Crise no Brasil e seu impacto regional
Tullo Vigevani, Universidade Estadual Paulista
Coordinadoria Regional de Investiogaciones Económicas y Sociales
Tem
sido escrito muito sobre a crise brasileira. Aguçou-se decisivamente em
março de 2016. Neste 1 de maio, em que houve manifestações em favor de
Dilma Rousseff, e algumas contrárias, ninguém dúvida de que a maioria do
Senado aprovará o afastamento provisório da presidenta, talvez em 11 de
maio. Na Câmara dos Deputados a aceitação das acusações foi aprovada
amplamente, por mais de dois terços do plenário, 367 a 137, dia 17 de
abril.
A crise
tem raízes longínquas. Tem raízes na história do Brasil (lembremos
1954, 1961, 1964, talvez 1992, para não falar de antes). Mais
especificamente origina-se em 2005, quando começou a crise chamada
“mensalão”. O Partido dos Trabalhadores acreditou que poderia ser
superada com novas vitórias eleitorais. Os métodos para conseguir votos
no Parlamento de parte dos governos têm raízes seculares: oligarquia,
patrimonialismo, etc.. E continuaram depois da redemocratização e da
constituição de 1988, inclusive nos governos do PT. Ao mesmo tempo,
diferentes fatores confluíram para a criação de instrumentos do Estado
que fortaleceram os controles. Essa ação foi reconhecidamente levada
adiante e fortalecida pelo Partido dos Trabalhadores, nos governos Lula e
Rousseff. Some-se a isso novos regimes internacionais que também
estimularam controles, inclusive da corrupção. Não é nosso objetivo
discutir as causas da crise. Mas, pelas suas consequências para a
política externa do Brasil, algumas devem ser lembradas.
A
política internacional alcançou prestígio em alguns pontos, em geral
reconhecidos: visibilidade, soft-power, influência em algumas
negociações (OMC, Meio ambiente, sistema financeiro, integração
regional). Ao mesmo tempo, reconheça-se, foi combatida intensamente, ao
menos desde 2004, pela oposição, o DEM por exemplo, mas também pelo
PSDB. Tornou-se objeto de disputa interna de bastante importância.
Aspecto de alta relevância para a compreensão da atual situação a se
considerar é a gravíssima crise econômica. A política econômica
dirigiu-se ao objetivo de justiça social, grande bandeira foi o “combate
à fome” e à diminuição da extrema desigualdade. Segundo Pierre Salama, é
neste campo que deve ser encontrada a origem da atual tragédia. A
reprimarização da economia e a debilidade da política industrial também
têm origens remotas, certamente na segunda metade do governo Sarney, a
partir de 1988, onde os vetores globalização e comércio ganharam maior
peso. A abertura era inevitável, mas os instrumentos do Estado para a
adaptação, para alcançar competitividade, diferentemente de Coréia,
China, etc., permaneceram débeis. Os governos seguintes, inclusive o de
Cardoso, seguiram esse caminho. O governo Lula, apesar de algumas ações,
não contrastou a tendência, que finalmente levou à crise. O
desenvolvimento tecnológico, mesmo com a densidade do debate, não
conseguiu caminhar, reduzindo a competividade. Certamente outras causas
contribuíram, juros, taxa de câmbio, etc.. Inútil falar de preço de
matérias primas, de China, de Europa, têm sido bastante discutidos.
Fator
propriamente político dinamizador da crise é que os governos Lula e
Rousseff nunca foram reconhecidos como governos próprios de parte dos
poderes fortes, econômicos, sociais, burocráticos. Esses poderes
respeitaram e colaboraram durante algum tempo. Mas acreditavam não
tratar-se do governo deles. O que aconteceu em 2015 e nos primeiros
meses de 2016 é declaradamente o jogo do “quanto pior melhor”. É verdade
que não é fenômeno especificamente brasileiro, algo da relação dos
republicanos com Obama assemelha-se, quem se preocupa com
governabilidade os estudará. O resultado é que no governo Rousseff
evoluiu-se para a ingovernabilidade. Em interessante ponderação de
Roberto Schwartz, o risco é de dar-se a mesma tendência no futuro
governo Michel Temer ou quem seja. A oposição a Rousseff argui que o
impeachment está inscrito na constituição, o que é verdadeiro. Os
debates que levam a ele, como nunca antes na história, foram amplamente
divulgados. Nisso há diferença em relação aos chamados “novos golpes”. A
ampla divulgação teve a virtude de tornar públicos os argumentos a
favor e contra. Tanto os argumentos jurídicos quanto os políticos, no
mínimo, se mostraram sujeitos à sua refutação. O uso fora das normas dos
recursos públicos, acusação central, acabou tendo pouco peso frente ao
fato que o governo há bastante tempo tinha sua base parlamentar
corroída. Tudo isso coloca uma hipoteca sobre a legitimidade futura,
quaisquer sejam os desdobramentos imediatos. Pode-se prever
instabilidade, portanto consequências negativas para a ação
internacional do país, que serão superadas apenas a longo prazo. Com
legitimidade, estabilidade, com desenvolvimento.
Nosso
objetivo é discutir os impactos regionais, sul e latino-americanos da
crise. A relação entre política interna e internacional é de reconhecida
importância. A desaceleração econômica (PIB: -3,8 % em 2015) em curso
desde 2011 vem limitando a capacidade de ação do Brasil. Segundo
formuladores da política externa ligados ao Partido dos Trabalhadores,
essa limitação já está em curso, desativando parte das iniciativas que
dependem de uma presidência ativa. Um exemplo seria o congelamento do
IBAS (Fórum de Diálogo Índia, Brasil, África do Sul) e outro seria a
razoável passividade frente ao fracasso das negociações comerciais
multilaterais, com estancamento da Rodada Doha e semi-paralisia da OMC.
Sobre a política externa a consequência maior da crise foi um sentido de
paralisia, e sinais de movimentos que já levam a mudanças, algumas
delas convergindo com os objetivos declarados da oposição política.
Constrangimentos internos passaram a incidir de forma significativa,
ampliam a atuação de outros órgãos em áreas específicas. No tocante ao
comércio exterior, parte das iniciativas passaram ao Ministério do
Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior MDIC). Segundo notícias
de imprensa atribuídas ao vice-presidente Michel Temer, futuro
presidente se o afastamento da presidente se confirmar, o provável
ministro do Exterior, José Serra, deverá ter não apenas as atribuições
tradicionais, mas incorporar as negociações de comércio exterior até
agora geridas pelo MDIC.
Aspectos
menos discutidos também sinalizam debilitamento do softpower alcançado
nas administrações anteriores e baixa consideração do papel
internacional do Brasil. A falta de importância que nesta crise se
atribui a um dos trunfos alcançados anos atrás, a realização da
Olimpíada de 2016 no Rio de Janeiro, mostra o clima preocupante em que
se deverá debater a política externa. Apenas para lembrar, quando em
1992 cresceu na opinião pública, entre os partidos políticos e nas
elites, a pressão pelo impeachment do presidente Collor de Mello, houve
consenso no adiamento do processo para evitar uma grave crise ou um
vácuo de poder no momento da realização da Conferência das Nações Unidas
sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Rio 92.
Considerando
a crise, certamente haverá uma rediscussão da política externa. Há
forte pressão das forças que serão governo com o afastamento da
Presidenta (PSDB, DEM e mesmo do PMDB, este parte do atual e do futuro
governo, partido de Michel Temer), pela mudança de aspectos da política
regional e geral. As relações econômicas externas, sobretudo a não
inserção em cadeias produtivas globais, é objeto de críticas crescentes e
o movimento para maiores vínculos com os países centrais deverão
crescer. A busca do fortalecimento dos vínculos com a Aliança do
Pacífico em curso no governo Rousseff, sinalizará o caminho para a
discussão de novas relações com o TPP e, provavelmente, se fortalecerá a
busca de inserção no debate sobre a área de livre comércio EUA-UE.
Essas tendências deverão encontrar oposição das forças políticas e
sociais afastadas do governo, o que tornará a capacidade de negociar do
governo mais díficil. Será importante observar na nova relação de
forças, o comportamento das diferentes áreas empresariais, não apenas
industriais, mas também agro-business, serviços, bancos. Estes setores
terão que avaliar a relação custo/benefício da nova inserção. O que não é
simples. A nova geração de tratados assinados ou em negociação mostra
que grupos fortemente críticos são fortes em diferentes países.
No
caso do Mercosul, o objetivo de redução a uma área de livre comércio,
pode ferir interesses brasileiros consolidados. Certamente será um campo
em que a relação entre desejos e realidades se apresenta. Considerando
as dificuldades em que se encontram boa parte dos países da América do
Sul, aumentará a crítica ao Mercosul. Segundo essas críticas, o bloco
seria um obstáculo a acordos com outros países por ser uma união
alfandegária. Dificultaria acordos com as economias mais
desenvolvidas — sobretudo com Estados Unidos. Ao mesmo tempo, a
contrapressão das vantagens da união alfandegária para as empresas com
produtos de maior valor agregado é importante. Em 2014 produtos
manufaturados correspondiam a 77% do total das exportações brasileiras
para os outros membros do Mercosul. Enquanto para os outros principais
parceiros representaram: China, 4%; União Europeia, 37%; Estados Unidos
55%. Vistas algumas coincidências entre os membros fundadores do
Mercosul, é importante observar quais propostas poderiam ser elaboradas
no Palacio San Martin e no Palácio do Itamaraty.
No
caso da Unasul, a ideia de cooperação poderia ser preservada, visto
tratar-se de compromisso menos vinculante. De todo modo, os planos que
dependem de aportes brasileiros não estão assegurados. Os
financiamentos, com origem no Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES), são objeto de forte crítica, estimulando
Ministério da Fazenda, do Planejamento e Banco Central a restringirem a
continuidade.
A
crise econômica e o combate à corrupção tiveram como subproduto o
enfraquecimento de alguns dos grandes grupos empresariais, estatais ou
privados, que deram sustentação a uma política externa mais ativa na
região, quando se esboçou o fortalecimento da presença economica
regional de parte do Brasil. Empresas como Petrobras, grandes
empreiteiras da área da construção civil e pesada, e mesmo grupos
industriais e de serviços, estão enfraquecidos, alguns correm o risco de
destruição.
A
atual crise demonstra porque não se podia dizer que a política
brasileira, particularmente a hemisférica, mesmo durante o governo Lula,
tivesse preocupação por uma liderança acima das próprias
possibilidades. O interesse pela região sul-americana é fator histórico
estruturante da política exterior. Isso não será modificado, qualquer
seja o resultado da atual crise. O que existe e assim continuará por
alguns anos, é enfraquecimento de atuação, mesmo considerando que o
maior peso relativo do Brasil continuará existindo. A melhoria das
relações com os Estados Unidos ganharão relevância.
O
Estado brasileiro deverá manter os compromissos com as organizações
regionais. Após um período de posicionamento forte contra o
unilateralismo norte-americano, Iran, NSA, há o crescimento da
reivindicação de empresários, forças políticas, com impacto na
administração do Estado, visando a adesão a regimes internacionais
formatados pelos Estados centrais. Objetivamente, o Brasil continua como
ator de média capacidade internacional, é contribuinte médio na
assistência humanitária internacional, é contribuinte significativo para
as ações de peacekeeping da ONU, tornou-se uma razoável referência nos
índices de desenvolvimento humano, participa em cargos significativos
nas organizações internacionais (WTO, FAO, etc.), é membro do G-20
financeiro, teve sua quota de participação no IMF aumentada de 1,78 %
para 2,3%, juntamente com os outros países BRICS.
Portanto,
a crise que tem pesado impacto de curto prazo não deverá eliminar
traços clássicos da política externa brasileira. O interesse pelas
relações com a China e pela ativa participação em diferentes fóruns
internacionais, particularmente os BRICS, provavelmente será mantido. Os
atuais impasses no cenário político doméstico não se resolverão
rapidamente, mesmo com Temer na presidência. A pergunta que podemos
fazer, sem resposta, é se o continuo agravamento da crise deixa em
aberto a possibilidade de mudanças radicais nos valores de autonomia,
soberania, multilateralismo e no objetivo de fortalecimento das
instituições regionais. Nossa hipótese é que mudanças radicais não são
possíveis. O Brasil participa há décadas, desde os anos 1980, dos
principais regimes internacionais, tendo inclusive um papel destacado na
sua elaboração, como é o caso do clima, foi ator relevante na
construção das instituições regionais nas décadas de 1980, 90 e em todos
os anos 2000. O que é verdade é que a crise, sobretudo econômica,
debilita a capacidade de ação. Isso perdurará, ao que deve se
acrescentar um período de crise de confiança na estabilidade e na
legitimidade da governança no Brasil.
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