O biombo do Atlântico Sul
Mac Margolis
O Estado de S. Paulo, 4/02/2012
A Ilha de Iwo Jima era a antessala do Japão continental na 2ª Guerra. Socotra e Masirah são ilhas estratégicas para defender o Golfo Pérsico, enquanto as Seychelles, Maldivas e Maurício são bases cruciais no plano de expansão da pax chinesa. E as Ilhas Malvinas? Para que servem?
Com 3.300 mil habitantes em meio ao Atlântico Sul, as Ilhas Malvinas não constam dos manuais de geopolítica. A constelação de ilhotas já foi entreposto para caçadores de baleias e focas. Hoje é um império de cordeiros e kelp, as algas gigantes que os nativos colhem para alimentar os rebanhos. Sim, há lulas e pesca e fartos relatos de vastas reservas de petróleo. Mas até agora nenhum barril de óleo foi extraído das suas águas geladas. Seu PIB não passa de US$ 120 milhões. Mas não há metro quadrado mais explosivo no Hemisfério Ocidental.
Nas próximas semanas, o HMS Dauntless, poderoso destróier britânico, zarpa para o Atlântico Sul. O príncipe William, piloto da Força Aérea Real e segundo na linha sucessora para a coroa britânica, já está em Port Stanley, onde ficará para um tour de seis semanas. Londres garante que a viagem não é uma provocação, mas se engana quem acha que a querela entre Grã-Bretanha e Argentina, uma disputa que matou quase mil pessoas, em 1982, e deflagrou uma crise diplomática hemisférica, já tenha terminado. As Malvinas - ou Falkland, para os britânicos - despertam paixões que a razão não explica. Hoje são o maior biombo do mundo.
Nascidos e criados britânicos, mas com uma pitada de gauchismo, e governados pela coroa britânica desde 1830, os kelpers - os habitantes do arquipélago - são herdeiros de uma espólio mal resolvido. Durante quase dois séculos, as ilhas foram território ecumênico, com franceses, uruguaios, escoceses, ingleses e argentinos trabalhando lado a lado e em paz. Mas os governantes argentinos jamais engoliram a ideia da Union Jack - a bandeira britânica - ondeando nas mesmas latitudes que a bandeira azul celeste.
A briga já foi mais civilizada. Nos anos 90, Guido di Tella, o saudoso chanceler argentino, tentou seduzir os kelpers com cartões de natal e presentes a cada família. Agora, às vésperas do 30º aniversário da guerra, o governo de Cristina Hirchner desenterra a causa de forma menos belicosa que os militares da ditadura de 1976 a 1983, mas não por isso menos agressiva. Turbinada pela reeleição e "recuperada" de um câncer que não existia, Cristina empolgou ao chamar a Grã-Bretanha de "poder colonialista decadente". Mais importante, montou uma bem-sucedia ofensiva diplomática para levar a questão da posse das ilhas aos foros internacionais.
Recentemente, todos os países latino-americanos reiteraram seu apoio ao objetivo argentina. E para a revolta de Londres, até os EUA tiraram o corpo fora, afirmando que não tomarão “posição nenhuma a respeito da soberania” das ilhas.
Ninguém em sã consciência imagina uma reprise do sangrento e custoso conflito de três décadas atrás. Mas para ambas as partes, a causa pode valer mais do que a vitória. Para a Grã-Bratenha, à mercê da crise econômica européia e ameaçada pela rebelião escocesa, o resgate dos kelpers no outro lado do oceano ainda é ponto de orgulho nacional. (Ao menos a julgar pelos aplausos nos cinemas britânicos quando Meryl Streep, encarnando Margaret Thatcher no flime A dama de ferro, manda afundar o navio argentino Belgrano.)
Para a Argentina, nada como reviver um causa perdida para abafar as agruras em casa. Sua economia também esta em desaceleração, a reboque dos mercados globais. Sua inflação é a segunda mais alta do continente. E pior é o esforço do governo para escondê-la, maquiando dados e intimidando jornalistas e economistas independentes que ousam divergir dos números oficiais.
O Fundo Monetário Internacional (FMI), que não toma partido nos oceanos, acaba de intimidar o governo argentino a "melhorar" a qualidade de seus dados. Se Buenos Aires reparou, é outra história. Atrás do biombo da guerra, mesmo uma guerra de palavras, todo o resto é chiado distante. Haja kelp.
