domingo, 1 de outubro de 2017

O totalitarismo brasileiro em construcao - Carlos Pozzobon (2010)

No terço final de uma longa resenha do livro de Hannah Arendt, "Origens do Totalitarismo", Carlos Pozzobon oferece sua visão do totalitarismo brasileiro em construção.
Vale transcrever a partir desta postagem em seu blog de resenhas de livros:
http://carlosupozzobon.blogspot.com.br/2011/12/as-origens-do-totalitarismo.html

Totalitarismo brasileiro em construção

Carlos Pozzobon

 19/9/2010

Tudo começou na ditadura militar moribunda de 1964, onde um marxismo perseguido e multifacetado passa a trabalhar socialmente como proselitismo de uma causa que precisa de vínculos com organizações sociais. Encontra nos sindicatos obrigatórios uma dádiva dos céus para aprofundar raízes.
O peleguismo tradicional precisa ser substituído com o método de se dizer o contrário do que se vai fazer. Inicialmente, criticando a obrigatoriedade do imposto sindical – atitude importante para provocar simpatia na sociedade. A imprensa saúda o movimento como renovador da velha tradição fascista. O prestígio começa a fluir para líderes que não são mais do que apedeutas e marionetes. Em seguida, formados os sindicatos mais importantes, uma nova lei sindical vai dar organicidade às confederações, federações e entidades coligadas com, naturalmente, imposto sindical obrigatório, o contrário do que se dizia. Nos sindicatos, a fachada de modernidade se desmancha na prática do atraso. Agora o que se pretendia combater foi invertido.
Na intimidade da mente totalitária, ocorrem as inversões praticadas por Stalin: “sempre tomar o cuidado em dizer o contrário do que fez e fazer o contrário do que disse”. É a sociopatia juntando má-fé e compulsão para mentir, mas que rende extraordinários resultados eleitorais ao sistema. No poder, o partido precisa construir a todo custo uma maioria eleitoral para impedir a alternância. Essa maioria não virá de partidos políticos, mas de organizações sociais. O partido passa a controlar diretamente os sindicatos, impedindo por decreto a auditoria das contas sindicais pelos órgãos do Estado (TCU). Nos comícios, o partido convoca os sindicatos para uma demonstração de força, que assim demonstram sua subserviência ao poder. Comandando a turba, juntamente com as organizações sociais, estão os movimentos liderados por funcionários de entidades e empresas estatais.
Organizações sociais, do tipo MST e Via Campesina, já demonstraram o novo modelo de fascismo no campo: ao arbítrio de seus líderes, propriedades invadidas são acobertadas pelos vínculos partidários nas estatais, que fornecem a legalidade instrumental para declarar terras improdutivas, independentemente de sua real situação, e a liberdade para os saques. Um exército de mercenários sustentado por verbas da reforma agrária se mobiliza contra o trabalho agrícola de larga escala, retalhando a propriedade invadida em casas de campo para seus dirigentes, ou repassando a propriedade a terceiros, que, por sua vez, terminam gerando quase nenhuma produtividade. Verbas generosas salvam o movimento que aumenta seu contingente em todos os Estados da federação. Com pretexto para mobilizações, repetem que querem a reforma agrária, mas não querem coisa nenhuma.
Tudo isso é apenas fachadismo, um mito imaginário de justiça agrária para boi dormir. Esperamos pela alternância do Poder para algum dia virem à tona os cálculos do que se gastou com a reforma agrária desde a época FHC, e do quanto se produz nas propriedades desapropriadas. Aí então vamos calcular o quanto custou ao povo brasileiro o feijão da reforma agrária, e vamos desmascarar o mito dividindo a produção pelo dinheiro gasto historicamente. Vai ser uma comédia de erros ou mais uma conta para o desperdício espetacular dos recursos públicos do nosso sistema político.
Na genealogia do totalitarismo, uma crise econômica rompe a indiferença dos indivíduos para com a gestão governamental. Ao mesmo tempo, a delinquência política aumenta, os bodes expiatórios se sucedem, reconhecidos picaretas assumem o comando de instituições públicas. Um misto de besteirol com corrupção deslavada, de negociatas com agitação trabalhista, de cinismo com estupidez acomete a Nação.
Aparecem soluções salvacionistas. A levedura fascista borbulha com o esbravejar espumante de aventureiros, falidos, oportunistas, matusquelas, celerados ideológicos e o diabo-a-quatro. Às vezes, parece que a insanidade toma conta da Nação, e vai abrindo espaço para o rasgar sucessivo de leis, de procedimentos e atos legais. Uma onda de calúnia vai manchando reputações, denegrindo a inteligência, acuando a intelectualidade do país. A chusma aplaude entusiástica aquilo que em uma sociedade organizada é vigarice intelectual.
Em certo momento, vem o golpe: fecha-se o parlamento e surge o governo por decreto. Aparelha-se a polícia para limpar a sociedade dos elementos indesejáveis. O totalitarismo, assim como o nazismo, o stalinismo e tampouco o getulismo, não se baseia no poder ditatorial do exército. O governo ditatorial domina o aparato policial que, subordinado ao mandatário, age estritamente sob suas ordens. A neutralização militar é facilmente conquistada nas empresas e agências estatais, ou no lobby privado – o getulismo subornou os militares entregando cargos públicos aos tenentes.
Mesmo assim, o descontentamento entre os setores profissionais das forças armadas torna-se visível em manifestos e circulares. A tensão conspiratória aumenta. Algumas vozes aparecem pedindo intervenção militar, argumentando um totalitarismo irreversível. Outras vozes clamam mais alto pedindo prudência, temerosas de que a intervenção militar possa gerar uma sucessão de eventos incontroláveis. O passado é relembrado como um exemplo a ser evitado. Mas, a cada dia, o presente demonstra que as coisas avançam na direção de tudo piorar, mais do que no passado. No meio do relativismo, quem vai dar a palavra final é o povo que espera ser convocado às ruas.
Enquanto isso, a crise avança. No estado policial aparecem as grandes inversões. Mede-se o mérito pelas denúncias de cidadãos contra os inimigos do povo ou da nova ordem. Oferecem-se recompensas pela captura dos dissidentes. Slogans nacionalistas, refrões musicais, gingles do governo e propagandas acintosas produzem a lavagem cerebral necessária à legitimidade do regime.
A imprensa livre é atacada consecutivamente — jamais ao mesmo tempo. Primeiro, um grupo jornalístico é atingido por uma lei criada contra uma particularidade das empresas de comunicação. Depois, são forjadas fraudes contra outros, intervenções garantem o silenciamento, enquanto novos decretos dão legitimidade ao regime para garantir o avanço de grupos empasteladores que exultam com os novos tempos.
Neste momento, é preciso fechar as vias de informação internacionais. A Internet é constantemente manipulada para bloquear os sites que criticam o novo regime. Para não provocar a reação de toda a sociedade, o fechamento vai se sucedendo em intervalos, enquanto o governo vai ampliando seu poder de penetração no financiamento de novos portais de comunicação, de rádios e jornais, que passam a legitimar o avanço fascista e aumentar o tom de apoio ao governo.
Prisões na calada da noite, espancamentos, confissões forjadas e irradiadas para todo o país envergonham a serenidade do povo e avacalham a sobriedade indispensável à ordem republicana. Quando uma pessoa é invadida em sua intimidade, com propósitos de calúnias e dossiês, logo um exército de mercenários ocupa o maior número possível de espaços de discussão para destruir a respeitabilidade de inocentes. Baseando-se na estratégia de culpar a vítima para jogar na mesma lama violadores constitucionais e inocentes difamados, uma poderosa máquina de jornais e revistas paga com dinheiro público põe-se em ação para enxovalhar pessoas. Desavergonhados riem-se cinicamente do constrangimento de quem tem uma reputação a defender.
O país vive uma constante mudança: currículos escolares, cursos de patavina para valdevinos são prestigiados, concursos literários, poemas exaltando o grande chefe ou o sacrifício dos espoliados pelo antigo regime são consagrados como peças literárias imortais. Uma simbologia estabelece o novo status social para a oligarquia emergente: o regime começa a acumular vaidades.
Entretanto, as coisas começam a dar errado na ordem econômica. Por razões óbvias, o regime não foi capaz de se manter dentro dos limites da sanidade fiscal. E então o plano inclinado da ordem moral revela-se com o mesmo declive na ordem econômica. Os bodes expiatórios começam a dar explicação para o fracasso. Os delinquentes intelectuais voltam-se para o passado, com o pretexto de aliviar a crise com motivações remotas. A história é reescrita para glorificar os dirigentes, o presente e a verdade universal da linha do partido. Mobilizações de massa, comícios gigantescos colocam em ação o aparelho estatal e assumem o espetáculo expiatório da própria decadência do regime em um tom pomposo e solene.
Para salvar as aparências, delegações de economistas saem à cata de empréstimos externos. Uma engenharia financeira é colocada a serviço da empulhação dos déficits e da desconfiança na moeda. A inflação começa a devorar seus filhos mais fracos. Por algum tempo, o regime oscila entre a estabilidade da ordem e o terror patológico da insurreição. Em ritmo não de todo controlado, começam a aparecer os primeiros sinais de descontentamento.
A ordem balança, e a estabilidade fica condicionada à sua capacidade de dar resposta repressiva aos inimigos pontuais. Em todos os locais, a despersonalização aumenta e a expressão espontânea do povo some como por encanto. Todos fazem de conta que não se conhecem, que nunca se viram, que não são uma sociedade interativa, a menos do espírito conspiratório e da insurgência latente.
A sorte do regime está selada com as vagas incertas das circunstâncias internacionais. Ninguém sabe ao certo até quando o festival de arbitrariedades vai durar. Ninguém sabe ao certo se algum dia o país será capaz de se curar da insensatez. Mas a verdade é que, no fundo, no mais recôndito de todos os seres, a esperança não passa de uma vela acesa ao relento.
De repente, uma oposição fragilizada é cooptada na rede da oligarquia perene. O regime, sempre obsequioso em criar vínculos e benesses para arregimentar novos seguidores, sabe que precisa de ‘reformas’ para se revitalizar. E aquilo que era a oposição multifacetada passa a ser situação integrada, maldizendo o passado, cortando gastos, atingindo órgãos perdulários há muito tempo para serem extintos. Refaz-se a moeda, cortam-se os zeros inflacionários para se manter tudo como está em nome de uma constituição que, examinada a fundo, não passa de arranjos vexaminosos.
É o suborno intelectual obtido com recompensas políticas. A perenidade do regime está em sua capacidade de subornar. Subornam-se com viagens, com horas-extras, com cargos de comissão, com um segundo emprego, com vantagens, com retroações de benefícios no tempo, com toda uma maquinaria inexistente no capitalismo, e que faz do regime de iniquidades algo muito melhor do que qualquer coisa jamais descoberta na face da terra para os que participam do reservado círculo do poder.
Cria-se uma linguagem para lastimar a pobreza que o regime solenemente criou: nela, palavras-chave como elite, aristocracia, capitalismo, forças ocultas, exploradores, imperialismo ou qualquer outra, formam o glossário mais frequente no vocabulário político expiatório.
Na folha de pagamento dos governos estaduais, 30% do funcionalismo não trabalha, dedica-se ao absenteísmo alternado. Os demais, ao burocratismo feroz. O impedimento é sua marca mais nítida. Departamentos inteiros dedicados a aplicar regras de proibições, discriminações, exceções, de senões e mais senões com certidões, atestados e quetais.
Como casas da mãe-joana, as Assembleias Legislativas desfilam famílias inteiras na folha de pagamento de assessores. Nas prefeituras, em paralelo com os abnegados de sempre, o burocratismo e os maus tratos com o patrimônio público chegam às raias de sabotagem de guerra não declarada. Congresso e Senado são gerenciados por atos secretos. Nas prefeituras e universidades, são comuns salários duplos, triplos, quádruplos. Funcionários fantasmas se acumulam do Oiapoque ao Chuí.
A entropia produzida pela delinquência partidária chega a um ponto tal que as poucas vozes discordantes ficam reduzidas a uma minoria inexpressiva eleitoralmente — é a inteligência do país relegada a uns gatos pingados, o fascismo perene, a sociedade do vale-tudo, o regime que fornece recompensa àqueles a quem a astúcia está associada com as piores qualidade morais.
O dinheiro dos impostos de quase 130 milhões de brasileiros e de milhares de empresas é gasto com 5-10 milhões de funcionários públicos e dependentes, dos quais 1 milhão de privilegiados, e dentre esses, uns 100 mil formam uma oligarquia intocável, inamovível e inimputável. Assim é o regime fascista. Ele se baseia na lógica do consórcio: para se ter uma oligarquia, é fundamental que um não se imiscua no butim do outro, e que haja divisão entre todos. Assim, todos se absolvem e se protegem, igualando-se na mesma promiscuidade libertina.
Doenças intelectuais invadem a consciência da Nação com o empreguismo, o coitadismo, o concessionismo, o assistencialismo, o niilismo, e um sistema político que não se renova, que não se extirpa, sustentado por um judiciário que negocia sua tabela de preços aos cochichos, e que avacalha o bem pensar e a própria lógica com certas absolvições.
A contradição entre a lei e a moral provoca o espírito de depredação do patrimônio público. É o carimbo do brasileiro revoltado. A qualquer momento, e sob qualquer pretexto, aquilo que foi conseguido a duras penas para a população vem abaixo com o vandalismo explodindo pela prática corriqueira da exclusão social e dos privilégios legais. Comportamento anárquico forjado no dia-a-dia do ressentimento.
Estelionatários, fraudadores, peculatários, corruptos, todos se apresentam para o coquetel licitatório de onde sairão os contratos mercantis para a transferência de bens e serviços com descontos por fora, com dinheiro na cueca, com contas offshore, com maletas de mão em mão.
Parece que o princípio marxista de ‘a cada um segundo suas necessidades’ toma conta dos propinistas. Todos cobram uma parte, a corrupção se espalha como uma praga. As eleições são o sintoma evidente. Cabos eleitorais se licenciam dos empregos no magistério com remuneração garantida, migram para os gabinetes de assessorias e cargos comissionados, e se apresentam como organizadores de comícios, de panfletagens, de visitas de candidatos.
A máquina pública é posta em ação para a disputa. Vence o mais forte, o Partido que acumulou mais dinheiro do butim, e mais infraestrutura no aparelhamento estatal. O povo trabalhador contempla estupefato entre a sandice dos discursos e a cara-de-pau dos pretendentes. Às vezes, parece que certos candidatos não têm superego, pois, tomados pela pusilanimidade e desfaçatez do momento, lhes falta o recato inerente à vida social. Seus discursos são torpezas pronunciadas no maior descaramento.
Quando afinal os desmandos atingem o ápice, a Nação está empobrecida, décadas foram perdidas, a produtividade em baixa, os serviços públicos aviltados, e parte do povo moralmente depravada. Nova liderança assume o poder para acabar com os desmandos. E o que se consegue auditar do vendaval de destruição do patrimônio da Nação é muito pouco, tímidas reformas ficaram no meio do caminho.
Mesmo assim, uma nova época é celebrada, novas esperanças ressurgem, um novo otimismo toma conta do espírito da Nação, que já traz embutido o germe de sua destruição pela fraqueza intelectual de seus epígonos ou pela manutenção do ancien régime, sob as cinzas do novo tempo.
O espírito de conciliação faz o estrago previsto ao manter, sob o manto da legalidade, a proteção dos estelionatários. Em nome da paz social, estende-se uma anistia aos velhos prevaricadores, em geral, com aposentadorias integrais — forma de suborno preferida no século XX.
Sob as mudanças introduzidas, tudo melhora desde que se conservem as raízes do atraso, que brotam novamente com o mesmo romantismo da igualdade, da moralidade, da virtude, agora com novos protagonistas, com uma nova geração. Com a tomada do poder, termina o novo ciclo, tudo se dissolve, e se chega à infeliz contabilidade de que o engodo é o mesmo, só mudaram as moscas. Do ponto de vista moral, não cruzamos o século XVIII.
Lampedusamente, tudo muda, tudo se transforma, mas não a ponto de se derrubar a oligarquia perene e se descobrir o virtuoso caminho da grande Nação que nos foi reservada pela natureza.

FIM — 19/9/2010

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