quinta-feira, 29 de agosto de 2024

A Idade Média do Judiciário brasileiro - Antenor Madruga

A Idade Média do Judiciário brasileiro 

Antenor Madruga

A recente decisão do Ministro Alexandre de Moraes, ao determinar a intimação de Elon Musk por meio de uma rede social, suscita reflexões significativas sob a ótica das normas de cooperação jurídica internacional (CJI), independentemente do mérito ou das boas intenções dessa intimação.

Em 2005, referindo-me à antiga jurisprudência do STF que não permitia efeito executório a cartas rogatórias estrangeiras e limitava a CJI, escrevi o artigo "O Brasil e a jurisprudência do STF na Idade Média da Cooperação Jurídica Internacional"  (Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 13, n. 54, p. 291-311, maio/jun. 2005). Anexo o artigo. 

Assim começava o meu artigo: 

"           Daqui a alguns anos olharemos para trás e escreveremos sobre uma sociedade que vivia em feudos jurídicos. Falaremos de um tempo em que juízes se comunicavam por cartas, enviadas por via aérea e terrestre, confirmadas, folha a folha, por carimbos de tinta, selos e fitas multicores, delibadas e fiscalizadas, uma a uma, pelo Supremo Tribunal Federal. "

Ressaltava que o excessivo controle prévio sobre a CJI e as limitações impostas em nome da soberania na verdade se constituíam, em uma sociedade global, em ameaça à efetividade do poder jurisdicional e deixa impunes os que, ao abrigo de concepções jurídicas ultrapassadas, se valem das fronteiras territoriais para não cumprir decisões judiciais. 

Defendia que instrumentos de comunicação judiciária internacional domésticos deveriam ser reinterpretados à luz da necessidade de garantir eficácia e celeridade à cooperação internacional, tendo-a como pressuposto de afirmação e não de ameaça à nossa soberania.

Entretanto, não defendia impor soluções unilaterais, especialmente quando afetam diretamente pessoas localizadas em outros Estados soberanos, à margem da cooperação jurídica internacional. 

Temo que essas soluções possam comprometer o direito internacional e o princípio da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, expresso no inciso IX do Artigo 4 da Constituição Brasileira.

Acredito que, pela diplomacia, poderíamos continuar a desenvolver, em tratados bilaterais e multilaterais, normas para a livre circulação de decisões judiciais, dispensando, por exemplo, o prévio juízo de delibação dessas decisões ou até mesmo permitindo citações e intimações diretamente a pessoas em território estrangeiro, mas não a partir de imposições unilaterais, não coordenadas com o Estado estrangeiro.

Nesse contexto de iniciativas unilaterais, também preocupa que pessoas localizadas no Brasil possam se tornar alvo de comunicações ou decisões judiciais estrangeiras, sem o respaldo de uma estrutura coordenada de cooperação internacional e sem garantias adequadas de direitos.

Paradoxalmente, soluções unilaterais para problemas transnacionais podem ser marca de retrocesso da jurisprudência sobre cooperação jurídica internacional, expressão de Estado que admite atuar isoladamente no contexto das nações soberanas.


Relações internacionais, política externa do Brasil e carreira diplomática: reflexões de um diplomata não convencional - Paulo Roberto de Almeida

 

Relações internacionais, política externa do Brasil e carreira diplomática: reflexões de um diplomata não convencional

 

Paulo Roberto de Almeida

Notas para aula inaugural no quadro do curso do Ibmec Global Affairs, em 20/08/2021, 19hs.

 

Agradecimentos pelo convite.

Como sempre faço, tomo notas do que gostaria de expor, mas como também sempre acontece, fica muito grande, e por isso acabo não lendo, mas colocando à disposição de todos as minhas reflexões do momento, para que todos possam ler com mais calma, do que numa exposição ex-catedra, que teria virtudes dormitivas.

Comecei pelo assunto do momento, a retirada dos Estados Unidos do Afeganistão e o reflexo disso para as relações internacionais e para a posição dos EUA, e para isso me vali de um interessante artigo na revista The New Yorker, da colunista Robin Wright, Does the Great Retreat from Afghanistan Mark the End of the American Era?” (16/08/2021; que coloquei à disposição de todos em uma postagem no meu blog Diplomatizzando: “A Grande Retirada do Afeganistão marca o fim da Era Americana?”).

Faço uma série de considerações sobre a questão dos Impérios, um pouco com base na conhecida obra de Arnold Toynbee, Estudo da História, mas também recomendo um livro que estou lendo atualmente: Empires in World History, de Jane Burbank e Frederich Cooper, que downloadei no meu Kindle (Princeton, 2010). É um livro diferente das histórias convencionais, pois que justamente trata das questões de poder, desde a antiga Roma e a China até o fim do sistema imperial, o que não está perto de ocorrer. Não vou retomar aqui tudo o que escrevi sobre os variados impérios, com destaque para o americano, em aparente declínio, até a irresistível ascensão da China e a sua volta ao seu antigo status imperial. Apenas me refiro ao fato de que o moderno sistema de relações internacionais, baseado numa representação supostamente igualitária dos Estados nacionais, têm no máximo 75 anos, ou seja, pouco mais de três gerações. O próprio sistema de Estados nacionais, se sistema existe, têm aproximadamente quatro ou cinco séculos, mas isso de uma perspectiva ocidental, pois que outros impérios e civilizações existiram, coexistiram se combateram e se suplantaram durante muitos séculos antes, e em várias outras regiões do mundo.

O império chinês, que existiu por meio de mais de duas dezenas de dinastias, através dos séculos, por mais forte e inovador que tenha sido, não pode evitar sua conquista por povos de fora de suas muralhas supostamente inexpugnáveis: os mongóis, no século XII, e os manchus, no século XVII. O império romano do Ocidente, com sua capital em Roma, existiu durante mais de quatro séculos, até ser submerso pelos povos germânicos ou eslavos que viviam na sua periferia, no século V despois de Cristo. O império romano no Oriente, com sua capital em Constantinopla, ou Bizâncio, sobreviveu durante mil anos, aproximadamente, até ser conquistado pelos otomanos, que mantiveram, por sua vez, o seu império por mais de 600 anos.

Mais próximo de nós, o império britânico, o maior do mundo entre o final do século XIX e o início do XX, dominou o comércio internacional, pagamentos e financiamentos durante décadas, até o seu declínio, a partir da Grande Guerra e finalmente em Suez. Foi a partir de 1917 que tem início a era do império americano, começando pelo lado financeiro para depois se traduzir num domínio econômico e estratégico claramente preeminente, pelo resto do século XX: o século americano parecia predestinado a durar mais um século inteiro, todo o século XXI. A China recém emergia dos anos destruidores de maoísmo demencial – depois do fracasso mortífero do Grande Salto para a Frente e dos anos turbulentos da Revolução Cultural – e não parecia estar minimamente em condições de desafiar a superpotência americana.

O que assistimos, nos últimos trinta anos, desde os anos 1990, quando começa, verdadeiramente, a fulgurante ascensão da China, foi algo absolutamente excepcional na história econômica mundial, jamais visto nos registros de crescimento econômico e de capacitação tecnológica e de construção de poderio militar.

O mundo está próximo, agora, de ver a China conquistar o primeiro lugar na formação do PIB global, como já é o caso em grande parte do comércio internacional e será certamente o caso dos investimentos diretos e dos financiamentos em mais alguns anos. Os chineses, não alcançarão, provavelmente, o PIB per capita dos americanos no corrente século ou em qualquer tempo, mas existem outros elementos que sinalizam a mudança de cenário.

Três observações podem ser feitas a esse respeito. Em primeiro lugar, a ascensão da China não significa, inevitavelmente, o declínio, mesmo relativo, do poderio científico e tecnológico ocidental, ou seja, americano, europeu, japonês (e de alguns outros membros do clube das nações avançadas). Em segundo lugar, o impulso excepcional da China pode não ser tão irresistível quanto parece atualmente, sobretudo em vista de tremores geopolíticos na Ásia Pacífico ou no próprio Império do Meio, Em terceiro lugar, não se pode conceber que, após essa “era americana” – que ainda não terminou, cabe esclarecer – virá uma “era chinesa”, o que está longe de ser admitida universalmente ou consensualmente.

A China também foi humilhada ao longo de sua história, duas vezes por invasores que não se intimidaram com o seu tamanho e desprezaram solenemente a Grande Muralha, e mais algumas outras vezes pelas potências ocidentais, nas guerras do ópio e na destruição do Palácio de Verão, em meados do século XIX,

Os impérios que humilharam a China já não poderão voltar a fazê-lo novamente, e os impérios que ainda restam já não podem ignorar solenemente os Estados nacionais, como frequentemente fizeram no passado. O mundo mudou, mas veleidades imperiais permanecem presentes, assim como as mesmas paixões e instintos que deslancharam a guerra de Troia permanecem invariavelmente humanas, mesmo a uma distância de milhares de anos.

Como se situa o Brasil no presente contexto de uma incerta multipolaridade?

Nos trinta anos precedentes, o Brasil e o Itamaraty construíram as bases conceituais de suas relações exteriores e os instrumentos operacionais de uma diplomacia autônoma e soberana, identificadas, ambas, com os grandes interesses do desenvolvimento nacional, em todos os planos: bilateral, regional e multilateral.

A política externa, a gestão ambiental, a condução da cultura e a da educação nunca corresponderam, no atual governo, a padrões compatíveis com o que se espera de uma administração normal, dotada de um programa qualquer que pudesse garantir estabilidade macroeconômica e programas setoriais voltados para o crescimento, o emprego e ganhos de produtividade necessários para enfrentar a competição econômica num mundo globalizado.

Examinei, em quatro livros digitais, fase de demolição completa dos fundamentos conceituais e de sua substância operacional nos dois anos e três meses em que perduraram os desatinos e loucuras perpetrados por quem chamei de “chanceler acidental”, sendo que os efeitos da virtual derrocada de nossa credibilidade no exterior não foram ainda totalmente superados, uma vez que a política externa continua a ser marcada pela mesma autoridade incompetente. Esses livros receberam os significativos nomes de Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty (2019), O Itamaraty num labirinto de sombras: ensaios de política externa e de diplomacia brasileira e Uma certa ideia do Itamaraty: a reconstrução da política externa e a restauração da diplomacia brasileira (ambos de 2020) e O Itamaraty Sequestrado: a destruição da diplomacia pelo bolsolavismo, 2018-2021, o mais recente. A esses, se seguirá um novo livro, Apogeu e demolição da política externa: itinerários da diplomacia brasileira (em versão impressa, pela Editora Appris).

Não pretendo refazer aqui todas as críticas e comentários que já formulei a propósito da miséria da nossa atual política externa e dos descompassos de nossa diplomacia – no momento felizmente liberta das loucuras alucinadas e alucinantes do ex-chanceler acidental –, tanto porque já disso tudo o que poderia ser dito nesses cinco livros mencionados acima. Mas cabem algumas palavras de alento aos que pensam em seguir a carreira diplomática e que se preparam seriamente para tal.

Como diz o famoso bordão: não há bem que nunca acabe, e não há mal que sempre dure. O Itamaraty e a política externa passaram por turbulências inéditas em nossa história independente, mas uma recuperação está em curso, e ela se completará no próximo governo.

A carreira diplomática é uma das mais atraentes na burocracia federal, pelo menos para aqueles que não estão apenas à procura de um emprego público, mas que, sim, tenham a vocação internacionalista, possuam um bom preparo intelectual e se sintam totalmente à vontade numa vida nômade, feita de postos excelentes, muitos médios e algumas situações de dificuldades materiais no vasto mundo da periferia do capitalismo global.

 “Dez Regras Modernas de Diplomacia” (Chicago, 22 de julho de 2001; 19/08/2021: link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/08/regras-modernas-e-sensatas-de.html).

Se ouso concluir, seria por uma nota de otimismo. No Brasil, depois de surpresas e frustrações, retomaremos nosso inevitável processo de crescimento econômico, visando um grau maior de desenvolvimento social, o que virá, no devido tempo, e reconstruiremos também a nossa política externa e a diplomacia de qualidade, uma vez afastados os novos bárbaros do poder. É uma questão de persistência, de resiliência, de insistência no caminho iniciado 200 anos atrás, que construiu uma das melhores diplomacias entre novas nações saídas do colonialismo e uma política externa das mais respeitadas entre países em desenvolvimento.

De minha parte, continuarei me exercendo em minhas vantagens comparativas relativas, que estão na pesquisa, no estudo, na reflexão e na escrita e publicação de materiais diversos atinentes às relações internacionais do Brasil, à sua política externa e à sua diplomacia, cujo itinerário estou concluindo com plena satisfação intelectual e um registro de boas obras realizadas, no plano profissional e no acadêmico.

Muito obrigado.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3960, resumo: 19 agosto 2021, 14 p.

O menino e os livros: da importância das bibliotecas

O menino e os livros

 

Quando entrei pela primeira vez numa biblioteca fiquei enfeitiçado e nunca mais consegui sair do seu labirinto. Eu era menino, acomodado no meu silente e tenro mundo...

Eu era inocente, disputado pelos volumes alinhados ao meu redor.

Sobre o teto da minha pequena estufa abriu-se uma chaminé por onde sussurraram, a um só tempo, os mundos por descobrir acenados pelas capas e páginas coloridas. E eu embarquei sem mesmo fazer minhas malas. De enseada em enseada, em cabotagem interior, minha pequena embarcação ancorou perante grandes obras e me trouxe os amigos e mestres que me entenderiam. Advertido por Ícaro, nunca me lancei ao vôo; avisado por Teseu, aprendi a desenrolar um fio sem entrelaçar-me nele...

(...)

Hoje vou ocasionalmente à janela da biblioteca para respirar o ar que vem de fora e observar a vida em movimento. Passei a me interessar pelas personagens vivas, pelas cidades, pelo riso. Os que me acenam de fora já me vêem um homem feito, embarcação estável e segura a simplesmente cortar os oceanos em silêncio solitário.

Mas não consigo ir-me completamente, mesmo terminado o expediente: a primeira cadeira onde sentei, o primeiro abraço dos volumes, a primeira sensação de um chamado me envolvem, até hoje, em acolhimento que busco espraiar.

 

8 novembro 2004

 


Bye-bye Brasil? - Paulo Roberto de Almeida

 O “país da meia entrada” prevalece sobre todos os demais. 

A população assistida supera o número de trabalhadores legalmente registrados. 

Nenhum país se desenvolveu pela via da assistência pública. 

Acredito que o Brasil esteja caminhando para a sua inviabilidade como nação normal!

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 29/08/2024

Bye-bye X, Twitter

 Talvez estejamos vendo, lendo, teclando os últimos dias do X. Um grande sentimento de perda, depois de alivio com o seu desaparecimento. Vamos ler, dormir, fazer coisas melhores. Alguns vão berrar desesperados. Depois passa. Bom Threads a todos.

A verfadeira perda já tinha sido na horrível transição do simpático Twitter para o desastrado X.

 Bom sono, bons sonhos a todos. 

Tchau! Bye!

Nota conjunta com Colômbia sobre a eleição venezuelana envergonha Brasil - Editorial O Globo

 Nota conjunta com Colômbia sobre a eleição venezuelana envergonha Brasil

O Globo | Opinião O Globo
28 de agosto de 2024

esta altura , já está claríssimo que Maduro fraudou o pleito e precisa entregar o poder a quem venceu

Desde 28 de julho, quando os venezuelanos foram às urnas, têm sido tíbias as manifestações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de seu assessor internacional Celso Amorim e do Itamaraty sobre a fraude cometida pelo ditador Nicolás Maduro para se perpetuar no poder. No último fim de semana, a condescendência com Maduro alcançou um patamar constrangedor na nota conjunta emitida por Brasil e Colômbia.

Quase um mês depois de Maduro perder a eleição e cometer uma fraude vergonhosa, está claríssimo que ele precisa entregar o poder a quem venceu. Em vez ae exigir isso, o comunicado conjunto repete a ladainha expressa pelo governo brasileiro desde a madrugada de 29 de julho, quando, horas depois do fechamento das urnas, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE), controlado pelo regime chavista, declarou Maduro vencedor sem divulgar os boletins de uma, conhecidos em espanhol como "atas". Na última semana, o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) venezuelano, também dominado pelo chavismo, validou a fraude sem sequer fingir examinar uma única ata. A nota conjunta limita-se a exigir a apresentação das atas para que o resultado possa ser aferido: "Brasil e Colômbia tomam nota da decisão do TSJ sobre o processo eleitoral. Reiteram que continuam a aguardar a divulgação, pelo CNE, das atas desagregadas por seção de votação".

A esta altura, diversas apurações independentes confirmaram a vitória do oposicionista Edmundo González com base nas atas que vieram a público. Organismos internacionais e organizações independentes de monitoramento eleitoral denunciaram a fraude de Maduro. Mas assessores de Lula continuam a defender a postura ambígua, argumentando ser importante manter um canal de comunicação aberto com o regime venezuelano, até para que Maduro entregue o poder de modo pacífico. Os fatos, porém, teimam em demonstrar que ele não tem a menor intenção de ceder.

O contraste com a reação de Argentina, Costa Rica, Chile, Equador, Estados Unidos, Guatemala, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana e Uruguai é vexaminoso. Juntos, os 11 países condenaram a pantomima ridícula do Judiciário venezuelano. "Rechaçamos categoricamente o anúncio do TSJ", afirma o texto conjunto. Em separado, o Departamento de Estado americano diz que a decisão "carece de toda credibilidade, dadas as provas contundentes de que González recebeu o maior número de votos em 28 de julho".

Desde a eleição, a repressão à oposição venezuelana tem sido cruel, e Maduro não dá sinal de estar disposto a negociar transição nenhuma. Enquanto a ditadura endurece, o Itamaraty segue o mesmo tom brando, sem nada conseguir. É verdade que até agora o governo brasileiro não reconheceu o resultado fraudado. Mas é pouca Pior do que não ter a menor influência na política venezuelana - ao contrário do que tenta dar a entender a dupla Lula-Amorim -, é o Brasil passar a imagem de conivente com um ditador sanguinário.



A ascensão do Resto - Ruchir Sharma (Financial Times)

 A ascensão do Resto

O grande retorno dos emergentes 

Várias nações estão com posições financeiras muito mais sólidas que os EUA.

Por Ruchir Sharma 

Financial Times (Estadão, 29/08/2024)

 

Nos anos 2000, quando um amplo boom econômico nas economias emergentes atraía bilhões de dólares para os seus mercados financeiros, o escritor Fareed Zakaria capturou aquele momento histórico como "a ascensão do resto". Agora, uma história igualmente encorajadora está se desenrolando no mundo emergente, mas poucos observadores perceberam e um número ainda menor de investidores estrangeiros vêm atuando nessa mudança importante.

Um grande retorno está em andamento. Após enfraquecerem bastante na última década, as economias emergentes estão reconstruindo sua liderança de crescimento em relação às economias desenvolvidas, incluindo até mesmo a mais forte, os Estados Unidos, a níveis não vistos em 15 anos. A proporção das economias emergentes em que o PIB per capita deverá crescer mais rápido do que nos EUA caminha para saltar de 48% nos últimos cinco anos para 88% nos próximos cinco. Essa proporção igualaria o auge do boom dos mercados emergentes nos anos 2000.

Esse boom nascente difere do último em aspectos fundamentais. Nos anos 2000, o mundo emergente foi impulsionado pela rápida ascensão da China, um grande aumento nos preços das commodities e políticas monetárias frouxas adotadas pelos bancos centrais ocidentais. Muitos comentaristas assumiram que "o resto" poderia continuar crescendo em massa graças à ascensão da China, mas eles acabariam ficando muito desapontados. Em2012, atingido pelo exagero, alertei para um iminente "fim do resto". De fato, a década seguinte foi desanimadora para os mercados emergentes - e excelente para os EUA.

Agora, porém, muitas nações emergentes estão com uma posição financeira muito mais sólida do que os EUA. Como uma superpotência superestimulada que depende de déficits recordes para impulsionar o crescimento, os EUA encontram-se em um caminho insustentável. As economias emergentes têm déficits orçamentários e em conta corrente muito menores, deixando-as com uma capacidade maior de investir e impulsionar o crescimento futuro.

Até mesmo países conhecidos no passado pela prodigalidade financeira, da Turquia à Argentina, retornaram à ortodoxia econômica.

O destino das nações emergentes não depende mais tão completamente do destino da maior delas. A recuperação atual está sendo impulsionada por outras nações além da China, cujas dificuldades (de uma população que está encolhendo a dívidas pesadas) obscurecem os pontos fortes de seus rivais do mundo emergente. A virada nacionalista de Pequim e as relações cada vez mais tensas com o Ocidente assustaram os investidores globais, que vêm saindo da China e estabelecendo fábricas em outros países.

Na próxima década, as exportações deverão ser particularmente fortes para as tecnologias verdes e as matérias-primas necessárias para construí-las, como o cobre e o lírio, que são fornecidos principalmente por nações emergentes. O boom da Inteligência Artificial (IA) já está aumentando as exportações de fornecedores de chips relacionados à IA (Coréia do Sul e Taiwan) e eletrônicos (Malásia e Filipinas). Os investimentos estão aumentando em muitos mercados emergentes, atraídos por uma variedade de pontos fortes - o grande mercado interno da índia, o ambiente fértil da Malásia para centros de dados e a proximidade do México com os EUA.

Com a aceleração do crescimento econômico, os lucros corporativos tendem a fazer o mesmo. Excluindo a China, os lucros no momento estão crescendo a um ritmo anual de 19% nos mercados emergentes, contra 10% nos EUA No segundo trimestre deste ano, pela primeira vez desde 2009 as corporações dos mercados emergentes (incluindo a China) superaram as previsões de lucros por uma ampla margem em relação às contrapartes americanas. As margens de lucro vêm melhorando nos mercados emergentes e estagnando nos EUA há 18 meses.

Os investidores no mercado de ações global, hipnotizados pelas companhias de tecnologia americanas de enorme valor de mercado, ainda não responderam. A movimentação está praticamente paralisada na maioria dos mercados de ações emergentes, com os volumes de negócios atingindo os níveis mais baixos em 20 anos em muitos países. Entre os poucos mercados emergentes que registram ganhos competitivos estão aqueles que possuem uma base de investidores internos forte e em crescimento acelerado - como a índia e a Arábia Saudita.

Ainda assim, há sinais de uma mudança iminente. A crescente reputação dos EUA como o gastador deficitário mais irresponsável do mundo - um império financeiro que toma seu status de moeda de reserva como garantido - ameaça minar o dólar. Nas últimas semanas, a moeda americana finalmente começou a cair, o que historicamente sempre levou a maiores fluxos de capital para os mercados emergentes.

Após uma longa permanência na sombra dos EUA, os mercados emergentes são uma pechincha cada vez mais atraente. Embora tenham voltado a registrar um maior crescimento nos lucros, eles são negociados a valores baixos recordes em relação aos EUA Durante 15 anos, os EUA apresentaram crescimento superior nos lucros, impulsionado principalmente pelas chamadas "Big Techs", mas isso também está mudando. O crescimento dos lucros das "sete magníficas", as sete maiores empresas de tecnologia dos EUA, agora deverão cair mais de 50% no próximo ano.

É claro que nunca fez sentido agrupar nações emergentes em um pacote sem rosto. A ascensão do resto significará uma boa década para as nações emergentes em média, mas liderada por um grupo seleto de estrelas, cada uma extraindo força de maneiras diferentes a partir das tendências favoráveis no comércio global, no dólar, nas reformas econômicas e na nova liderança política.

Lembre-se que até recentemente muitos comentaristas alertavam que, após o choque da pandemia, o mundo emergente estava vulnerável a crises em série. As expectativas continuam baixas e os temores são altos de que os mercados emergentes estão fora do radar da maioria dos investidores globais. Mas essa é a natureza dos retornos. Eles saem da obscuridade e, quanto mais profundas as sombras das quais eles surgem, mais drama envolve o retorno - uma vez que ele é reconhecido. 

Excluindo a China, os lucros crescem a um ritmo anual de 19% nos mercados emergentes, contra 10% nos EUA. No 2^ trimestre, pela primeira vez desde 2009, as companhias emergentes superaram as previsões de lucros por ampla margem das contrapartes americanas.  

 

Ruchir Sharma é presidente da Rockefeller International. Seu novo livro é "What Went Wrong With Capitalism". Copyright: Financial Time

Postagem em destaque

Livro Marxismo e Socialismo finalmente disponível - Paulo Roberto de Almeida

Meu mais recente livro – que não tem nada a ver com o governo atual ou com sua diplomacia esquizofrênica, já vou logo avisando – ficou final...