Surtos autoritários
É crucial, mais do que nunca, que as
instituições não se dobrem à truculência dos que se mostram incapazes de se
subordinar à ordem democrática
· Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
27 de outubro de 2019 | 03h00
O ministro do Supremo
Tribunal Federal (STF) Celso de Mello chamou recentemente a atenção para o
“momento extremamente delicado” que o País atravessa. O decano do STF denunciou
os “surtos autoritários” e os “inconformismos incompatíveis com os fundamentos legitimadores
do Estado de Direito”. Apontou também as “manifestações de grave intolerância
que dividem a sociedade civil”, estimuladas pela “atuação sinistra de
delinquentes que vivem na atmosfera sombria do submundo digital”. Esses
delinquentes seriam parte de um “estranho e perigoso projeto de poder”.
Uma vez implementado,
disse o ministro Celso de Mello, tal projeto de poder “certamente comprometerá
a integridade dos princípios que informam e sobre os quais se estrutura esta
República democrática e laica, concebida sob o signo inspirador e luminoso da
liberdade, da solidariedade, do pluralismo político, do convívio harmonioso
entre as pessoas, da livre e ampla circulação de ideias e opiniões, do veto ao
discurso do ódio, do repúdio a qualquer tratamento preconceituoso e
discriminatório, do respeito indeclinável pelas diferenças e da observância aos
direitos fundamentais de todos os que integram, sem qualquer distinção, a
coletividade nacional”.
Não
foram palavras ao vento. O surto autoritário a que aludiu o ministro de fato
está em pleno curso. Em nome de uma guerra imaginária contra o “comunismo”,
mobilizam-se as energias do Estado e da sociedade para combater impiedosamente
um inimigo que, como uma insidiosa bactéria, estaria infiltrado no corpo nacional.
Essa mobilização se dá tanto na superfície, por meio de ações e declarações dos
atuais ocupantes do governo, como no subterrâneo das redes sociais, onde
habitam os delinquentes a que aludiu o ministro Celso de Mello.
Numa
luta dessa natureza, é claro que a democracia é um obstáculo, pois esse regime
pressupõe o respeito à opinião alheia e a aceitação dos limites impostos pela
lei. Todo aquele que critica o atual governo ou se dispõe a lhe fazer oposição
política tem sido tratado como “comunista” – isto é, como inimigo – pelas
milícias digitais bolsonaristas, estimuladas explicitamente por integrantes do
primeiro escalão da administração federal e da família do presidente Jair
Bolsonaro, quando não pelo próprio Bolsonaro.
Os
protestos no Chile e no Equador contra governos vistos por Bolsonaro como
aliados na tal luta contra o “comunismo” serviram de pretexto para que o
presidente invocasse a possibilidade de mobilizar as Forças Armadas a fim de
conter, no Brasil, eventuais atos “terroristas” – que é como Bolsonaro
qualificou as manifestações no Chile.
Ora,
numa democracia, nenhum projeto de poder é legítimo se nele opositores são
tratados como “terroristas”, se contra estes se ameaça usar força militar, se a
imprensa livre é considerada inimiga e se sicários digitais são incitados a
destruir reputações alheias e a disseminar mentiras para confundir a opinião
pública em favor da ideologia do presidente e de seu entorno.
Não
se sabe qual será o próximo passo da escalada, mas o alerta do ministro Celso
de Mello está longe de ser um exagero; deve, ao contrário, ser levado a sério
por todos aqueles que, malgrado sua eventual decepção com a política, ainda
acreditam que a democracia é o melhor regime.
Sabe-se
que ainda há inconformados com a redemocratização do Brasil. Para estes, o País
foi entregue de mão beijada aos “comunistas” derrotados nos porões da ditadura
militar, razão pela qual não demonstram o menor respeito pelo regime
democrático. Antes limitados às margens da política, esses radicais se julgam
agora com poder para desafiar a ordem que, em sua concepção, foi criada para
dar boa vida a esquerdistas. A tentação autoritária, portanto, está no ar.
Sendo assim, é crucial, mais do que nunca,
que as instituições não se dobrem à truculência dos que se mostram incapazes de
se subordinar à ordem democrática. Antes que a serpente da tirania choque seu
ovo, cabe aos homens e mulheres responsáveis deste país seguir o exemplo de
Celso de Mello e colocar-se de prontidão contra os liberticidas que ousem
atentar contra a República.
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