BRASIL – BOLÍVIA
Festival de covardia
Coluna / Rosângela Bittar
Valor Econômico, 4/06/2013
Ideologia, não é; integração regional, nem se fala; dependência econômica, longe disso; adulação comercial, ora, por quê? Política externa, então, passa ao longe e ao largo do que vem ocorrendo na relação Brasil-Bolívia, trincada por razões até agora tão inexplicáveis quanto incompreensíveis.
Descobriu-se, neste momento, em reportagem da "Folha de S. Paulo" sobre o que apurou comissão de sindicância do Itamaraty, que os laços diplomáticos entre Brasil e Bolívia não apenas não se recuperaram como estão mais desamarrados que nunca.
Em breve memória: em maio de 2012, o senador boliviano Roger Pinto Molina pediu asilo ao embaixador brasileiro na Bolívia, Marcel Biato, e passou a morar no escritório da embaixada enquanto aguardava o salvo conduto para se transferir para o território brasileiro. Nos dias 23 e 24 de agosto de 2013, 453 dias depois de ingressar na embaixada onde viveu em um escritório fechado a 4 mil metros de altitude, em condições precárias e doente, o senador foi levado em um carro oficial até Corumbá, no Mato Grosso do Sul, pelo ministro Eduardo Sabóia, encarregado de negócios e responsável pela embaixada na ausência temporária do embaixador, e de lá a Brasília, onde mora.
Abriu-se, então, uma crise diplomática, alimentada sobretudo pela condução que a presidente Dilma Rousseff deu ao caso. Aconselhada a telefonar ao presidente Evo Morales e liquidar o assunto numa explicação direta, objetiva e segura, informando que poderia ser feita a transferência com absoluta discrição, dada a tradição dos dois países em concessão de asilo, e que Morales poderia continuar dizendo que o senador era um preso comum, e não político, como exigia, a presidente não fez nada disso. Declarou que o diplomata Sabóia havia colocado em risco a vida de Pinto Molina, e passou a endurecer com os brasileiros e a fazer concessões a Evo Morales.
O Itamaraty abriu sindicância para apurar responsabilidades, mas a presidente já havia condenado por antecipação e as concessões surgiram em série.
O governo brasileiro rifou o embaixador Biato num momento de crise, com o senador asilado e uma torcida de corintianos presos em La Paz; demitiu o chanceler Antonio Patriota a pedido expresso de Morales; mandou para escanteio o ministro Eduardo Sabóia, enquanto responde à sindicância que, segundo informam autoridades, está pronta (duram 30 dias, essa já faz 10 meses) e engavetada; o senador Molina ainda aguarda o refúgio, em 2014, para um asilo pedido em 2012. Os brasileiros vão mal. Evo Morales vai muito bem, com uma pressão aqui, uma ameaça acolá, vai conseguindo o que quer. A presidente Dilma está alimentando o sentimento de onipotência do governo boliviano, é o que nota uma autoridade da Bolívia. Até o ex-chanceler Celso Amorim, e o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, foram sabotados na sua tentativa de ajudar a resolver o caso. Morales mandou inspecionar o avião que levou Amorim, em retaliação, o governo brasileiro não reagiu e os ministros silenciaram.
Sobreveio o caso da prisão dos torcedores corintianos, que não tardaram a entrar na barganha, e a segunda leva desses prisioneiros ganhou a liberdade quando Morales quis levar uma notícia boa ao ex-presidente Lula, em encontro em São Paulo, em jogada de marketing com a vida alheia. Autoridades bolivianas se manifestaram surpresas com a reação frouxa do Brasil. Um ministro chegou a dizer a uma autoridade brasileira que, "se querem ajudar o Evo Morales, digam não, ele precisa ouvir um não".
A presidente já mostrou que não tem paciência para a diplomacia que exige negociação, trabalho, conversa, e casos como esse não se resolvem com o básico, como prefere.
O que há de mais novo, sobre ele, é a informação, colhida em relatos a que a Folha teve acesso, de que nos depoimentos secretos à sindicância o ex-chanceler Antonio Patriota confirmou que houve proposta do Brasil, um ano depois da entrada do senador na embaixada, para que ele abrisse mão do asilo, numa carta a ser escrita à presidente Dilma. Em compensação o Brasil o levaria a um terceiro país, que poderia ser a Venezuela. A ideia do terceiro país foi uma das mais estapafúrdias registradas entre tantos absurdos.
Os casos de asilo são recorrentes na história dos dois países, e ocorreram normalmente, em outros governos, inclusive no de Lula, de onde o governo Dilma se origina. Uma curiosidade: em julho de 2013, um mês antes da operação de transferência do senador Pinto Molina, a Bolívia ofereceu asilo a Edward Snowden. Também um mês antes da operação, a Unasul aprovou o direito universal a asilo e explicitou que nenhum país poderia impedir o asilado de transitar até o país que concedeu o asilo. O Brasil estava cercado de leis e razão para se conduzir com coragem, mas não o fez.
Outras evidências no comportamento de autoridades bolivianas não estimularam o Brasil a rever seus equívocos, entre elas, a declaração da ministra da Justiça boliviana ao ministro da Justiça brasileiro que se o Brasil tirasse o senador, fariam "vistas grossas".
Quem deixou engrossar foi o governo brasileiro. Em lugar de um simples e rápido telefonema ao colega boliviano para explicações de praxe, a presidente Dilma alimentou a crise e Evo Morales fez bom proveito.
O governo brasileiro está mostrando que não se tratava da política de afinidade ideológica, tal o grau da trapalhada em que se enroscou. Tampouco tinha o objetivo de preservar a balança comercial. Se o Brasil é dependente da cocaína, do crack e do gás da Bolívia, a Bolívia é dependente do dinheiro dos produtos que vende.
Dez meses depois, o relatório da sindicância permanece na gaveta, talvez para sair depois das eleições, como tudo. Poderá concluir pela absolvição, exoneração ou advertência ao diplomata Eduardo Sabóia. O seu advogado, ex-presidente da OAB, Ophir Cavalcante, não admite nem advertência. Irá recorrer.
Pode-se criticar Jérôme Valcke, o irritadiço secretário-geral da Fifa, por tudo, mas não se pode duvidar de sua perspicácia. Na entrevista que deu ao "Globo", no domingo, provou ter entendido direitinho em que lugar do planeta está. Disse que, para o Brasil, ganhar a Copa interessa mais do que ter sucesso na organização do Mundial. Compreensão perfeita.
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