Impeachment - da utopia à realidade
Almir Pazzianotto Pinto
O Estado de S. Paulo, 26/02/2015
Almir Pazzianotto Pinto é advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho
"O utópico é voluntarista, crê ser possível afastar a realidade e substituí-la pela sua utopia"
Edward Hallet Carr
A palavra impeachment, originária da língua inglesa, corresponde ao processo político-criminal instaurado na Câmara dos Deputados contra o presidente da República com o objetivo de destituí-lo do cargo por violação de deveres funcionais que provoquem graves prejuízos à Nação. Dele cuidam os artigos 85 e 86 da Constituição e 81 artigos da velha e boa Lei n.º 1.079, de 10/4/1950, sancionada pelo presidente Dutra.
Incide em crime de responsabilidade o presidente que atentar contra a existência da União, o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e demais poderes constitucionais do Estado; o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; a segurança interna; a probidade na administração da lei orçamentária; a guarda e o emprego do dinheiro público; o cumprimento das decisões judiciais.
Desde 1891 o impeachment se fez presente em todas as Constituições. Durante mais de cem anos, porém, a medida radical somente viria a ser utilizada no governo Collor de Mello, em 1992. Circulam notícias de que se pretende voltar a recorrer a ela para afastar a presidente Dilma Rousseff.
No Estado democrático existem duas formas normais de substituição do chefe do governo: mediante eleições diretas, na conclusão do mandado, ou com o emprego do processo previsto na Constituição e disciplinado em lei.
A instauração de regular processo político iniciar-se-á mediante denúncia dirigida à Câmara dos Deputados. Prescreve a Lei que qualquer cidadão poderá fazê-lo.
Depois de assinada, a petição documentada, com firma reconhecida e rol mínimo de cinco testemunhas, será protocolada na Câmara dos Deputados e lida no expediente da sessão seguinte. Ato contínuo, remetida à comissão especial integrada por membros de todos os partidos, para lavratura de parecer a seguir distribuído entre os parlamentares. Imediatamente incluída na ordem do dia, tornar-se-á objeto de discussão. Cinco representantes de cada partido terão direito à palavra durante uma hora, ressalvada ao relator a prerrogativa de responder a cada um.
Concluída a discussão sobre procedência ou improcedência da denúncia, passar-se-á à votação. Acolhida a acusação, o presidente da República será suspenso do exercício das funções até o julgamento pelo Senado em caso de crime de responsabilidade, ou pelo Supremo Tribunal Federal (STF), na hipótese de crime comum.
A esta altura o leitor terá notado que, observados o devido processo legal e o amplo direito de defesa, o caso é mais complicado do que imaginam os arautos do impeachment. A tramitação na Câmara enfrentará aguerrida obstrução da numerosa bancada do PT e de partidos da base governista. Durante todo o tempo, militantes petistas, sindicalistas da CUT e das demais centrais, brigadistas do MST e semelhantes não se conservarão indiferentes. Usufruindo as garantias constitucionais de ir e vir e de livre manifestação, camisetas vermelhas invadirão praças e avenidas com a violência fácil de imaginar.
Mesmo inimigos da presidente Dilma Rousseff não podem, todavia, recusar-lhe a legitimidade obtida com milhões de votos, dados por eleitores cientes do mensalão e da Operação Lava Jato.
Impedi-la de prosseguir no exercício do mandato é remédio previsto pela Constituição e em lei. Para que a deposição seja insuspeita, ambas devem ser rigorosamente observadas. Registre-se que, conquanto o processo tramite pela Câmara, a decisão caberá ao Senado sob a direção do presidente do Supremo Tribunal Federal, e que eventual decreto condenatório exigirá dois terços dos votos.
Equivoca-se o PSDB se acredita no impeachment como instrumento apto a resolver-lhe antigos problemas de divisão e escassez de popularidade. Derrotado em quatro eleições presidenciais sucessivas, os tucanos aparentemente nada aprenderam, e se recusam a investigar, no interior do partido, as determinantes de repetidos insucessos. Algumas delas residem na ausência de coesão, carência de lideranças fortes e falta de combatividade.
Abalado por graves casos de corrupção em que se encontram envolvidos alguns dos seus principais dirigentes, o PT, por sua vez, dá nítida impressão de estar em queda livre. Permanece, contudo, no poder e ali continuará se a oposição continuar sem líder, sem rumo, sem popularidade.
A cidade de São Paulo é a vitrine da administração petista. Jamais os paulistanos haviam padecido tanto nas mãos de prefeito autoritário, arrogante e senhor da verdade como o atual alcaide. Pergunto, entretanto: de quem o PSDB dispõe para derrotá-lo?
Há mais de 20 anos à frente do governo estadual, o PSDB encontra-se alijado da administração paulistana e de importantes cidades como Campinas, São Bernardo do Campo, Santo André, São Caetano, Osasco, Guarulhos e Ribeirão Preto. Temos entre deputados federais e estaduais, ou secretários de Estado, nomes convincentes para disputar a administração desses e de outros importantes municípios, com seguras possibilidades de vitória?
A crise, a bem da verdade, não se restringe às hostes tucanas. O PT, conforme insistentes notícias, cogita de recorrer a Luiz Inácio Lula da Silva em 2018, pois candidatos em potencial cumprem pena, estão na mira da Justiça Federal ou se acham desacreditados.
Antes de pensar em impeachment, ou de se dividir entre Aécio e Alckmin, o PSDB deveria empenhar-se em algo que até hoje não fez: ascender à condição de partido nacional forte e abrir espaço para renovadas e dinâmicas lideranças.
A ideia do interesse nacional: onde estamos?
por Paulo Roberto de Almeida
The Idea of National Interest
é o título de um livro que o historiador americano Charles Beard
publicou em 1934, em plena crise econômica dos Estados Unidos e no
início do New Deal, programa de recuperação impulsionado pelo
presidente Roosevelt. O livro, porém, não é conjuntural; ele não trata
exclusivamente da realidade imediata do país, e sim faz uma reflexão
histórica de longo prazo sobre a construção do projeto nacional pela
vertente das relações exteriores. O subtítulo do livro é An Analytical Study in American Foreign Policy,
e o primeiro capítulo trata dos “pivôs da diplomacia”, analisando, nos
demais capítulos, a expansão territorial da nação, o seu crescimento
econômico e comercial, ademais do impacto externo dos assuntos internos;
o apêndice traz um balanço dos interesses americanos no exterior
(capitais e investimentos diretos), embora a edição que consultei,
publicada em 1966 por seu filho e por um assistente de pesquisa,
procedeu a alguns cortes nas estatísticas da edição original e fez
atualizações sobre os dados que Beard havia consolidado até o final dos
anos 1920.
Beard foi o único acadêmico americano a
ter exercido a presidência de duas associações profissionais diferentes:
a American Historical Association e a American Political Science
Association. Ele abre o seu livro citando um discurso do Secretário de
Estado Charles Hughes, que trabalhou sob os presidentes Harding e
Coolidge na primeira metade dos anos 1920, e que se pronunciou sobre o
interesse nacional na política externa nestes termos: “As políticas
externas não são elaboradas sobre a base de abstrações. Elas são o
resultado de concepções práticas do interesse nacional que emergem a
partir de alguns requerimentos imediatos ou de fundamentos essenciais,
em perspectiva histórica. Quando mantidas por bastante tempo, essas
concepções expressam as esperanças e os temores, os objetivos de
segurança e de engrandecimento, que se tornaram dominantes na
consciência nacional, transcendendo, assim, divisões partidárias e
fazendo com que se atenuem as oposições que poderiam advir de certos
grupos” (discurso na Filadélfia, em 30/11/1923). Beard analisa então
todas as facetas do interesse nacional americano em sua expressão
diplomática e nas relações com o ambiente doméstico, sobretudo em sua
dimensão econômica.
É bem possível que seus argumentos, e o
seu próprio livro, tenham inspirado o célebre cientista político
germano-americano Hans Morgenthau – autor do clássico Politics Among Nations, publicado em 1948, o mesmo ano da morte de Charles Beard – a elaborar um outro livro, chamado justamente In Defense of the National Interest (1951), seguido, no ano seguinte, de um artigo sobre o mesmo tema: “What Is the National Interest of the United States?” (The Annals of the American Academy of Political and Social Science,
vol. 282, julho de 1952, p. 1-7). Morgenthau também serviu como
consultor do Departamento de Estado no começo da Guerra Fria, quando um
diplomata, também célebre, George Kennan, dirigia ali a divisão de
planejamento político, o Policy Planning Staff, que trabalhou
no Plano Marshall e na formulação das principais medidas da então
nascente doutrina da contenção. O próprio Kennan, aliás, não cessava de
alertar seus chefes quanto às fragilidades que poderiam emergir do ponto
de vista do interesse nacional americano a partir da erosão da posição
competitiva dos Estados Unidos no mundo e do aprofundamento dos déficits
no balanço de pagamentos; ele expressou suas preocupações, entre outros
escritos, no livro Realities of American Foreign Policy, publicado em 1954.
O livro de Morgenthau sobre o interesse
nacional americano foi republicado em 1982, e talvez tenha animado o já
então famoso jornalista Irving Kristol a dar início, em 1985, à revista The National Interest,
apoiada nos mesmos princípios da escola realista, que está identificada
com a expressão política, econômica e militar do poder americano em
escala global, mas cujos fundamentos devem sempre ser construídos
internamente. Pode ser também que a mesma revista e sua ideia central
tenham inspirado o embaixador Rubens Barbosa a lançar, em 2008, a
revista Interesse Nacional,
fundada em concepções similares sobre as bases internas da expressão
internacional do Brasil. Qual seria, então, o interesse nacional
brasileiro, e que tipo de políticas e orientações econômicas melhor
serviriam à sua defesa e consolidação? Difícil dizer, já que existem
concepções muito diversas do que seja o interesse nacional, como já
dizia o próprio Beard em 1934.
O editor da revista brasileira se encarrega, aliás, de expressar tal dificuldade em nota de apresentação:
“Sendo necessariamente genérica, a noção de interesse nacional não tem
uma definição precisa. De um lado, porque, sobre o que seja concreta e
especificamente o interesse nacional, haverá sempre visões não
coincidentes, apoiadas em valores e/ou interesses diferentes. De outro,
porque a definição do interesse nacional requer um juízo informado, mas
sempre político e não estritamente técnico, sobre riscos e oportunidades
que se apresentam à realização dos valores e interesses de um país em
cenários estratégicos de longo prazo. E estes serão, sempre, objeto de
incerteza e controvérsia”. Mas o editorial acrescenta logo em seguida:
“O interesse nacional é, pois, uma construção política”, o que pode ser
uma constatação óbvia, mas que não nos ajuda muito na busca por uma
definição mais precisa sobre qual seria o interesse nacional brasileiro.
Conceda-se, pois, que diferentes grupos
políticos, e diferentes agregações de poder, representados pelas forças
políticas temporariamente predominantes no sistema de governança,
manifestem concepções diversas do chamado interesse nacional, e que eles
defendam, portanto, suas orientações particulares, ou setoriais, com
base numa legitimidade supostamente construída nas urnas, a cada
escrutínio eleitoral. Esta é uma suposição arriscada, e provavelmente
falsa, pois os eleitores não possuem, geralmente, no momento do voto, um
grau suficiente de informação sobre os programas, ou sobre as
consequências de determinadas políticas do ponto de vista de seus
interesses imediatos e os de mais longo prazo, e menos ainda do ponto de
vista dos interesses da nação.
Na impossibilidade de se chegar a uma
definição consensual de quais seriam as expressões efetivas do interesse
nacional, talvez seja o caso de investigar numa outra direção, ou seja,
identificar aquelas políticas e orientações que se opõem, ou que podem
contrariar, o interesse nacional. Nesse caso, é melhor trabalhar com
exemplos concretos do que com definições abstratas, como afirmava em
1923 o secretário de Estado Charles Hughes, em pronunciamento recuperado
pelo historiador Charles Beard uma década depois. E quais seriam, no
nosso caso, os exemplos contrários ao interesse nacional que podem ser
identificados numa perspectiva mais imediata ou de mais longo prazo, que
podem ser prejudiciais ao nosso desenvolvimento e ao “engrandecimento”
do país? Mas mesmo para identificar essas ações contrárias, seja no
plano interno, seja no âmbito internacional, é preciso ter balizas
mínimas sobre o que o país pretende ser como nação e como sociedade. É
preciso saber o que se quer, para rejeitar o que não serve a tal fim.
O editorial da revista Interesse Nacional
nos fornece, mais uma vez, alguns dos parâmetros que podem ser
aplicados ao caso: “A democracia e a inserção internacional são parte do
interesse nacional brasileiro, aquela como valor, esta como objetivo.
Se a democracia é um valor que queremos preservar, e se a inserção
internacional é hoje, mais do que nunca, uma condição do
desenvolvimento, resta perguntar como se inserir no mundo para
fortalecer a democracia e promover o desenvolvimento” (nota editorial de
Interesse Nacional, loc. cit.). A pergunta traz, portanto, um começo de resposta.
Se concordarmos com essa “plataforma”,
democracia e inserção internacional passam a ser as palavras chave do
interesse nacional brasileiro. Então, qualquer ação nacional que vise a
diminuir as bases da democracia representativa, que constitui a forma
atual da governança política no Brasil, seria contrária e prejudicial ao
interesse nacional brasileiro; como, por exemplo, um famoso decreto
“bolivariano” que pretende instituir a intermediação de “conselhos
populares” na definição e aprovação de políticas públicas, quando
sabemos que eles constituem uma emanação de tipo bolchevique – e por
isso mesmo foram chamados de “sovietes” – do partido gramsciano que tem a
clara intenção de se eternizar no poder. No plano externo, o apoio
acintoso a regimes pouco democráticos, ou ditatoriais de fato (e de
direito), diminui a credibilidade de nossa política externa, ao nos
identificar com sistemas políticos já devidamente denunciados em
protocolos instituindo “cláusulas democráticas” a que aderimos
voluntariamente, e por força de nossa adesão (inclusive constitucional)
aos valores da democracia.
Da mesma forma, qualquer política ou
medida que obstaculize a integração da economia nacional aos circuitos
internacionais da interdependência econômica pode ser considerada como
contrária ao interesse nacional, na medida em que diminui nossa
capacidade de absorção de know-how e de tecnologias de ponta
que são essenciais ao processo de desenvolvimento do país. O
protecionismo comercial não é apenas estúpido no plano estritamente
econômico; ele é também profundamente reacionário, no sentido marxista
da expressão, já que pretende “fazer rodar para trás a roda da
História”, como dito no Manifesto de 1848. Com efeito, ele
representaria uma volta a um regime de autarquia econômica que estava na
base da economia hitlerista – bastante admirada por militares
brasileiros, naquela época e depois – e seria uma espécie de “stalinismo
para os ricos”, um projeto de “capitalismo num só país” que talvez
ainda encante alguns arautos da burguesia industrial tupiniquim e seus
representantes acadêmicos.
Mais ainda, e com especial impacto na
imagem e na confiabilidade do país no plano internacional, ao aderir a
essas medidas de duvidosa eficácia competitiva – ao contrário, elas
diminuem nossa capacidade de competir internacionalmente – o país não
apenas deixa de cumprir obrigações contraídas ao abrigo do sistema
multilateral de comércio, como também se mostra conivente com sócios do
mesmo esquema regional de integração, o Mercosul, que reincidem nas
mesmas transgressões, e aqui não só contra os próprios interesses
comerciais do Brasil e contra regras do bloco comercial, mas igualmente
contrárias às normas do Gatt, de seus protocolos setoriais e de acordos
emanados da Rodada Uruguai de negociações comerciais. É, sob todos os
aspectos, uma péssima demonstração de inadimplência no tocante ao
respeito a princípios do direito internacional e, mais uma vez, de ação
contrária ao interesse nacional.
Democracia e inserção internacional vêm
sendo, assim, afastados de nosso horizonte de realizações históricas, em
nome de uma concepção de política interna e de política externa que
rompem com consensos nacionais laboriosamente mantidos ao longo de um
itinerário diplomático de quase dois séculos de existência efetiva.
Esses desvios de conduta – que representam, na verdade, concepções que
não transcendem, ao contrário, alimentam as “divisões partidárias”, como
a elas se referia o secretário de Estado Charles Hughes – se revelam
não apenas em relação à substância mesma das políticas seguidas, mas
igualmente no tocante ao próprio instrumento diplomático, ou seja, a
ferramenta da política externa, que é o seu serviço exterior.
Charles Beard, no capítulo de seu livro
dedicado à “interpretation, advancement, and enforcement of national
interest”, dizia que “By far the most important means used to advance
and enforce national interest is the ‘system’, or institution, of
diplomacy” (p. 341). Ele se referia, exatamente, à administração e ao
funcionamento das atividades diplomáticas, bem como à “multitude of
services performed by diplomatic agents in behalf of the citizens” (p.
347), ou seja, a cobertura que um país é capaz de dar aos seus cidadãos e
às empresas nacionais presentes nos mais diversos cantos do mundo.
Nesse particular, a ferramenta da política externa brasileira tem
custado muito pouco à nação durante a maior parte de sua história: menos
de 1% do orçamento da União (que parece ter passado a menos de 0,5%
atualmente). Ver essa dotação ainda mais diminuída, em detrimento da boa
qualidade, do funcionamento e, sobretudo, da respeitabilidade desse
instrumento, é a pior forma de promover o dito interesse nacional.
Os bolcheviques costumavam repetir, em
seus tempos de hegemonia absoluta, e para justificar os incontáveis
crimes cometidos contra os direitos humanos, a conhecida frase que
pretende que “não se faz omelete sem quebrar os ovos”, querendo
significar que sacrifícios são necessários para obter resultados em
algum objetivo qualquer. Pode ser que seja verdade, mas no caso que nos é
próximo, nem ovos, nem omelete parecem ter resultado dos sacrifícios
impostos ao instrumento diplomático nacional. Não se pode, com efeito,
fazer diplomacia, sem um mínimo de gastos com representação: o interesse
nacional, nesse caso, vem sendo atingido em sua dignidade pelos
seguidos exemplos de inadimplência no cumprimento de suas obrigações, da
mesma forma como, no passado, se decretava “moratórias soberanas” sobre
os compromissos financeiros externos. A insolvência pode até ter
deixado de ser financeira, mas ela passou a ser de ordem moral.
Paulo Roberto de Almeida é diplomata e professor do Centro Universitário de Brasília – Uniceub (@pauloalmeida53).
