Uma avaliação dos cem dias na
política externa
Paulo Roberto de Almeida
Diplomata de carreira, ex-diretor do IPRI-Itamaraty.
Uma avaliação ponderada
dos cem primeiros dias da administração Bolsonaro na área da política externa
pode ser feita em dois planos: o formal, que é o da diplomacia enquanto
instrumento governamental de atuação do Brasil em suas relações exteriores, e o
substantivo, que é o conteúdo mesmo da política externa, tal como determinada pelo
Presidente da República e implementada pelos seus auxiliares da área.
No caso do governo
Bolsonaro, o que se constata, em primeiro lugar, é o caráter inédito tanto da
diplomacia quanto da política externa, com respeito a padrões históricos da
diplomacia e da política externa, ou se quisermos, posturas mais tradicionais,
num e noutro terreno. No primeiro aspecto, assistimos a uma espécie de
“revolução cultural” na diplomacia, com uma quebra generalizada de hierarquia –
que os militares diriam tratar-se de “coronéis mandando em generais” –, expressa
na substituição dos antigos subsecretários-gerais (nove embaixadores
anteriormente, ou seja, ministros de primeira classe, com experiência de postos
no exterior) por sete novos secretários, todos ministros de segunda classe, que
passaram a chefiar embaixadores como chefes de departamento, que em geral
pertencem a um estrato geracional superior ao do próprio chanceler, que é o que
poderíamos chamar de um “junior ambassador”, ou seja, alguém que nunca exerceu
chefia de posto no exterior.
Essa revolução cultural
também se traduziu numa completa reorganização do Itamaraty, em sua estrutura
funcional, o que poderia ser benéfico em termos de ajustes nos processos de
trabalho, mas que no caso foi conduzida de forma autoritária, sem qualquer
consulta a própria Casa, o que também é inédito na história do Itamaraty.
Divisões foram extintas, novas criadas, todas elas renomeadas – o que implicou
na substituição de centenas de plaquetas de identificação de setores e áreas –,
mas também com um alto grau de arbítrio, próprio ao chanceler designado. Os
Estados Unidos, por exemplo, que antes estavam integrados ao Departamento da
América do Norte, agora desfrutam de um Departamento exclusivo, ao passo que
toda a Europa – considerada um “vazio cultural”, em artigo altamente bizarro do
então candidato a chanceler– foi relegada a um único departamento na Secretaria
de Negociações Bilaterais com o Oriente Médio, a Europa e a África, o que
certamente deve ter deixado os europeus bastante descontentes. Imagino que seja
por isso que muitos dos embaixadores europeus em Brasília tenham procurado bem
mais o vice-presidente, general Hamilton Mourão, do que o próprio chanceler ou
o secretário geral do Itamaraty. Essa é a revolução cultural organizacional,
feita por cima, “von Oben”, como diria o próprio chanceler.
No plano substantivo, o
que se observou foi uma outra formidável revolução copernicana nos fundamentos
e princípios da política externa, que deixou a tradicional postura equilibrada
seguida durante décadas em favor de uma aliança estreita, não com os Estados
Unidos propriamente, mas com o governo Trump. Talvez neste caso o chanceler
formalmente designado tenha sido menos importante na inversão de tendência do
que a própria família Bolsonaro, em primeiro lugar aquele que já foi designado
como o “chanceler paralelo”, e que talvez seja o efetivo, ou principal: o atual
presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados. O
inacreditável é que esse representante do povo brasileiro usurpou o seu mandado
ao ter proclamado, nos EUA, a impossível e improvável adesão de “todo o povo
brasileiro” ao projeto do presidente americano de construir um muro na
fronteira com o México, ao mesmo tempo em que classificava como “vergonha” a
existência de tantos imigrantes brasileiros ilegais nos EUA. Esse senhor,
preconceituoso e mal informado, talvez não saiba que esses trabalhadores
brasileiros criam riqueza nos EUA e a remetem ao Brasil – vários bilhões de
dólares por ano –, o que é um aporte significativo em nossa balança de
transações correntes, sob a forma de transferências unilaterais, ou seja, sem
contrapartidas.
Essa outra revolução na
política externa vem sendo contida, controlada e propriamente tutelada pelos militares
membros do governo, que têm atuado como verdadeiros diplomatas, ao contrário do
atual chanceler, cuja adesão ao aventureirismo eleitoral trumpista, no caso da
Venezuela, beira a intervenção nos assuntos internos de outro Estado, o que colide
não só com a nossa Constituição (artigo 4º), como também com princípios
consagrados do direito internacional. Esse comitê de tutela militar sobre o
chanceler também se exerceu precocemente quando da inacreditável aceitação de
um projeto de base militar americana no Brasil, prontamente e cabalmente rejeitada
pelo ministro da Defesa e pelos demais militares.
Existem ainda vários
aspectos bizarros na atual política externa, como essa luta insana contra o
monstro metafísico do “globalismo”, uma fantasmagoria sem qualquer fundamento
na realidade, mas que foi inculcada no atual chanceler – que a ela aderiu
provavelmente de maneira oportunista – por aquele a quem eu chamo de “sofista
da Virgínia” e de “Rasputin de subúrbio”. As iniciativas mais danosas em
relação a Israel ou à China também foram contidas, revertidas ou minimizadas,
por mentes mais sensatas da atual administração ou de fora dela, como a
comunidade de negócios, os próprios chineses ou os mesmos militares.
Em resumo, nos cem
primeiros dias da administração Bolsonaro coexistiram iniciativas certamente
inéditas no terreno da diplomacia e da política externa, sem que preocupações
cruciais com respeito ao papel do Brasil no tocante à agenda externa – em
comércio, Mercosul, meio ambiente, direitos humanos e democracia, e no respeito
aos valores e princípios caros à nossa tradição diplomática – tenham sido
sequer tocados em termos de planejamento ou de ações diplomáticas visando maior
inserção internacional do Brasil. O Itamaraty permanece em grande medida
paralisado pelas coisas estranhas que vem ocorrendo na Casa de Rio Branco desde
o início de 2019, e não parece perto de enveredar pelo dinamismo conhecido em
tempos mais amenos de exercício normal de sua diplomacia profissional.
Se durante o lulopetismo,
tivemos o que pode ser chamado de “diplomacia partidária”, a do partido
hegemônico, e que levou o Brasil a alinhar-se com algumas das mais execráveis
ditaduras do continente ou alhures, nos tempos atuais temos, ao que parece, uma
espécie de “diplomacia familiar”, feita de preconceitos mal informados, de iniciativas
francamente bizarras e vários outros erros na seleção de prioridades para a
agenda diplomática nacional, inciativas voluntaristas e carentes de qualquer
exame técnico mais acurado, que podem custar caro ao Brasil, se efetivamente
implementadas, nos meses e anos à nossa frente. Um consenso parece estar se
formando na chamada comunidade epistêmica de relações internacionais do Brasil,
no sentido em que os aspectos mais “heterodoxos” da atual diplomacia e na
política externa precisam ser contidos, e talvez revertidos, em benefício do
próprio Brasil e no de seu atual governo.
Em política
externa, como na interna, tudo depende dos resultados efetivos, mas, num
julgamento talvez precipitado, os resultados registrados até aqui – a aliança
com Trump, a escolha de um lado nos difíceis problemas do Oriente Médio e
outras opções altamente divergentes com respeito à memória histórica da
diplomacia profissional do Brasil – são bastante preocupantes para os que vivem
nessa comunidade setorial. Cem dias talvez sejam um prazo muito curto para
julgar quanto a esses resultados, mas estaremos atentos aos desenvolvimentos
futuros.
Paulo Roberto de Almeida
Autor do livro: Contra
a corrente: ensaios contrarianistas sobre as relações internacionais do Brasil,
2014-2018 (Curitiba: Appris, 2019).
Brasília, 2 de abril de 2019
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