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sábado, 2 de fevereiro de 2019

O chanceler quer apagar a historia do Brasil - ELiane Brum (El Pais)

O chanceler quer apagar a história do Brasil

Como o ideólogo do governo Bolsonaro usa José de Alencar para pregar a assimilação dos indígenas e justificar a abertura de suas terras para o agronegócio

Chanceler Ernesto Araújo
Ernesto Araújo toma posse como ministro das Relações Exteriores, em 2 de janeiro de 2019.  Agência Brasil
“Vamos ler menos The New York Times, e mais José de Alencar e Gonçalves Dias”, afirmou o chanceler do bolsonarismo, Ernesto Araújo, em seu discurso de posse. Por quê?
Prestar atenção ao que diz o chanceler Ernesto Araújo tem se mostrado tarefa penosa, mas fundamental para compreender como a ideologia do Governo Bolsonaroestá sendo construída. O diplomata foi indicado por Olavo de Carvalho, considerado o “guru da nova direita” brasileira, desde sua casa nos Estados Unidos. Claramente, Araújo tem a pretensão de dar a base intelectual ao que o bolsonarismo chama de “nova era”. Se integrantes mais preparados do governo concordam, há dúvidas robustas para suspeitar que não. Araújo, porém, segue firme em seu propósito, publicando artigos onde consegue espaço.
O discurso de posse como novo ministro de Relações Exteriores é uma falsificação da história, com o objetivo de justificar o presente e o futuro próximo. Para fazer parecer que a estrutura parava em pé, o chanceler usou seu grego, seu latim e até mesmo seu tupi, abusou do recurso do name-dropping (ótima expressão em língua inglesa para aqueles que desfiam nomes e citações para impressionar o interlocutor), dos clássicos à cultura pop. Todos já bem mortos, para que nenhum deles pudesse contestar a citação. Nenhuma de suas escolhas é um acaso. Vale a pena se deter em cada uma delas porque, como já escrevi neste espaço, os malucos agora sapateiam no palco — e sapateiam com poder de destruição.
Ernesto Araújo é um personagem ainda obscuro para o Brasil, embora seja um diplomata de carreira do Itamaraty. Em seu discurso, ele dispôs de figuras e acontecimentos históricos, assim como artistas contemporâneos, como se eles estivessem misturados como bonecos de plástico numa prateleira, para serem usados ao gosto do freguês — e para o propósito do freguês. Arrancados de seu contexto e esvaziados de conteúdo, eles foram manipulados pelo chanceler para produzir a sua falsificação. Cada frase tem ali um objetivo.
Me detenho apenas em uma, que chamou particular atenção e foi reproduzida várias vezes na imprensa e nas redes sociais, com a qual abro esse artigo: “Vamos ler menos The New York Times, e mais José de Alencar e Gonçalves Dias”. Por quê?
Não é preciso ter inteligência acima da média para perceber que não faz nenhum sentido contrapor um dos mais importantes jornais do mundo, com edição diária, e dois escritores do romantismo brasileiro do século 19. O objetivo é exacerbar um nacionalismo que se ajoelha diante de Donald Trump, mas despreza a independência do New York Times; idolatra o WhatsApp e o Facebook de Mark Zuckerberg, mas achincalha a imprensa brasileira.
O chanceler quer menos denúncias bem apuradas e checadas contra Bolsonaro e contra os abusos do seu governo, documentados pelo Times e pelos principais jornais do mundo onde a imprensa é livre. Menos imprensa, convertida declaradamente em “inimiga pública”, por Bolsonaro e seus papagaios, porque querem falar diretamente com seus seguidores sem serem perturbados. Do contrário, teriam que responder perguntas difíceis e explicar depósitos de Queiroz na conta da primeira-dama.
Para não terem que prestar contas de seu governo ao público, é preciso destruir a credibilidade da imprensa. Sim, porque um tuíte ou um “live” no Facebook não é prestar contas, é apenas dizer o que quer, como faz a maioria, sem correr o risco de ser contestado com fatos e provas. O que os bolsonaristas querem fazer parecer democracia é apenas autoritarismo e já foi usado antes por governos totalitários, mas sem a enorme facilidade das redes sociais da internet.
O bolsonarismo quer inventar seus próprios fatos
A imprensa só faz sentido se fiscalizar o governo, qualquer governo. A frase do senador americano Daniel Patrick Moynihan (1927-2003) já se tornou clichê, mas ela é precisa: “Você tem direito a suas próprias opiniões, mas não a seus próprios fatos”. A luta dos bolsonaristas é para inventar seus próprios fatos, de modo que a realidade não importe nem atrapalhe seu projeto de poder.
Mas por que José de Alencar (1829-1877) e Gonçalves Dias (1823-1864), dois escritores do Brasil do século 19, que escreveram no Brasil imperial, durante o reinado de Dom Pedro II?
Essa escolha é capciosa, como todas as outras. E se refere a uma suposta identidade nacional. Alencar e Dias são expoentes do romantismo na literatura brasileira — um na prosa, o outro na poesia. Eles viveram e escreveram sua obra num momento muito particular do Brasil. O país se tornara independente de Portugal, o que significava que deixava de ser colônia dos portugueses.
Na visão dos homens daquela época (e eram majoritariamente homens, porque as mulheres, exceto raríssimas exceções, não tinham voz pública), era necessário criar uma identidade nacional. Para isso, seria preciso marcar essa identidade no campo da cultura. O Brasil deveria ter, ao mesmo tempo, uma literatura que o colocasse no mesmo patamar da Europa, que vivia a fase do romantismo, e ser ele próprio um novo que emergia após os séculos de domínio português. Gonçalves Dias e José de Alencar entregaram-se a essa tarefa. Não foram os únicos, mas tornaram-se referências do romantismo que inaugurava o que se chamou de literatura brasileira.
Para o ideólogo do governo, Bolsonaro seria uma espécie de Dom Pedro I declarando a segunda independência do Brasil
O chanceler de Bolsonaro exalta um momento da história do Brasil em que as elites se empenham em criar uma identidade nacional depois de o país ter sido colônia de Portugal. Araújo parece acreditar — ou quer que acreditemos — que o governo Bolsonaro está promovendo “o renascimento político e espiritual” do Brasil, como ele escreveu em um artigo. Ou, como afirmou em seu discurso de posse: “Reconquistar o Brasil e devolver o Brasil aos brasileiros”. Araújo quer que acreditemos que tudo o que aconteceu entre a independência do Brasil, a de 1822 — e a nova independência do Brasil, a que ele acredita estar sendo liderada pelo seu chefe, em 2019 — não existiu.
O ideólogo do governo parece sugerir que esse hiato de dois séculos foi um tempo de perdição do Brasil de si mesmo. “O presidente Bolsonaro disse que nós estamos vivendo o momento de uma nova Independência. É isso que os brasileiros profundamente sentimos”, afirma Araújo, que acredita ainda que suas cordas vocais libertam a voz do povo. Bolsonaro seria então uma versão contemporânea de Dom Pedro I, com sua espada em riste para libertar o Brasil. Não mais diante do riacho Ipiranga, agora no espelho d’água do Planalto.
O chanceler acessa esse episódio em dois momentos de sua vida, como ele mesmo relata no discurso de posse: “Eu me lembro da emoção que eu senti pela primeira vez, quando era Terceiro Secretário (do Itamaraty), que subi as escadas para este terceiro andar, e vi, logo ao subir a escada, o quadro da Coroação de Dom Pedro 1º e o quadro do Grito do Ipiranga. Imediatamente, eu, que tinha 22 anos, me lembrei de quando tinha 5 anos e assisti maravilhado no cinema ao filme ‘Independência ou Morte’, com Tarcísio Meira e Glória Menezes. E pensei: então tudo isso existe, né? Tudo isso existe... e tudo isso é aqui!”.
Pois é. Em outro ponto, com a sutileza de dar alguns parágrafos de intervalo, o admirador de Dom Pedro I e de Tarcísio Meira usa um tuíte para comparar Bolsonaro à rainha Elizabeth II, da Inglaterra: “Vou dar um exemplo do que temos para ouvir. É o comentário de uma pessoa que segue a minha conta do Twitter, que diz o seguinte... li isso ontem: ‘Antes eu não entendia o amor do povo da Inglaterra pela rainha. Agora entendo. Quando temos alguém que ama seu país e seu povo e os defende, ganha amor e respeito. Não conhecíamos isso antes de Bolsonaro’”.
Em nenhum momento os indígenas são citados nominalmente no discurso de posse do ideólogo do governo de extrema direita, o que em si já diz bastante coisa. Mas uma das línguas indígenas, o tupi, se faz presente. De que modo, porém? Na Ave Maria em tupi do padre José de Anchieta, jesuíta canonizado santo pela Igreja Católica. A língua do indígena usada para catequizá-lo numa religião alienígena às suas crenças. A escolha não é um detalhe. Sem a experiência da cultura, que confere carne à língua e conteúdo às palavras, a língua nada é. Apenas casca, como casca era o indígena do romantismo do século 19.
O bolsochanceler exalta José de Alencar, o escritor que fez do índio “um cavaleiro português no corpo de um selvagem”
O escritor José de Alencar é o principal expoente da prosa do que se chama “indianismo” na literatura brasileira. Em três livros — O Guarani (1857), Iracema(1865) e Ubirajara (1874) —, ele busca construir uma identidade nacional fiel aos princípios do romantismo. Como o romantismo europeu é marcado por uma ideia heroica do cavaleiro medieval, Alencar torna o indígena um cavaleiro medieval ambientado na exuberante paisagem tropical do Brasil.
O indígena, habitante nativo que vivia na terra antes do domínio europeu, seria o herói genuinamente brasileiro da nação que se declara independente da metrópole. Mas com todas as qualidades atribuídas à cavalaria, na Idade Média, transplantadas para seu corpo e sua alma. A coragem, a lealdade, a generosidade, a partir de um ponto de vista que servia à manutenção do sistema feudal, e o amor cortês. Para escritores da época de José de Alencar e de Gonçalves Dias, que viviam o período pós-independência do Brasil, escrever era um ato de patriotismo. Eles teriam de dizer com sua obra o que é “ser brasileiro”. É também essa referência que o ideólogo do governo procura resgatar e enaltecer.
Os negros, corpos escravizados que moviam a economia do Brasil e serviam às suas elites, não estavam presentes como formadores de uma identidade nacional nestes romances de fundação. Se os escritores buscavam uma identidade nacional, ela era forjada dentro da matriz europeia. Como seria possível escrever em língua portuguesa, a do colonizador, sem ser colonizado na linguagem, foi uma questão crucial para a qual Alencar e outros também tentaram dar uma resposta no século 19. Mas este é um tema longo para outra conversa.
Em artigo no Nexo, Vinícius Rodrigues Vieira, professor-visitante do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP), afirma: “Araújo — assim como as alas mais conservadoras do governo — ambiciona o retorno a uma identidade nacional pré-freyriana, ou seja, antes das ideias que ficaram associadas a Gilberto Freyre. Em suma, o ideal de sincretismo encarnado na malfadada expressão ‘democracia racial’. Não à toa o ministro citou em seu discurso de posse o romancista José de Alencar, cujas obras claramente buscavam no indígena harmonizado com o colonizador as raízes de nossa nacionalidade, sem considerar o legado africano”.
“Crede-me, Álvaro, é um cavalheiro português no corpo de um selvagem!” A frase é de D. Antônio de Mariz, fidalgo português e um dos fundadores da cidade do Rio de Janeiro na obra de José de Alencar. Assim o personagem é descrito em O Guarani, primeiro romance indianista do escritor, publicado na época como folhetim, com grande sucesso: “Homem de valor, experimentado na guerra, ativo, afeito a combater os índios, prestou grandes serviços nas descobertas e explorações do interior de Minas e Espírito Santo. Em recompensa do seu merecimento, o governador Mem de Sá lhe havia dado uma sesmaria de uma légua com fundo sobre o sertão, a qual depois de haver explorado, deixou por muito tempo devoluta”.
O “cavaleiro português no corpo de um selvagem” é Peri, um indígena do povo Goytacá, que desde que salvou da morte Cecília, a filha do fidalgo, um “anjo louro de olhos azuis”, é adotado pelo clã dos Mariz. Peri passa a viver numa cabana perto da casa da família, uma espécie de castelo onde o escritor reproduz as relações de vassalagem do feudalismo que o Brasil nunca teve, mas parte da Europa sim.
Peri faz todas as vontades da moça, a quem serve como um cão de estimação. Diz Isabel, outra personagem: “Pedirás a meu tio para caçar-te outro que farás domesticar, e ficará mais manso do que o teu Peri”.
Peri era manso, domesticado. Mas valente. Quando D. Diogo, filho do fidalgo, mata por acidente uma Aymoré, este povo indígena tenta vingar-se matando Ceci, mas é impedido por Peri. A tensão cresce entre a família portuguesa e o povo indígena. Peri arma então a estratégia de envenenar-se para combater os Aymoré. Como essa etnia mantém o ritual de canibalismo, devorando os valentes vencidos, ele será comido depois de morto e assim exterminará também o inimigo.
A pedido de Ceci, Peri suspende seu sacrifício heroico. Ao final do romance, Dom Antônio entrega Ceci a Peri para que ela seja salva. Mas só entrega a filha se Peri converter-se ao cristianismo: “O índio caiu aos pés do velho cavalheiro, que impôs-lhe as mãos sobre a cabeça. — Sê cristão! Dou-te o meu nome. Peri beijou a cruz da espada que o fidalgo lhe apresentou, e ergueu-se altivo e sobranceiro, pronto a afrontar todos os perigos para salvar sua senhora”.
O “bom selvagem” é aquele que pode ser assimilado pela “civilização”
Peri e Ceci fogem então numa canoa e são surpreendidos por uma tempestade. Depois, os dois somem no horizonte. José de Alencar termina sua obra com a ideia de que o casal formará a identidade do novo Brasil. “Horizonte”, a última palavra do romance, é ao mesmo tempo futuro e o país que se descobre.
Este é o indígena que aparece no discurso do chanceler, ao citar José de Alencar. Uma identidade nacional forjada por um “cavaleiro português no corpo de um selvagem”, que luta contra um povo indígena diferente do seu para salvar sua adorada senhora branca, filha do colonizador, e que se converte ao cristianismo para fundar com ela o futuro nos trópicos. Peri, o indígena, é o “bom selvagem” que oferta seu corpo para ser assimilado pela civilização.
Ao criar esse herói romântico no século 19, supostamente indígena, Alencar sofreu críticas por desprezar a realidade. Mas o escritor deve ser compreendido no seu contexto. Que Araújo o faça no século 21, usando José de Alencar e desprezando todos os debates culturais daquela e de outras épocas, poderia ser apenas um ataque contra a inteligência. Mas o chanceler do bolsonarismo também precisa ser entendido no contexto do governo que ele tenta justificar não apenas como um governo, mas como uma “nova era”.
O bolsonarismo é um projeto de poder em que até mesmo Bolsonaro pode ser tornar um mero adereço – ou nem isso
O bolsonarismo é um projeto de poder com diferentes forças internas e possivelmente antagônicas, em alguns temas, como o futuro próximo deve mostrar. Como todo projeto de poder, está em disputa. Em algum momento, talvez o próprio Bolsonaro, que dá nome à ideologia em construção, seja apenas um adereço — ou nem mesmo isso.
Há um tema, porém, em que os diversos grupos que formam o capitalismo messiânico que governa o país parecem coincidir, guardando uma eventual ressalva por parte de uma parcela dos militares, cuja posição ainda não está totalmente clara. Este tema é o futuro dos indígenas. Ou, mais especificamente, o futuro das terras indígenas.
A escolha deste indígena com atributos morais europeus, representado pela alusão a José de Alencar, não é um acaso. Este indígena, que na obra do escritor manteve apenas as características do corpo e a cor, vai ser branqueado pela matriz europeia da loira Ceci dos olhos azuis para fundar o Brasil pós-independência. É amor cortês, mas também é assimilação brutal. Sobre Peri, a quem não conhecemos porque Alencar também não conhecia, nada sabemos.
Vale a pena lembrar a declaração do hoje vice-presidente, Hamilton Mourão. Ao justificar ter dito durante a campanha que o país herdou a “indolência” dos indígenas e a “malandragem” dos negros, o general resgatou sua mestiçagem e a colocou a serviço do apagamento do racismo estrutural do Brasil: “Em nenhum momento eu quis estigmatizar qualquer um dos grupos, até porque nós somos um amálgama de raças. É só olharem para mim. Eu sou filho de amazonense, minha vó é cabocla”.
O que o bolsonarismo anuncia entender por “mestiçagem” é assimilação. É o que Bolsonaro afirmou de várias formas na campanha, com a brutalidade habitual: “O índio é ser humano como nós”. Quem será que pensava que o índio não era humano?
É importante seguir perguntando. O que é, neste contexto, “ser humano como nós”, Bolso? O populista explica que o índio “quer ter o direito de 'empreender' e 'evoluir', o índio quer poder vender e arrendar a sua terra. Mas avisa: “Os índios não querem ser latifundiários”. No entender do novo presidente, ser humano latifundiário o índio não quer ser.
Antes do bolsonarismo, a tática da direita era dizer que os índios não eram mais índios. Era duvidar da “autenticidade”. Como se um indígena usar celular o tornasse menos indígena. Ao deixarem de ser considerados indígenas, os diferentes povos perderiam o direito à terra. Essa tática ainda persiste. Mas a nova direita representada por Bolsonaro é mais esperta. Ela não nega o indígena, e sim afirma uma suposta igualdade do indígena ao branco. Não para que os indígenas mantenham seus direitos constitucionais, mas para que os percam.
Mais tarde, logo após a eleição, Bolsonaro ainda afirmaria: “E por que no Brasil temos que mantê-los reclusos em reservas como se fossem animais em zoológico? O índio é um ser humano igualzinho a nós e quer o que nós queremos, e não pode se usar a situação do índio para demarcar essas enormidades de terras que, no meu entender, poderão ser sim, de acordo com a própria ONU, novos países no futuro”. Só para constar: a ONU nunca disse que as terras indígenas serão países do futuro.
O bolsonarismo tenta transformar terra indígena em mercadoria para exploração de grupos privados
O que o discurso do “ser humano como nós” encobre? Pela Constituição de 1988, as terras dos indígenas são de domínio da União. Aos indígenas cabe o usufruto exclusivo de suas terras ancestrais, mas elas seguem sendo públicas. Uma das principais missões de Bolsonaro é justamente abrir essas terras públicas para exploração e lucros privados.
Uma parcela significativa das terras indígenas está na floresta amazônica. Fazem limite com grandes plantações de soja e criação de boi. Têm sido pressionadas — e invadidas — para o cumprimento do ciclo: desmatamento da floresta para comércio ilegal de madeira, colocação de cabeças de boi para garantir a posse da terra, venda da terra para plantação de soja. Em algum momento do processo, legalização do “grilo” pelo governo do momento, com anistia aos ladrões de terras públicas — ou aos que compram as terras públicas roubadas pelos ladrões.
Ao tornar o indígena um ser humano que quer converter a terra em mercadoria, o discurso ideológico tem como objetivo fazer com que soja e boi possam avançar sobre a floresta hoje protegida. A quem isso vai beneficiar? Não a mim e a você. Mas sim aos grandes criadores de gado e aos grandes grupos plantadores de soja para exportação.
A mudança que os bolsonaristas — o que inclui o agronegócio mais atrasado do país — querem na Constituição vai permitir também a mineração. Não por cooperativas de garimpeiros, sempre criminalizados, mas por grandes grupos transnacionais, apresentados como empreendedores. A quem isso vai beneficiar? Não a mim e a você.
Seis em cada dez brasileiros discordam da redução das terras indígenas
É fácil perceber que o melhor para o conjunto dos brasileiros é manter a terra ocupada pelos indígenas como terra pública — e a floresta em pé. Como mostrou pesquisa recente do DataFolha, a maioria já entendeu isso: seis em cada dez brasileiros discordam da redução das terras indígenas.
O objetivo do bolsonarismo com relação às terras quilombolas é o mesmo: abri-las para a exploração por grupos privados. Era essa a ideia por trás das ofensas do então candidato durante a campanha, que chegou a dizer que os quilombolas não serviam “nem para procriar”. Descendentes de escravos rebelados, os quilombolas têm o título das terras ocupadas pelos antepassados, mas seu uso é coletivo.
Quando o indígena não tem nome próprio no discurso do chanceler Ernesto Araújo é este o propósito. Ao aparecer assimilado no nome de José de Alencar, o indígena já não é. Virou “ser humano igualzinho a nós”. E suas terras ancestrais são mercadorias como as “nossas”. O chanceler de Bolsonaro sabe muito bem a quem serve quando tenta forjar uma identidade nacional para um Brasil que afirma ter renascido pelas mãos de seu chefe. Ele não cita os indígenas, mas afirma enfaticamente em seu discurso que trabalhará pelo agronegócio.
A floresta amazônica é estratégica para evitar que o aquecimento global supere os 1,5 graus Celsius nos próximos anos. Isso não é opinião, é pesquisa científica de alguns dos melhores cientistas do mundo, que trabalham há décadas com a crise climática. Para que o aquecimento global não avance, a floresta precisa ficar em pé. Como manter a floresta em pé se o bolsonarismo se comprometeu a abrir as terras indígenas para exploração?
É preciso criar uma ideologia, como faz o bolsonarismo. Nela, o indígena supostamente teria como aspiração maior da sua vida se tornar branco “como nós” e passar a tratar a terra como mercadoria, ansioso por arrendá-la aos grandes grupos exportadores de soja e carne ou às grandes mineradoras transnacionais. É preciso também afirmar que mudança climática é um complô marxista, como o chanceler de Bolsonaro já escreveu, para não encontrar resistência ao entregar a Amazônia em nome do nacionalismo.
O chanceler criou um departamento específico para o agronegócio no Itamaraty e extinguiu o departamento que cuidava do clima e de energias renováveis. A mensagem é clara. O atual presidente do Brasil fez ainda mais. Transferiu a Fundação Nacional do Índio (Funai) para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, comandado por Damares Alves, fundadora de uma ONG acusada de incitar ódio contra os indígenas. Os evangélicos, grupo que a ministra representa, têm todo o interesse em ampliar a presença da sua religião entre os povos originários. A eles também interessa que o índio seja “ser humano como nós”, o que neste caso significa ser evangélico neopentecostal.
Bolsonaro entregou o banco de sangue aos vampiros
Bolsonaro, como garoto obediente ao agronegócio mais truculento, aquele que se confunde com agrobanditismo, foi adiante: entregou a responsabilidade pela demarcação das terras indígenas e quilombolas para o Ministério da Agricultura, comandado pela pecuarista Tereza Cristina, conhecida como “musa do veneno”, pelos serviços prestados como congressista às indústrias transnacionais de agrotóxicos. Como comentou um jornalista estrangeiro: é o mesmo que entregar o comando do banco de sangue aos vampiros.
O problema para o bolsonarismo se chama “realidade”, já que o planeta não vai parar de aquecer por causa das mentiras de Bolsonaro e de seu chanceler. Mas até isso ficar claro para seus seguidores, a destruição já estará consumada e os grupos que compõem o bolsonarismo já terão multiplicado seus lucros. Se os lucros são de poucos, o prejuízo sobrará para todos. Para os mais pobres e os mais frágeis, o sofrimento será maior e chegará primeiro. Já chegou. Basta ler a imprensa séria para descobrir. Ou lembrar quem sofreu mais com a última crise da água em São Paulo.
O ideólogo do governo afirma ser preciso ler menos o New York Times e mais José de Alencar também porque a imprensa internacional tem apontado duramente o perigo que Bolsonaro representa para o planeta. A importância do Brasil no cenário internacional é dada principalmente pela floresta amazônica. E não para exploração de produtos primários como soja, carne e minérios, mas sendo floresta.
Converter a floresta em matéria-prima de exportação é o pior negócio da história, inclusive para a agropecuária
A conversão de floresta em matérias-primas para exportação pode beneficiar a economia a curto prazo. Isso interessa aos ultraliberais do atual governo, como interessou aos governos do PT, que foram um desastre para a Amazônia. Mas é claramente o pior negócio da história para todos. Inclusive para a agricultura, como sabe o setor esclarecido do agronegócio, que, infelizmente, é minoritário no Brasil.
Nem Bolsonaro nem seu chanceler sabem quem são os indígenas, como vivem e o que fazem. Nem acham que precisam saber. Se a mentira que criaram serve a seus interesses imediatos, para que serviria a realidade?
Para os não indígenas que se interessam em conhecer os indígenas, o primeiro fato a compreender é que não existe um indígena, e sim mais de 240 povos com cultura própria. Vale lembrar que a estimativa é de que havia mil povos antes da invasão europeia, no século 16. Hoje, os povos que sobreviveram às sucessivas matanças e às epidemias transmitidas pelos brancos são, ao mesmo tempo, eles mesmos uma enorme riqueza em sua diversidade cultural e também os maiores responsáveis pela proteção da biodiversidade das terras onde vivem.
Alguns ainda conseguem viver sem saber dos brancos, ou sabendo o mínimo possível, e para todos é melhor que continue assim. Outros, cujo contato com os brancos já foi estabelecido, encontram seus caminhos para gerar renda sem destruir o ecossistema. As terras indígenas, comprovadamente, são os maiores obstáculos à derrubada da floresta amazônica. Em 2018, o desmatamento na Amazônia atingiu o índice mais alto da década. Só no período eleitoral, o desmatamento cresceu quase 50%, comparado ao ano anterior, tão confiantes os desmatadores se sentiram com a certeza da vitória de Bolsonaro.
Em editorial desta semana, o Instituto Socioambiental, que faz a publicação mais completa sobre Povos Indígenas no Brasil, atualizada regularmente e disponível na internet, conta ao governo o que o governo não está interessado em saber. O mel dos índios do Xingu foi o primeiro produto indígena de origem animal com certificação orgânica e registro no Sistema de Inspeção Federal. Já está no mercado do sudeste do país. O óleo de pequi do povo Kisêdjê representou o Brasil numa feira do movimento Slow Food em Turim, na Itália. O cogumelo Yanomami é reconhecido internacionalmente no mundo da gastronomia. A pimenta Baniwa tem 78 variedades que são utilizadas na fabricação de chocolate, molhos e cervejas no Brasil e no exterior. Os indígenas Wai Wai, Xikrin, Kuruaya e Xipaya comercializam safras com toneladas de castanha para uma fabricante de pães e produtos derivados. A borracha dos Xipaya é utilizada por outra grande indústria brasileira. Os Kayapó e Panará vendem o cumaru para empresas internacionais de cosméticos produzidos artesanalmente.
Quem não existe não pode reivindicar terra na floresta tão cobiçada pelo setor atrasado do agronegócio
O que atrapalha a economia da floresta não é a proteção da floresta. Pelo contrário. O que atrapalha a economia da floresta é a invasão dos grileiros para explorar a madeira, botar soja e pasto para boi. É a anistia destes grileiros por governos como o de Lula e o de Michel Temer, que converteram criminosos violadores de terras públicas em representantes do “agronegócio” e membros do “setor produtivo nacional”. É a demora na demarcação dos territórios ancestrais, hoje paralisada por Bolsonaro. É a instabilidade e a total falta de apoio governamental, apesar de os produtos comercializados pelos indígenas pagarem todos os impostos. É a ignorância dos governos e de seus economistas. É um chanceler que quer reinventar o índio de José de Alencar para inventar um índio que não existe. Quem não existe não pode reivindicar a demarcação de suas terras na floresta tão cobiçada pelo setor atrasado do agronegócio.
O discurso de posse do chanceler é a tentativa de lançar as bases ideológicas do que está sendo chamado de bolsonarismo, aquelas que pretendem justificar tanto o armamento da população quanto a exploração predatória das terras indígenas e quilombolas. Seria importante que os professores das universidades, instituições tão atacadas por Bolsonaro e seus seguidores, usassem seu conhecimento para dissecar esse discurso naquilo que diz e naquilo que omite. E o fizessem na internet, onde todos têm acesso.
Foi na internet que os malucos passaram a dançar e um deles se tornou presidente. O debate tem que ser travado (principalmente) ali, como já perceberam uns poucos intelectuais. Da tarefa de resgatar a importância dos fatos, a prevalência da realidade e a honestidade do debate ninguém tem o direito de se omitir. Em especial quem é pago com recursos públicos.
Termino com outro trecho do discurso do ideólogo do bolsonarismo: “É só o amor que explica o Brasil. O amor, o amor e a coragem que do amor decorre, conduziram os nossos ancestrais a formarem esta nação imensa e complexa. Nós passamos anos na escola, quase todos nós, eu acho, escutando que foi a ganância ou o anseio de riqueza, ou pior ainda, o acaso, que formou o Brasil, mas não foi. Foram o amor, a coragem e a fé que trouxeram até aqui, através do oceano, através das florestas, pessoas que nos fundaram”.
O projeto de poder em curso quer inventar um passado apagando o passado que efetivamente existiu
Ernesto Araújo torna explícito que o “renascimento” proposto pelo bolsonarismo é criminoso. Seu projeto de poder não busca apenas moldar o presente a partir de premissas falsas como “ideologia de gênero” e “climatismo”, mas sim inventar um passado apagando o passado que efetivamente existiu. Antes será preciso explicar como “o amor” matou milhões de indígenas, extinguiu povos inteiros, e colocou à força no Brasil quase 5 milhões de escravos africanos, durante mais de três séculos. Seus descendentes ainda hoje vivem pior e morrem mais cedo.
José de Alencar sonhava com construir uma identidade nacional no século 19, em um país que acabara de se tornar independente da metrópole e precisava de um rosto para se legitimar como nação. Em seu discurso inaugural, Ernesto Araújo violenta dois séculos de debates culturais e ofende até mesmo a memória de Alencar. O chanceler quer, no início do século 21, apagar todo o passado. Como se o Brasil fosse uma página em branco que o bolsonarismo vai passar a escrever a partir do ponto zero da independência.
Nenhuma novidade. A “nova era” do bolsonarismo apenas copia os piores exemplos dos totalitarismos do século 20, que também quiseram forjar seu próprio mito e sua própria mitologia para justificar as atrocidades que cometeriam logo adiante. Como os dias mostraram, os cadáveres daqueles que destruíram teimam em viver como memória. Não esqueceremos. Nem deixaremos esquecer.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum

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