A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (5)
Paulo Roberto de Almeida
(...)
Nessa altura do meu
itinerário europeu, eu já havia deixado de ser um candidato a “revolucionário
profissional” – se é que o fui – para me tornar apenas um socialista
reformista, desses que podiam debater o ridículo que era a posição dos
eurocomunistas – ainda defendendo o que restava de socialismo real – e
proclamar, por outro lado, as virtudes do socialismo moderado, à la francesa (ou seja, ainda com muita
estatização, vários controles sociais e todas as bobagens que os socialistas
são capazes de cometer).
O importante, na verdade,
não era tanto a crença do momento, mas o sentido da busca, constante,
incessante, regular e intensa, nos livros, nas discussões acadêmicas de
qualidade, a pesquisa sobre as melhores formas de organizar a economia e a
sociedade, sem sacrificar a liberdade e a democracia. Mas, cabe registrar que
estas mesmas palavras ainda revelam o viés indisfarçável do autoritarismo em
semente, ou residual: “organizar a economia”, como se ela não pudesse existir
sem as “correções estatais” aos “mercados anárquicos”, “melhorar a sociedade”,
enfim, todo um resquício de engenharia social, típicas de todos os socialistas
e estatizantes, concepções das quais eu só iria me libertar quando engajei uma
pesquisa séria para o doutorado.
Dei início a um doutorado
no final de 1976, depois de uma graduação e de um mestrado feitos sem muitos
cuidados propriamente acadêmicos, mas com extremo autodidatismo e um grande
sentido de responsabilidade, na elaboração do “Mémoire de Licence” (sobre a
ideologia e a política do desenvolvimento brasileiro, de 1945 a 1964) e da
dissertação de mestrado (sobre o comércio exterior brasileiro sob o impacto das
políticas dos anos 1960 e do primeiro choque do petróleo, em 1973). O projeto
de tese, centrado na noção de “revolução burguesa”, ainda era razoavelmente
poulantziano e intensamente florestânico, já que a intenção era “provar”, com Florestan
ou sem ele, que o capitalismo no Brasil tendia para o autoritarismo e para as
desigualdades estruturais (ainda que eu não acreditasse muito nessa história de
dependência, que sempre achei uma espécie de revisionismo mal feito do
marxismo). Mas a tese de doutorado ficaria temporariamente interrompida, pois,
depois de quase sete anos de exterior, planejei voltar ao Brasil, num momento
em que as promessas de abertura feitas pelo general Geisel pareciam reais e
sinceras.
Logo depois de minha
volta, em fevereiro ou março de 1977, sobreveio o “golpe de abril”, com novo
fechamento do Congresso, novas cassações e mais um curto ciclo repressivo –
inclusive com a tentativa de golpe do general Frota – antes da gradual abertura
preparada por Geisel e aplicada, erraticamente, por Figueiredo. Eu já estava no
Brasil, e mesmo que pretendesse, ainda, “derrubar a ditadura”, já não se
tratava mais de decretar a ditadura do proletariado e construir o socialismo, e
sim administrar um reformismo avançado nos quadros de um capitalismo possível,
ou seja, com todas as contradições que a economia de mercado possui num país
altamente estatizado como era o Brasil. Sim, a despeito de ser ainda um
socialista moderado, minhas inclinações anarquistas e libertárias me faziam ser
contra um papel muito preeminente para o Estado, justamente por ter assistido
às misérias do Estado todo poderoso nos tristes e lamentáveis experimentos da
Europa oriental e da União Soviética (eu tinha poucas informações sobre a
China, nessa época, pois ela se tinha fechado para a Revolução Cultural durante
quase toda a década, mas conhecia os livros de Alain Peyrefitte e de Simon
Leis, sobre as realidades detrás da “cortina de bambu”).
Não é o caso de refazer
aqui, esta parte de meu itinerário acadêmico e profissional, dominado pelo
ingresso na carreira diplomática e pela retomada do doutoramento, já num
sentido completamente diferente daquele traçado no projeto original, inclusive
porque isso seria um tanto enfadonho e nos desviaria do debate sobre o tema selecionado
para este ensaio: uma reflexão sobre a luta armada e seu peso, ainda hoje, na
política brasileira contemporânea. Interrompo, portanto, a descrição de minha
jornada intelectual em direção a uma modesta racionalidade instrumental e
retomo a discussão sobre um dos mais importantes elementos de anomia na atual
situação política brasileira: a tentativa que fazem os derrotados de 1964, de
1968 e do início dos anos 1970 – entre os quais eu poderia facilmente me
incluir, se não tivesse esse sentido de autocrítica que parece faltar a certos
personagens da política atual – de retornar ao passado para se vingar de quem
os impediu de perpetrar seus projetos de engenharia social (e de miséria moral,
nos campos político e social).
Continua...
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