Entrevista: Roberto Azevêdo
Veja, Páginas Amarelas, 19/05/2013
O diplomata brasileiro eleito para dirigir a Organização Mundial do Comércio, a OMC, condena o protecionismo e defende nova estratégia para derrubar as barreiras globais
A Organização Mundial do Comércio, com sede em Genebra, foi criada para estabelecer regras mais equânimes nas transações internacionais. A sua meta mais ambiciosa é dirimir as barreiras que atravancam as engrenagens do livre-comércio. A partir de setembro, a instituição estará sob o comando do embaixador brasileiro Roberto Azevêdo, de 55 anos. Sua principal missão será destravar as negociações da chamada Rodada Doha de liberalização dos mercados globais. Engenheiro por formação e funcionário do Itamaraty desde 1984, o baiano Azevêdo é elogiado pela capacidade de conciliação. Casado e pai de duas filhas, o embaixador tem experiência de quinze anos em negociações e disputas comerciais. Por telefone, de Genebra, Azevêdo falou a Veja.
O Brasil está entre os países mais fechados do mundo e tem sido criticado na própria Organização Mundial do Comércio por ter erguido, nos últimos anos, barreiras aos produtos importados. Como foi possível um diplomata brasileiro ser eleito o novo diretor-geral da OMC?
Independentemente das políticas econômicas e comerciais dos países que apresentaram candidatura, quem concorria ao cargo eram os candidatos. Estava sob análise a sua capacidade pessoal para liderar a organização. Quando os representantes me escolheram, fizeram a opção pelo perfil profissional e pessoal. A origem dos candidatos serve de referência, um pano de fundo para a trajetória dos candidatos, mas só isso. Nesse aspecto, ajudaram bastante a tradição multilateralista brasileira e a vocação de nossa diplomacia de buscar o consenso. A recente projeção do Brasil nos foros de governança mundial também foi importante nesse processo.
O que o Brasil e os países em desenvolvimento ganham com a sua eleição?
O Brasil buscou oferecer um nome capaz de recuperar a OMC como foro negociador e disciplinador do comércio global. Não nos interessa o retorno ao unilateralismo, como nos anos 1980, com a escalada de uma guerra comercial. Na medida em que eu consiga atingir esses objetivos, será um ganho enorme para o país. Além disso, é evidente que o Brasil ganha em termos de imagem e de prestígio. O que o Brasil não ganha é alguém que vá defender seus interesses na chefia da organização, porque eu trabalharei para o conjunto dos países. Sobre as nações em desenvolvimento, é um raciocínio semelhante. Elas terão na direção-geral uma pessoa que conhece os seus problemas. Mas isso não quer dizer que eu estarei no cargo defendendo os interesses delas, em detrimento dos direitos dos países avançados.
As maiores economias do mundo negociam acordos bilaterais ou regionais, como o que envolve os Estados Unidos e a União Europeia e o outro entre nações asiáticas. Qual é a função da OMC nessa nova realidade do comércio mundial?
Os acordos bilaterais e regionais não são uma novidade. As regras negociadas em 1947, na origem da OMC, já os contemplavam. Afinal, é mais fácil negociar entre poucos do que alcançar um consenso entre uma centena de países. A organização, na verdade, é a fundação sobre a qual todos acordos bilaterais e regionais se assentam. O problema é que a OMC não atualizou seus alicerces. O risco é haver uma distância crescente entre sua fundação multilateral e as bases dos acordos bilaterais. Isso levaria multiplicação de padrões aduaneiros e regulatórios nas negociações, encarecendo as transações comerciais. As regras que dão base ao sistema multilateral de comércio precisam refletir a realidade dos negócios. Há regras anacrônicas, criadas há trinta anos, que refletem uma situação que não existe mais.
Em quais áreas as regras da OMC precisam ser atualizadas?
Bons exemplos estão nas áreas financeira e de serviços, nas quais as mudanças ocorrem em uma velocidade extraordinária. O comércio eletrônico é outro exemplo. As transações são feitas atravessando fronteiras, sem passar pelo controle das autoridades financeiras ou monetárias. Há a área energética, com os combustíveis renováveis. Nada disso está refletido nas regras atuais da OMC. Mas, nos acordos bilaterais, muitos desses aspectos já são tratados.
O senhor anunciou como prioridade a retomada das negociações da Rodada Doha, de liberalização comercial em todo o mundo. Por que elas estancaram?
Os principais empecilhos estão na área de acesso a mercados, ou seja, nas negociações referentes à abertura dos mercados e aos compromissos para fazê-lo. Os entraves acontecem nas três principais vertentes da negociação: bens industriais, agricultura e serviços. A dificuldade está nas diferentes expectativas de avanço. Cada pane entende que faz um esforço excessivo nas áreas em que é mais sensível e que não está sendo compensada à altura nas áreas em que pode auferir ganhos. Os emergentes, como o Brasil, têm um interesse exportador agrícola muito forte. Pretendem derrubar os subsídios agrícolas dos países ricos, que resistem a ceder. Os países desenvolvidos gostariam que houvesse a queda das tarifas industriais e que o setor de serviços fosse liberado. Os emergentes, nas duas áreas, se situam do outro lado da mesa. A lógica é essa. Para destravar a negociação, precisamos de mais flexibilidade para aprofundar o acordo nas áreas em que isso for possível e ser mais modestos naquelas em que a sensibilidade dos países for mais alta.
O Brasil adotou, recentemente, medidas de salvaguarda contra importações chinesas e elevou as tarifas de uma centena de produtos. Outros países adotaram medidas semelhantes. O maior protecionismo se tomou irreversível?
A crise econômica e financeira de 2008 ainda não foi totalmente superada. Desde então, as políticas comerciais derraparam na direção de uma menor abertura e até mesmo de fechamento. Esse movimento negativo não foi estancado. É muito mais fácil fechar um mercado do que reabri-lo. A melhor maneira de evitar que esse movimento se alastre é, em primeiro lugar, disseminar a informação e conscientizar os membros de que o protecionismo é contagioso. Em última instância, uma escalada protecionista é lesiva a todos, não apenas àqueles que aplicam essas medidas. A outra forma de atuar é aperfeiçoar as regras da OMC, de maneira a reduzir o espaço para a adoção de medidas protecionistas. Isso depende do aprofundamento das negociações, justamente aquilo que desejamos reativar.
O Brasil priorizou a negociação multilateral e não avançou nos acordos bilaterais, diferentemente de outras economias. Foi uma estratégia equivocada?
Os dois caminhos, o do bilateralismo e o do multilateralismo, não são excludentes. Um país pode perseguir as duas vertentes. Fala-se muito que o Brasil apostou todas as fichas na Rodada Doha. Mas essa dinâmica não depende de uma opção soberana do Brasil. Há outros 158 países-membros na OMC. O que o país fez, no contexto de uma negociação multilateral que estava sendo impulsionada por todos os membros da OMC, foi adotar uma postura muito ativa, tentando fazer que as negociações avançassem no sentido que ele considerava ser de interesse da economia nacional. Não foi uma aposta do Brasil, mas de todos na OMC.
O livre-comércio mostrou-se benéfico para os países que o seguiram. Por que tantos ainda resistem?
Mesmo os países que adotaram o livre-comércio de maneira mais evidente não chegaram a esse estágio da noite para o dia. É um processo. Não acredito que a resistência seja uma opção deliberada pelo protecionismo. Isso seria um erro crasso. Porém a liberalização comercial tem um tempo distinto do tempo político. A abertura leva tempo para render frutos. Quando se abre um mercado, alguns setores menos competitivos precisam se adaptar. Isso tem um custo. O tempo político é mais curto. Seu horizonte é a próxima eleição. O livre comércio é, do ponto de vista acadêmico, associado de maneira inequívoca ao progresso e ao bem-estar. Mas, para os políticos e empresários locais, ele costuma ser visto como uma ameaça ao emprego, à estrutura produtiva, e não como uma oportunidade.
O protecionismo pode ser admitido em estágios iniciais de desenvolvimento?
Não acho que o grau de liberalização de uma economia deva obedecer a uma lógica de grau de desenvolvimento, e sim de uma estratégia cujo objetivo seja a participação competitiva na economia mundial. Há países em desenvolvimento que estão obtendo progressos com modelos comerciais muito abertos. Outros seguem caminhos diferentes. No nosso continente, há o exemplo do Chile, que fez uma abertura de mercado muito forte. No Sudeste Asiático, esses exemplos proliferam. Não existe uma receita pronta e acabada. Mas parece ser evidente que as economias fechadas tendem a malograr.
Como a política comercial brasileira se encaixa nessa avaliação?
Uma proteção que possa ser dada a um setor ou a um grupo de setores tem de fazer parte de uma estratégia clara de aumento de competitividade e, portanto, ter uma natureza transitória. Não pode ser uma medida permanente, com a lógica de fechar o mercado para impedir a competição. Um modelo que olhe estritamente para o mercado interno e se esqueça de buscar constantemente a competitividade internacional de seu parque produtivo fracassará inevitavelmente a longo prazo.
As economias emergentes já respondem por metade de tudo o que é comercializado no mundo. Como esse avanço afeta as negociações?
Os países emergentes tomaram-se mercados mais atraentes. Antes, um acordo poderia ser fechado deixando esses mercados para um segundo momento. Hoje, isso não é mais possível. Além de constituírem importantes mercados compradores, os emergentes passaram a competir palmo a palmo com os produtos fabricados pelos desenvolvidos. Isso muda, evidentemente, o foco das negociações. Elas ficaram mais complexas. No núcleo central, há perspectivas mais heterogêneas. Antes, o núcleo se dava entre economias mais homogêneas, dos países desenvolvidos. Hoje, as negociações precisam acomodar o fato de existir uma diversidade maior de perspectivas.
Um dos pilares da OMC é o sistema de solução de contenciosos entre países. As disputas duram anos, e milhares de dólares são gastos na contratação de escritórios e na produção de estudos. Por que, quando um país ganha o direito de retaliar, prefere muitas vezes não aplicar as sanções?
A taxa de cumprimento das recomendações do órgão de solução de controvérsias está em tomo de 85%. É um sistema eficiente. Sem ele, a situação seria muito pior. Mas a retaliação não tem vencedores. Isso porque as sanções, como o aumento da tarifa de importação de produtos do país que é punido, encarecem as cadeias produtivas, distorcem o comércio e aumentam os preços no mercado interno. No fundo, não prevalece a lógica de "onde eu ganho o outro perde". É a lógica de "onde eu causo um dano maior ao outro do que a mim". Os países preferem negociar um entendimento que seja mutuamente satisfatório. Foi o que aconteceu no caso entre Brasil e Canadá envolvendo a Embraer e a Bombardier, em que houve um acordo que regulamentou as condições de financiamento para a exportação de aeronaves.
O desmoronamento de uma fábrica têxtil em Bangladesh em abril, com mais de 1.000 mortos, expôs a precariedade das condições de trabalho em países asiáticos, focados na exportação de produtos baratos. Como a OMC pode coibir casos assim?
Foi uma tragédia lamentável. Suas causas têm raízes profundas, relacionadas à política econômica e social do país e às normas de urbanização e de infraestrutura. E há o lado estritamente ligado ao comércio. O assunto pode merecer uma avaliação completa dos países da OMC com o objetivo de encontrar formas de evitar que tragédias como essa se repitam. Para isso, é necessária uma discussão de conceitos dentro da organização. Como eu disse antes, as regras atuais refletem uma realidade de negócios prevalente trinta anos atrás e não favorecem essas novas e necessárias análises.
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