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sexta-feira, 5 de abril de 2019

Hugo Studart: esquerda armada provocou endurecimento do regime militar - Jose Neumanne

Ações da esquerda armada endureceram regime militar, diz professor

Historiador lembra que PC do B foi fundado contra Goulart em 1962, dois anos antes de sua queda, e acha que redemocratização resultou da luta pacífica dos civis

José Nêumanne 04 de abril de 2019 | 19h47
Hugo à frente da ONU em Genebra: seu livro A Lei da Selva trata da guerrilha sob a óptica dos militares. Em Borboletas e Lobisomens, guerrilheiros são protagonistas. Foto: Acervo pessoal
Hugo Studart, autor do livro Borboletas e Lobisomens, revelou que, ao contrário do que se propalou, a esquerda armada não reagiu ao endurecimento do regime militar, mas o contrário. Segundo ele, “o Partido Comunista do Brasil, o PC do B, foi fundado em 1962, em pleno governo democrático de João Goulart, com um programa-manifesto que denunciava o governo burguês de Jango e pregava a luta armada contra ele”. Na edição desta semana da série Nêumanne Entrevista, ele lembrou que “o PC do B enviou seus primeiro militantes para treinamento na Academia Militar de Pequim em fevereiro de 1964, ainda no governou de Goulart, com o objetivo de pegar em armas contra a democracia. Observando o outrora com os olhos de agora, dá para concluir que as organizações da luta armada foram vetores importantes para o endurecimento do regime e a instauração da ditadura militar. E que foi a luta pacífica sob a égide do MDB de Ulysses Guimarães e do Partido Comunista Brasileiro, o velho Partidão, a principal responsável pela redemocratização”. Nas suas contas, na luta militantes de esquerda mataram de 140 a 150 militares, civis e companheiros “justiçados”  e os militares, cerca de 350 guerrilheiros de esquerda.
Hugo, com orientandas na Universidade Católica de Brasília, que lhe davam cartaz por ele já ter trabalhado em redações. Foto: Acervo pessoal
O historiador Hugo Studart tem protagonizado um fenômeno curioso diante da atual conjuntura política brasileira, tomada pelo radicalismo ideológico entre extrema direita e extrema esquerda, em que os dois lados tentam distorcer o passado e recontá-lo segundo as conveniências do presente: o equilíbrio na busca pela verdade histórica. Seu livro mais recente, Borboletas e Lobisomens – Vidas, sonhos e mortes dos guerrilheiros do Araguaia (Francisco Alves Editora), lançado em outubro passado em São Paulo, é um exemplo desse equilíbrio. Por conta dos segredos incômodos que revelou sobre o modo como o Exército exterminou os guerrilheiros, tem provocado reação da direita mais extremada. Paradoxalmente, vêm da extrema esquerda as reações mais violentas – manifestos, atos públicos de repúdio e até piquetes contra os lançamentos – por causa de segredos que os comunistas vinham tentando manter ocultos. A obra, um calhamaço fundamentado em mais de 15 mil páginas de documentos secretos da ditadura e em quase 150 depoimentos orais de sobreviventes, de guerrilheiros, em apenas três meses chegou à terceira edição. Seu livro anterior, A Lei da Selva, no qual revela as estratégias militares na guerrilha do Araguaia, é recordista como referência no livro oficial do governo brasileiro sobre mortos e desaparecidos no regime militar, Direito à Memória e à Verdade, com 53 citações em verbetes, e é apresentado como obra referência pelas bibliotecas de 22 universidades estrangeiras, como Harvard, Yale e Princeton, nos Estados Unidos, e Cambridge, na Inglaterra. Jornalista investigativo ao longo de quase 30 anos, Studart atuou como repórter, editor, colunista e diretor nos principais veículos do País, como O Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo, Veja e IstoÉ. Também recebeu prêmios como o Esso e o Abril de Jornalismo e Wladimir Herzog de Direitos Humanos. Em determinado momento, foi migrando de jornalista para professor e historiador. Detentor do título de doutor em História pela Universidade de Brasília, atuou como professor de instituições como Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo, Universidade Católica de Brasília, Ibmec e, atualmente, é professor convidado da UnB, onde ministra o curso de História da Ditadura e da Luta Armada no Brasil. É, ainda, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal e da Academia de Letras de Brasília.
Nêumanne entrevista Hugo Studart
Hugo com a filha Natasha no lançamento de Borboletas e Lobisomens em Brasília. Foto: Acervo pessoal
Nêumanne – O que o levou a deixar o jornalismo profissional para se dedicar à carreira acadêmica?
Hugo – Parte de nossa vida é traçada pelas escolhas puramente humanas, aquela máxima “aqui se planta, aqui se colhe”. Outra parte, acredito, faz parte do Destino. Tempos atrás eu trabalhava como diretor de uma grande empresa de conteúdo digital. Então a bolha da internet estourou e voltei desempregado para Brasília. Um antigo professor da universidade me deu emprego de professor numa faculdade privada. Descobri que a sala de aula é uma paixão profunda, glutona. Então fui terminar meu mestrado e fazer o doutorado como requisitos. Optei pela História, e não pela comunicação, que seria o caminho natural. Foi nesse momento que também descobri a paixão pela História, algo de infância, mas que havia sido adormecido pelo jornalismo. Por mais de dez anos busquei conciliar jornalismo com sala de aula. Houve um momento em que optei por entrar por inteiro na História e na vida de professor. Acredito que seja o Destino traçando meu rumo.
N – Qual é a diferença fundamental que encontrou entre testemunhar e relatar acontecimentos e entrevistar personagens e pesquisar documentos e buscar testemunhos vivos para resgatar momentos mais obscuros no tempo?
H – Costumo instigar meus alunos a buscar um diálogo entre jornalismo e História fazendo uso de uma expressão do filósofo Walter Benjamin: o jornalismo é a História do agora, da mesma forma que a História é o jornalismo sobre o outrora. Só se consegue fazer jornalismo interpretativo se houver o entendimento do passado, ou seja, quanto mais amplo e profundo o conhecimento histórico, melhores são a compreensão do presente e a prospecção do futuro. Além disso, a metodologia e a pesquisa do jornalismo são muito mais dinâmicas, eficientes e consolidadas que as da História. Para se ter ideia, o jornalismo reconhece a validade das entrevistas orais desde o início do século 19, enquanto na História ainda é forte a resistência aos testemunhos e grande o fetiche por documentos, documentos esses quase sempre forjados e conjurados, jamais precisos. Enfim, a pesquisa histórica ainda tem muito a aprender com a apuração jornalística, da mesma forma que o jornalismo precisa da História para compreender o presente e analisar as perspectivas futuras.
Hugo com Jadiel Camelo, parceiro na pesquisa de campo feita no território da guerrilha no Araguaia. Foto: Acervo pessoal
N – O que despertou seu interesse na história trágica da guerrilha rural do PC do B na região do Araguaia, em plena guerra suja travada pelos grupos armados de esquerda contra as Forças Armadas do Estado brasileiro, naquela conturbada segunda metade do século 20? E o que têm que ver borboletas e lobisomens com isso tudo?
H – Eu estava apurando, como jornalista, a morte da guerrilheira urbana Iara Iavelberg, que era amante do capitão guerrilheiro Carlos Lamarca, quando cheguei a um coronel que resguardava em casa um acervo fantástico de documentos do Araguaia. Foi então que comecei a pesquisar sobre o tema, ainda em 1998. Mais tarde, ao entrar para o mestrado em História pela Universidade de Brasília (UnB), optei pelo tema, tendo como corte pesquisar como os militares conseguiram derrotar a guerrilha rural. A dissertação virou livro, A Lei da Selva, que foi muito premiado na época e acabou sendo adotado como livro-referência por 22 universidades estrangeiras, como Harvard, Yale e Princeton, nos Estados Unidos, e Cambridge, na Inglaterra. No caso do livro Borboletas e Lobisomens – Vidas, sonhos e mortes dos guerrilheiros do Araguaia, ele é produto da minha tese de doutorado, também pela UnB. A ideia era tecer um díptico, como duas tábuas independentes que formam um quadro só. A Lei da Selva trata da guerrilha sob o ponto de vista dos militares. Já em Borboletas e Lobisomens os guerrilheiros são os protagonistas da mesma história.
Hugo com o livro Borboletas e Lobisomens, sucesso literário e acadêmico, editado pela Francisco Alves, no lançamento em Brasília. Foto: Acervo pessoal
N – Como o senhor conseguiu pistas para abordar um assunto polêmico e guardado sob sete capas, por um lado, e oculto por trás de uma cortina de mistificação ideológica, por outro?
H – É um fato curioso que, terminada a guerrilha, nem os militares revelaram como venceram, nem o PC do B contou como perdeu. O partido só começou sua abertura a partir de 1996, ainda assim de forma lenta, segura e gradual, revelando seus arquivos somente para historiadores ideologicamente confiáveis (para eles, é claro). Paradoxalmente, as principais revelações estão vindo de militares. Desde a virada do ano 2000, uma dúzia de militares já abriu seus acervos privados para pesquisadores e jornalistas, como é o caso do coronel Lício Maciel. Ou ainda escreveram seus próprios livros, como no caso do coronel Djalma Madruga. Da minha parte, consegui que o então ministro da Defesa Nélson Jobim permitisse o acesso aos arquivos secretos do antigo SNI (Serviço Nacional de Informações) e do Cisa (Centro de Informações da Aeronáutica). Mas os melhores documentos ainda são os revelados pelos acervos privados de militares. Acabei conseguindo reunir um acervo entre 15 mil e 20 mil páginas de documentos secretos, que fundamentaram minhas pesquisas.
Hugo na sala de aula na UnB com colegas, ambiente pelo qual trocou as redações dos periódicos em que trabalhou. Foto: Acervo pessoal
5 – Quais foram os maiores obstáculos que encontrou para conseguir as informações de que precisava para pintar o retrato exaustivo e completo que terminou por conseguir fazer?
H – Outro paradoxo é que, apesar de existirem milhares de páginas de documentos disponíveis, a quase totalidade deles tem pouca serventia. Há um mito muito grande em torno desses tais documentos secretos da ditadura. Não há grandes revelações nesses papéis, mas fragmentos dispersos, como cacos de cerâmica da arqueologia que necessitam de uma boa interpretação para deles se extrair alguma informação interessante. Enfim, esses documentos apontam pistas e indícios de fragmentos de História. Esse foi o maior obstáculo, a imprecisão documental sobre fatos realmente relevantes, apesar de o acervo disponível ser enorme. Contornei os obstáculos com a experiência de repórter investigativo, recorrendo a depoimentos orais de militares, de guerrilheiros sobreviventes e de moradores da região. Só assim foi possível  tecer uma boa trama histórica.
Hugo na reserva indígena Sororó, na região da guerrilha do PC do B no Araguaia. Foto: Acervo pessoal
N – O que aproveitou de sua experiência de repórter no trabalho de campo de sua pesquisa e que vícios da imprensa o atrapalharam no mesmo mister?
H – Sem dúvida, foi a experiência das entrevistas orais que mais me ajudou, as técnicas e a experiência na abordagem e na persuasão das fontes. Não é fácil convencer um militar, há 40 anos em obsequioso silêncio, a revelar em detalhes como torturou e matou um guerrilheiro. E consegui inúmeros relatos na primeira pessoa do singular, usando como metodologia revelar o nome daqueles que eram oficiais, mas preservando sigilo dos subalternos que apenas cumpriam ordens. Um caso bem difícil, presente em Borboletas e Lobisomens, foi o relato de um militar sobre como executou a guerrilheira Áurea Elisa Valadão. Havia bem uns dez anos que mantínhamos contatos periódicos, mas ele não me havia contado nada. Eu estava atrás dos chamados mortos-vivos, os guerrilheiros que fizeram delação premiada e trocaram de identidade. Sabia que havia uma mulher, mas não quem. Um dia, saindo da aula na universidade, apareci de surpresa na casa desse militar. Ele me recebeu no portão. Fui logo dizendo: “Hoje você vai cantar”. Essa expressão era usada pelo pessoal da repressão que interrogava prisioneiros, significa falar, contar o que sabe. “Tem uns dez anos que almoçamos na churrascaria Pampa, tomamos muito uísque e até agora você não me contou nada. Fulano já cantou, sicrano já cantou, só falta você”. Ele baixou a cabeça e me mandou entrar. Tomamos umas quatro ou cinco doses de uísque falando banalidades. Mais de uma hora depois, ele me chamou para um quarto reservado e perguntou: “O que você quer saber?”. Comecei a perguntar e ele a responder. Foi o depoimento mais revelador e surpreendente de todos. Só um repórter investigativo teria conseguido estabelecer a empatia necessária. Se eu tivesse chegado com gravador e questionário, como ensinam as técnicas rígidas da história oral, teria sido rechaçado.
N – Concluído seu livro de 858 páginas, um portento, quais são as suas conclusões pessoais a respeito da contribuição dos grupos armados da esquerda para o recrudescimento da repressão do regime autoritário ou a reconstrução da democracia, tal como foi empreendida depois de esmagado militarmente o movimento?
H – Se me permite uma retificação, a tese de doutorado é que tem esse absurdo de páginas. O livro tem apenas 660 páginas, bem mais leve, pois extraí muita citação teórica e diálogo acadêmico com pena dos leitores. Sobre a pergunta em si, lembro que o marco inicial da luta armada é o atentado ao Aeroporto de Guararapes, no Recife, em julho de 1966, que pretendia matar o então ministro da Guerra, Arthur da Costa e Silva, mas acabou matando dois inocentes e ferindo 14 pessoas. Foi um desastre sob o ponto de vista político e histórico. O presidente Castelo Branco era um democrata moderado, tão moderado que hoje seria do DEM. Ainda era um regime civil-militar, com viés autoritário, mas que poderia verter para a democracia liberal plena. Mas aquele atentado provocou a ascensão da linha dura militar ao poder. Ato contínuo, começaram a proliferar novas organizações da luta armada, como a ALN (Ação Libertadora Nacional), de Carlos Marighella, e a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), do capitão Carlos Lamarca, com atentados terroristas. Os generais foram reagindo com o endurecimento, até a instauração do regime autocrático, a ditadura pura e simples, a partir do AI-5 (Ato Institucional n.º 5). A esquerda alega hoje que pegou em armas como reação à ditadura, tese essa inicialmente apresentada pelo historiador Jacob Gorender. Contudo outros historiadores, como Daniel Aarão Reis e Luís Mir, apresentam a tese de que o projeto da luta armada é anterior e quase nada tem que ver com o movimento de 1964. Ou seja, que os guerrilheiros não eram reacionários, mas, sim, protagonista daquele tempo, reacionários eram os militares. Alinho-me a essa tese, tanto que o Partido Comunista do Brasil, o PC do B, foi fundado em 1962, em pleno governo democrático de João Goulart, com um programa-manifesto que denunciava o governo burguês de Jango e pregava a luta armada contra ele. Lembro que o PC do B enviou seus primeiro militantes para treinamento na Academia Militar de Pequim em fevereiro de 1964, ainda no governou de Goulart, com o objetivo de pegar em armas contra a democracia. Observando o outrora com os olhos de agora, dá para concluir que as organizações da luta armadas foram vetores importantes para o endurecimento do regime e a instauração da ditadura militar. E que foi a luta pacífica sob a égide do MDB de Ulysses Guimarães e do Partido Comunista Brasileiro, o velho Partidão, a principal responsável pela redemocratização.
Hugo autografa seu livro sobre guerrilha, alvo de protesto veementes dos dois lados da luta. Foto: Acervo pessoal
N – Até que ponto, a seu ver, a experiência amarga do campo de batalha inóspito levou as Forças Armadas, em geral, e o Exército Brasileiro, em particular, a adotarem a sábia, sensata e prudente atitude de garantia da ordem no Estado de Direito, papel fundamental, segundo o testemunho do mais lúcido sobrevivente desse entrevero, o jornalista e político Fernando Gabeira, em sua colaboração nos meios de comunicação?
H – É pacífico que as Forças Armadas, vitoriosas no campo de batalha, perderam a guerra da História para aquilo que os militares chamam hoje de guerra cultural, ou guerra de narrativas. Aliás, eles foram e ainda estão sendo massacrados pelas esquerdas nos campos da cultura, educação, comunicação e diretos humanos. Os militares estavam desde 1985 aquietados nos quartéis, em silêncio obsequioso, batendo continência aos civis, inclusive a comunistas como Aldo Rebello, do PC do B, que foi ministro da Defesa. Até que apareceu o fenômeno Bolsonaro e eles retornaram à ribalta. Mas, conforme suas palavras, Nêumanne, eles permanecem adotando a sábia, sensata e prudente atitude de garantia da ordem no Estado de Direito. É público que, no meio do caminho, se cogitou de três golpes de Estado, sendo um deles um golpe jurídico. O primeiro foi quando a então presidente Dilma propôs ao general Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército, a decretação do estado de defesa para impedir a votação do impeachment. Depois o mesmo Villas Bôas impediu que o Supremo libertasse Lula, o que provocaria uma convulsão social com desfecho imprevisível. Por fim, por ocasião do atentado ao candidato Jair Bolsonaro, ele segurou o ímpeto das tropas de virar a mesa. Por isso Villas Bôas é tão festejado como um fiador da democracia. Mas ele não é voz isolada, ao contrário, representa a opinião hegemônica das Forças Armadas nessa opção sábia, sensata e prudente de se perfilar pela garantia da ordem no Estado de Direito, como bem observou Gabeira.
Hugo com mascote da Brigada de Infantaria na Selva em Marabá, capital da guerrilha, durante viagem de pesquisa historiográfica. Foto: Teresa Sobreira
N – Como o senhor observa e interpreta a tentativa nostálgica, que os historiadores chamam de “retrotopia”, de reescrever a experiência dramática daqueles anos, enfrentando a historiografia reconhecida, tida pelos novos ocupantes do poder na República como crônica fictícia dos derrotados, sob a égide de Jair Bolsonaro, negando o golpe de Estado e a natureza ditatorial do regime militar?
H – É de George Orwell a máxima: “Quem controla o passado controla o futuro, quem controla o presente controla o passado”. Bolsonaro dá mostras explícitas de profunda preocupação pela reconquista dos corações e mentes dos brasileiros por meio da hegemonia na cultura, na educação e na comunicação, aquele projeto de Gramsci ao qual o presidente tanto se refere com ojeriza. Avalio, contudo, que não seja uma boa estratégias essa opção pela negação, muito menos pela reinterpretação histórica, como essa do chanceler Ernesto Araújo de dizer que o nazismo seria de esquerda. Se Bolsonaro quiser “controlar o passado”, conforme a expressão de Orwell, o melhor caminho me parece ser encarar uma nova Comissão da Verdade, contabilizando as vítimas dos dois lados da luta. É quase certo que acabe chegando a uma conta próxima a 140 ou 150 vítimas na esquerda, ante 350 vítimas entre militares. Se quiser mesmo ganhar a guerra de narrativas e a hegemonia cultural, o presidente vai precisar implementar projetos consistentes na educação, na cultura e na comunicação.
Hugo com Ena Galvão, confreira na Academia de Letras de Brasília, na livraria.Foto: Acervo pessoal
N – O senhor se surpreendeu com a reação indignada dos que se sentiram traídos por seu trabalho imparcial, e, a partir de sua experiência nesse campo, o senhor está disposto a relatar a nossos leitores quais poderão vir a ser, a seu ver, as consequências da guerra ideológica que pode vir a ser travada nos câmpus universitários e no ambiente da educação em geral, no Brasil, neste momento em que a saída do estágio de indigência total dos níveis de ensino é comprometida pela resistência da esquerda e da direita, incapazes de abrir mão de seus mitos para o cumprimento do papel basilar do Estado e dos educadores em sua missão de lecionar e preparar as gerações do futuro para lhe darem acesso a uma sociedade civilizada?
H – De fato, houve uma forte reação negativa da parte do PC do B contra meu trabalho, tanto que eles já divulgaram 23 manifestos, mais de quatro horas de gravação e fizeram quatro atos públicos de repúdio, incluindo um piquete contra o lançamento do livro no Rio de Janeiro. A razão? Ora, ousei revelar alguns fatos incômodos à narrativa do partido, como a existência dos mortos-vivos, aqueles que fizeram delação premiada e trocaram de identidade, ou a existência de uma guerrilheira infiltrada que foi responsável por pelo menos cinco mortes, mas hoje ocupa posição de relevo na hierarquia do Grupo Tortura Nunca Mais. Por outro lado, revelei detalhes de 22 execuções de prisioneiros pelos militares. Busquei ser equilibrado, jamais neutro. É justamente isso que está faltando nas universidades brasileiras, equilíbrio e sensatez intelectual, sobretudo a convivência pacífica com a diversidade de ideias. Mas isso não deve acontecer tão cedo. As universidades tendem a virar uma espécie de bunker da resistência da esquerda a este governo, talvez até do próximo. Desde os anos 80, a universidade brasileira vive a era do pensamento único. A bibliografia hegemônica e, por vezes, absoluta em alguns campos do pensamento oscila entre autores marxistas e estruturalistas. Foram praticamente banidos os pensadores da liberdade e da democracia. Nem me refiro aos conversadores ou aos de direita, mas aos liberais. De uns tempos para cá, muitos estudantes universitários observam que há uma dissonância entre a realidade do mundo e o que apregoam os livros e os professores. Mas não têm contraponto bibliográfico, não têm outras referências que os auxiliem a formar outro ponto de vista. Então acabam caindo no niilismo. O mesmo fenômeno ocorre no ensino básico. Foram banidos dos currículos escolares todos os clássicos da literatura, sobretudo os autores e obras que tratam dos conceitos de povo brasileiro e de Nação brasileira, como Monteiro Lobato, Machado de Assis, Érico Veríssimo e, no caso das universidades, Gilberto Freyre e até Darcy Ribeiro. Simplesmente foram banidos. Não adianta enviar memorando às escolas mandando cantar o Hino Nacional. Precisa é lembrar que, como ensinou Lobato, “um país se faz com homens e livros”. Se Bolsonaro e seus generais quiserem de fato vencer a tal guerra cultural, precisam enviar Machado e Veríssimo às escolas. O resto é consequência. E não adianta esperar resultados imediatos, são árvores que vão demorar umas três décadas para dar frutos.
No Araguaia, Hugo tentou entender por que, “terminada a guerrilha, nem os militares revelaram como venceram, nem o PC do B contou como perdeu”. Foto: Acervo pessoal

Um comentário:

Ulrich Dressel disse...


É óbvio que Hugo Studart está certíssimo. Nos anos 70 eu era maoista. Felizmente noutro país: na Alemanha. Lá fui condenado por pichação de um muro da Chevrolet (Opel) na cidade de Bochum. O juiz foi piedoso, percebeu que eu era um jovenzinho. Desde sempre o comunista desautoriza quem não o é. E quando por azar histórico chega ao poder, começa a matança entre si - a revolução devora seus protagonistas.