quarta-feira, 20 de março de 2019

Reciprocidade e assimetrias: a questão do Mercosul - Paulo Roberto de Almeida

Escrevi bastante sobre o tema da reciprocidade, ou da não reciprocidade, sobretudo quando a questão se colocou quando eu servia como ministro-conselheiro da embaixada do Brasil em Washington, no início dos anos 2000. Não vou tratar neste momento, da reciprocidade stricto senso, e do caso da dispensa de vistos.
Existe todo um debate sobre as assimetrias entre os países, que também se presta a tantas incompreensões quanto o tema da reciprocidade.
Vou abordar o tema das assimetrias pelo exemplo do Mercosul, pois foi aqui que irracionalidades do lulopetismo diplomático se manifestaram com toda a sua estupidez normativa.
Depois volto ao tema da reciprocidade.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 20 de março de 2019

A politização do Mercosul e o fantasma das assimetrias estruturais

Paulo Roberto de Almeida
Extrato de capítulo mais longo
“Perspectivas do Mercosul ao início de sua terceira década”, no livro:
Elisa de Sousa Ribeiro (coord.), Direito do Mercosul. Curitiba: Editora Appris, 2013, 683 p.; ISBN: 974-85-8192-208-9; cap. 33, p. 661-676. 

(...)

A consequência mais evidente derivada da ascensão de novas lideranças políticas no Brasil e na Argentina – no caso, Lula e Kirchner – foi representada pelo nítido afastamento desses países (e, no mesmo movimento, do Mercosul) dos objetivos econômicos basilares do Tratado de Assunção, em especial a liberalização comercial recíproca e a continuidade da abertura econômica no plano global. Em seu lugar, reingressaram na agenda velhas receitas substitutivas e industrializantes, sob forte dirigismo estatal e protecionismo aos empresários nacionais; em suma, não apenas um desvio em relação aos princípios “constitucionais” do Mercosul, mas igualmente um retorno de quase meio século na história econômica desses países.
Esse movimento regressista foi bem mais forte, numa primeira fase, na Argentina, do que no Brasil, que não atravessou uma crise tão grave quanto aquela enfrentada pelo país platino no início do novo milênio. No caso do Brasil, consoante a vontade das novas lideranças do Partido dos Trabalhadores de exercer uma não-assumida liderança política no continente – ou seja, ultrapassando inclusive o quadro formal do Mercosul – o que se observou foi uma espécie de fuga para a frente, em direção de objetivos sociais e políticos não concebidos originalmente como partes essenciais do processo de integração: tratou-se nitidamente de um efeito substituição.
Os governos dos países membros favoreceram, em diversos setores da área econômica, o retorno a velhas posturas nacionalistas e estatizantes, atitudes que estavam em nítida contradição com os requisitos tradicionais da integração, que são a abertura econômica e liberalização comercial. A incorporação da Venezuela às instâncias deliberativas – ainda que não todos os procedimentos de adesão tenham sido efetivamente ratificados e seguidos pelo novo membro – contribui para reforçar os elementos constitutivos objetivamente anti-integracionistas no Mercosul.
Readaptando velhas receitas de extração keynesiana, numa versão trabalhada outrora pela Cepal, os países membros começaram a adotar, em diferentes medidas, prescrições macroeconômicas fortemente embasadas nos modelos de industrialização à la List; a ênfase tornou-se essencialmente nacional, ou até introvertida, continuando a adesão retórica a esquemas integracionistas mas num formato o mais superficial possível. A despeito de críticas acadêmicas quanto às insuficiências institucionais ou a um alegado déficit democrático no Mercosul – ou talvez, por isso mesmo –, não ocorreu nenhum esforço para caminhar-se na direção de um tipo “comunitário” de integração, modelado segundo a experiência europeia; o sistema intergovenamental, portanto, continuou como antes, mesmo se novas “instituições”, de caráter puramente acessório, foram sendo criadas para dar a impressão de “progressos” na integração.
No plano dos movimentos hemisféricos e regionais, algumas tendências se revelaram ou se desenvolveram no novo período: o Chile interrompeu seu movimento de aproximação econômica ao Mercosul e deu início às negociações para o estabelecimento de um acordo de livre comércio com EUA, no que foi seguido por outros países andinos, à exceção dos “bolivarianos”; a Venezuela explicitou sua demanda de adesão ao Mercosul, com o apoio de todas as lideranças executivas, mas sob intenso escrutínio dos movimentos de oposição no Brasil e no Paraguai, que questionavam as credenciais democráticas do candidato, quando o relevante, na verdade, seria a incorporação plena de todas as normas de política comercial; o Brasil tomou diferentes iniciativas para afastar os EUA da região, propondo instituições exclusivamente sul-americanas (como a Comunidade Sul-Americana de Nações, oportunamente transformada em União, Unasul, segundo proposta e ativismo do coronel Hugo Chávez).
No contexto específico do Mercosul, o governo brasileiro apoiou ativamente a constituição de novos órgãos – Instituto Social, Parlamento, esforços adicionais de “inserção social”, etc. – mesmo quando os objetivos primários do TA, que são o livre comércio e a união aduaneira, continuaram submetidos a contínua erosão, tanto pelas crescentes restrições adotadas no plano interno, quanto pelo protecionismo ampliado no plano externo. A Argentina foi bem mais enfática, e explícita, nos mecanismos defensivos do seu mercado interno, sob o olhar complacente do governo brasileiro, mesmo contra os interesses de seus exportadores em geral, dos industriais em particular. A despeito de todas as políticas defensivas da Argentina, e do fato que elas foram e continuam sendo ilegais e abusivas, os fluxos do intercâmbio bilateral – que constituem ainda o grosso do comércio intra-Mercosul – continuaram a beneficiar os exportadores do Brasil, cujos superávits com o vizinho permanecem significativos.
A acumulação de saldos comerciais e a volta ao crescimento dos fluxos intra e extra-regionais não impediram que a parte do comércio regional recíproco dos países do Mercosul diminuísse em relação ao volume global dos intercâmbios do bloco, em especial no caso do Brasil. A Argentina se mantém ainda na condição que já foi várias vezes caracterizada como de “Brasil dependência”, que ela se esforça em diminuir, mas recorrendo a métodos claramente anti-integracionistas, no limite antibrasileiros. Desde meados dos anos 1990 que ela recorre – no início moderadamente, nos anos 2000 de forma intensa e aberta – a diferentes mecanismos protecionistas (como antidumping, salvaguardas, licenças de importação, quotas informais, etc.), muitas vezes de forma ilegal e abusiva, não apenas contra o espírito e a letra dos instrumentos constitutivos do Mercosul, mas também em oposição a dispositivos do sistema multilateral de comércio (como o Código de Salvaguardas, por exemplo).
Mas é também um fato que a parte do Mercosul no comércio global brasileiro, depois de ter aumentado em dez pontos percentuais, a partir de sua pequena base de 4% ao início da criação do bloco, tornou a diminuir na segunda década; ainda que os valores absolutos tenham voltado a crescer a partir de meados dessa década, relativamente eles passaram a representar parte decrescente do comércio exterior brasileiro. Isto significa que o Mercosul continua a ser significativo no plano microeconômico – ou seja, representa um importante mercado para empresas individuais – mas já pode não ser macroeconomicamente relevante para o Brasil quanto foi nos primeiros oito ou nove anos.
Para assegurar, ainda assim, sua pretensão à liderança dentro do bloco, e na região como um todo, bem como para apoiar projetos específicos ou diminuir reclamações de parceiros e resistências a suas iniciativas políticas, o Brasil começou a desenvolver o que foi chamado de “diplomacia da generosidade”. Esta foi feita de diferentes elementos não recíprocos no relacionamento regional, a começar por um duvidoso programa de “substituição de importações”, que consistiria na importação voluntária, por parte dos empresários brasileiros, de produtos dos países vizinhos, mesmo que eles “fossem mais caros”, mas seria para “ajudar países mais ‘pobres’ do que o Brasil, segundo os argumentos do presidente Lula. Como os empresários privados não se entusiasmaram muito pela ideia – de fato, inconsistente, no plano da lógica, e economicamente prejudicial a seus interesses de capitalistas – o ministério das Relações Exteriores implementou ele mesmo um programa destinado a ajudar os vizinhos a exportar para o Brasil, numa notável demonstração de “promoção comercial” ao revés.
Todavia, a iniciativa mais consistente com a pretensão à liderança regional por parte do governo Lula – e supostamente para sanar diferenças estruturais entre os países membros, que estariam, ao que parece, dificultando a integração – consistiu no desenho e implementação de um programa de correção das “assimetrias estruturais” existentes no Mercosul, criado e financiado à razão de 70% de seus montantes pelo próprio Brasil. Justamente por ser grande, extremamente bem dotado de recursos e industrialmente mais avançado, o Brasil passou a ser visto, pelos seus parceiros do bloco, como o “fazedor de normas”, o principal beneficiado e, segundo alguns, o “aproveitador”, de todo o processo do Mercosul.
O “Fundo para a convergência estrutural e o fortalecimento da estrutura institucional do Mercosul (Focem)” parte de um diagnóstico, alegadamente empírico, segundo o qual as fontes dos problemas de integração no Mercosul estariam no que foi chamado de “assimetrias”, ou seja, diferentes dotações de fatores e especializações distintas, em cada um dos países, que redundariam em benefícios distintos para cada um deles. Sem análises mais bem fundamentadas em estudos econômicos rigorosos, o Brasil foi apontado como o principal provedor de recursos e designado candidato a ser o pagador líquido de todos os mecanismos corretivos de supostas desigualdades – tendo inclusive assumido voluntariamente esses papeis, por iniciativa do próprio governo –, numa reprodução tentativa de instrumentos existentes na União Europeia, como se o Brasil dispusesse da maior renda per capita do bloco ou como se ele já não exibisse algumas das maiores desigualdades sociais e regionais de toda a região.
Em qualquer hipótese, o Focem não apenas reproduz, como também mimetiza e duplica funções que seriam melhor assumidas por entidades tecnicamente mais sólidas, como os bancos e fundos financeiros multilaterais e regionais – tipo Bird, BID, CAF e outros – dispondo, por outro lado, de bem menos recursos e expertise na área do que os órgãos já consolidados como esses. Não é menos verdade que a capacidade de “correção de assimetrias” de um fundo sumamente modesto como o Focem aparece como ínfimo em face do potencial de necessidades visíveis em todos os países, a começar pelo próprio Brasil.
Economistas dotados de concepções menos dirigistas em matéria de políticas públicas concordariam em que não são exatamente as “assimetrias estruturais”, em sua dimensão própria, que constituem obstáculos aos avanços da integração; as diferenças sistêmicas entre países formam, aliás, a base mesma das especializações setoriais e regionais e são o fundamento do próprio comércio internacional (que só existe, por sinal, graças a essas “desigualdades” produtivas). A pretensão à uniformidade ou à homogeneização dos fatores produtivos constitui um contrassenso econômico e um empreendimento de Sísifo, que só existe em mentes dirigistas.
Por fim, mas não menos importante, bem mais relevantes do que as alegadas diferenças “estruturais”, ou seja, materiais, entre os países membros, são as “assimetrias” de políticas econômicas, estas sim as responsáveis pelas maiores dificuldades de integração no Mercosul. Elas se manifestam não apenas em termos de diferenças de orientação nas principais políticas macroeconômicas – em especial, as de tipo fiscal, monetário e cambial – mas também no que respeita políticas setoriais, geralmente na indústria e na agricultura, onde mecanismos defensivos ou claramente protecionistas são constantemente mobilizados por grupos de interesse para tentar manter antigas posições nos mercados nacionais. Ora, todo e qualquer processo de integração implica, necessariamente, transformações produtivas e reconversão de unidades empresariais: se o esforço se dá no sentido de manter o cenário habitual, não há razão para se iniciar um processo de integração.
Duas das principais virtudes de qualquer processo de integração são, justamente, a indução à modernização do sistema produtivo e a quase obrigatoriedade de reformas institucionais e setoriais, de maneira a adaptar o parque produtivo nacional ao novo cenário criado pela liberalização ampliada dos mercados; se os governos hesitam ou relutam em empreender reformas, todo o empreendimento pode estar condenado ao fracasso.
(...)




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