por algumas décadas, seja em virtude de comoções políticas e militares (guerras “inter-capitalistas” de 1914 e 1939), de crises temporárias de mercado como a dos anos 30 (que determinaram o fechamento da América Latina e a aplicação de modelos protecionistas de industrialização) ou ainda de alternativas “econômicas” ao capitalismo realmente existente, como foi a experiência leninista de planejamento estatal, aplicada nos modelos soviético e chinês de coletivização forçada dos meios de produção. Mas, esse curto parêntese histórico de sete décadas encerrou-se recentemente com a derrocada final do socialismo, e o capital retoma agora o curso “marxista” da história sem inimigos aparentes ou alternativas viáveis de organização social da produção.
Para não eludir o problema real colocado no artigo do Professor Singer, caberiam portanto algumas perguntas. Existem, efetivamente, alternativas ao capitalismo “predatório” atualmente em ação nos mais diferentes quadrantes do planeta? Seria possível, às economias e governos nacionais, subtrair-se individualmente ou em grupos de países às exigências da competitividade e do equilíbrio fiscal, convertidos, como bem salientou Singer, em novos dogmas da política econômica? Haveria condições de aplicar uma política econômica “não ortodoxa”, como parece pretender o professor da USP?
As respostas correm o risco de decepcionar nossos amigos da esquerda, na medida em que todos os esforços nacionais de adaptação às novas exigências da economia global parecem ser singularmente cruéis do ponto de vista social e político: aumento da produtividade do trabalho, diminuição das expectativas de emprego assegurado, redução de benefícios sociais em face dos enormes desquilíbrios fiscais enfrentados por todos os governos (desenvolvidos ou em desenvolvimento), flexibilização, enfim, dos controles governamentais sobre uma série de variáveis econômicas com vistas à adequação das unidades produtivas e empresas de serviços ao livre jogo das forças do mercado. Nenhuma ação individual ou articulada em bases geográficas restritas conseguirá deter a marcha da unificação planetária sob a égide do capital que, repita-se, não é governado por nenhuma força conspiratória a serviço de alguns poucos países dominantes ou de executivos de gigantescas transnacionais. O processo é impessoal, avassalador e propriamente irrefreável, podendo apenas ser colocado a serviço de objetivos nacionais de desenvolvimento econômico e social na medida em que o país se capacita tecnologicamente e em termos organizacionais (recursos humanos e em know-how) para poder competir no mercado selvagem que aí está.
Em última instância, não se trata de afirmar que fora da globalização não há solução, mas em reconhecer que a saída não está no isolamento soberano em relação às forças que moldam atualmente o sistema econômico internacional e sim na adaptação contínua das forças produtivas e das relações de trabalho de um país às novas condições da ordem internacional. A solução não passa pela diminuição da interdependência global, mas na crescente inserção do país na economia mundial, dando-lhe condições de competir vantajosamente nos mercados globais. Essas condições não são determinadas de fora, mas dependem inteiramente de nossa própria vontade política em reformar continuamente os processos produtivos e o sistema educacional do País, sem o que não há esperança de atenuar o impacto negativo da globalização. Parafraseando Orwell, poderíamos dizer que todos os países são interdependentes, muito embora alguns sejam mais interdependentes que outros.

Paulo Roberto de Almeida.
[Brasília, 14/02/1996]

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