A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (8)
Paulo Roberto de Almeida
(...)
Onde a luta armada se desenvolveu? A “geografia humana” da luta
armada é feita, basicamente, de idealistas de classe média guiados por uma
adesão equivocada a certas causas – basicamente as da revolução cubana, mais
até do que a do socialismo de inspiração soviética – e de alguns egressos do
comunismo histórico, seduzidos pelo chamamento e o apoio cubano a um grande
empreendimento que se pretendia de libertação do continente do latifundismo, do
imperialismo e, em última instância, da burguesia capitalista. Ela raramente
envolveu legítimos trabalhadores – senão alguns poucos “líderes” sindicais já
adquiridos à ação militante, de natureza política, não exatamente sindical – e
menos ainda camponeses típicos, senão alguns poucos agitadores políticos que já
tinham base em zonas rurais. Ela foi basicamente urbana.
Foi um fenômeno
essencialmente de, e restrito à classe média, em algumas metrópoles
brasileiras, recrutando adeptos no mesmo universo de universitários
conquistados às teses leninistas ou gramscianas, e emocionalmente estimulados
pela epopeia vitoriosa – em grande medida romantizada e idealizada – dos
revolucionários cubanos. Creio poder dizer que sou um típico representante
dessas camadas de estudantes “revoltados” que viam na luta armada não apenas –
ou talvez não exclusivamente – o meio de “libertar o Brasil dos generais
gorilas”, mas basicamente uma via romântica de atuação política-prática,
seguindo o exemplo daquele pequeno grupo de bravos guerrilheiros que conduziram
uma luta exemplar até a vitória. Essa perspectiva da “tomada do poder” por
colunas guerrilheiras, secundadas, no momento decisivo, por uma greve geral da
população contra a ditadura opressiva, fazia parte do universo mental de todo
candidato a guerrilheiro urbano, que forneceu, de modo geral, 90% do
contingente humano para a luta armada (o experimento do PCdoB nas selvas do
Araguaia jamais assumiu proporções significativas, em termos humanos e
materiais, e nunca teria tido qualquer influência no debate político
contemporâneo, se esse partido não fosse constituído de fundamentalistas
devotados às suas causas esquizofrênicas).
Como a luta armada se desenvolveu? Jamais de forma coordenada,
unificada ou organizada, de forma a representar um risco real para o governo,
ou o próprio regime. Foram impulsos isolados, dispersos, desorganizados,
improvisados, ao sabor das decisões dos líderes que se sucediam, alguns
“históricos”, outros que ascenderam na própria luta armada, sem qualquer
formação política especial – foi o caso de Lamarca, por exemplo, ou de alguns
outros chefes “guerrilheiros”, que “subiram” na hierarquia por via de
sequestros e assaltos a bancos. Era uma clara aventura, levada muito a sério
pelos militares, que sempre tendem a maximizar a dimensão dos perigos, por
instinto natural e pelo claro desafio à sua autoridade.
Os militares “overreacted”
aos pequenos bandos de guerrilheiros armados que os desafiaram? Possivelmente,
sim, e teriam provavelmente obtido os mesmos resultados com um pouco mais de
inteligência e menos força bruta. Eles tinham razão em chamar os cowboys
travestidos de guerrilheiros de “terroristas”? Efetivamente não, embora alguns
o fossem, mas a maioria não o era. A guerrilha estava condenada, desde o
início, a ser o que sempre foi: ações isoladas de cowboys do asfalto, incapazes
de assumir o comando de qualquer movimento relevante de oposição ao governo
militar, com um registro de algumas ações espetaculares, mas incapazes, por si
só, de mobilizar o apoio da população para suas causas bizarras. A “luta contra
a ditadura” era uma realidade apenas para uma minoria extremamente reduzida de
uma fração também muito reduzida da classe média instruída, ou seja, um punhado
de “patriotas equivocados”, como a eles se referia o Partidão. Nunca passaram
disso, e seu movimento teria se estiolado, como ocorreu em diversos países
europeus na mesma época – que não extravasaram nos métodos repressivos como no
Brasil – na absoluta indiferença, e provavelmente até no repúdio, da maioria da
população.
Como essas ações marginais
vieram a assumir a dimensão que tiveram, seja na historiografia, seja na política
prática do Brasil atual, estas são questões que merecem argumentos mais
extensos que me eximo de adiantar aqui. Elas podem ser explicadas, porém, pelo
absoluto monopólio de que gozam os escribas gramscianos no ambiente acadêmico –
eles foram derrotados, historicamente, mas se encarregaram de escrever a sua
própria história, deformando-a – e também pelo fato de que as forças,
tendências, ideologias e personalidades derrotadas durante o período militar
finalmente chegaram ao poder e tratam, agora, de reconstruir seus equívocos
apresentando-os como algo que não foram, ou seja, uma luta em favor da
democracia. Trata-se, portanto, de uma imensa deformação da história, agora
conduzida porque temos no poder justamente aqueles a quem designei de
derrotados vingativos.
E por que tivemos luta armada no Brasil? Como já evidenciei
anteriormente, ela jamais teria existido na sequência “normal” do processo
político brasileiro, mesmo em situação de “golpe militar”, ou de “ditadura”?
Como consagrado em outro tipo de literatura – em obras menos passionais, de
brasilianistas, por exemplo – existia já uma tradição de intervenção militar na
política doméstica, e não se pode dizer que o mores político brasileiro fosse naturalmente democrático e
civilista. As tradições positivistas, castilhistas, comtianas, e até fascistas,
ou pelo menos corporativas, existiam desde até antes da República e na maior
parte desta não se conheceu, de verdade, um sistema de representação política,
aberta, transparente, accountable,
enfim, democrático. Tanto quanto os militares, os líderes de esquerda também
eram autoritários, quando não totalitários, e em nome da democracia pretendiam,
na verdade, implantar um regime de “ditadura do proletariado”, ou o que lhe
fosse equivalente, segundo as possibilidades e arranjos da fase “pós-burguesa”,
que de todo modo se pensava superar rapidamente. Creio que não existe nenhuma
dúvida quanto a isso, e desafio qualquer saudosista dos movimentos armados a me
provar que se pretendia implantar no Brasil um sistema liberal, de livre
competição política com partidos “burgueses”: se tratava justamente do
contrário, de assegurar o predomínio da causa proletária ou alguma variante
disso.
O mais importante, porém,
e isso é preciso ressaltar sempre, é que ela não teria existindo sem o impulso,
o apoio, ou praticamente o apelo dos dirigentes cubanos, para que seus
verdadeiros amigos do continente empreendessem, rapidamente, outros processos
revolucionários, com vistas a romper o isolamento cubano. O mesmo fenômeno
ocorreu no início da revolução bolchevique, quando líderes como Lênin e Trotsky
trataram de impulsionar a revolução comunista na Alemanha e em outros países,
para romper o “cerco imperialista” ao regime bolchevique; a Terceira
Internacional foi constituída justamente para isso e por isso, e foi em função
de suas diretivas, e ordens diretas, que Prestes empreendeu a sua patética (mas
traumática) intentona no final de 1935. O PCB era, até 1961, o Partido
Comunista do Brasil, como o Komintern tinha exigido que se chamassem as “seções
nacionais” da III Internacional. A revolução cubana tendeu recriar essas
estruturas através da OLAS e da OPANAL, mas eram iniciativas totalmente
artificiais, no contexto dos países latino-americanos, como foram artificiais,
e por isso derrotadas, as aventuras guerrilheiras de inspiração castrista e
guevarista em diversos países da região.
Não importa quais fossem
as especificidades nacionais, o fato é que a luta armada no Brasil foi um
empreendimento nacional, mas basicamente impulsionado de fora, com dinheiro,
treinamento e suporte logístico vindos de fora, essencialmente dos amigos
cubanos (que podiam repassar alguns recursos soviéticos, que sempre quiseram
estar no comando de várias frentes de combate). O apoio cubano extravasou,
aliás, o simples financiamento da guerrilha, e se manifestou, durante muito
tempo, em diversas outras “frentes de trabalho”, algumas não de todo reveladas,
ainda – embora não desconhecidas – e que poderão vir a público se a
inteligência cubana não tiver tempo de destruir os seus arquivos antes da
derrocada final daquele regime moribundo. Esta é uma realidade que muitos dos
companheiros atuais não gostam de admitir, mas que eles sabem ser verdade, como
o sabem também os órgãos de inteligência do Brasil. O dia em que a história for
escrita, em todos os seus matizes e com todas as suas fontes, esses aspectos
poderão aparecer em toda a sua luminosidade obscura, se ouso o trocadilho.
(Continua... e termina.)
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