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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

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sexta-feira, 19 de março de 2021

Grupo de Trabalho; Comissão Interamericana de Direitos Humanos - proposta de ação contra ações do Estado bolsonarista contra Direitos individuais

Recebi, de um grupo de trabalho composto por professores de Direito e especialistas em Direito Constitucional, o seguinte anúncio sobre esta importante iniciativa.
A despeito de não ser parte da tribo dos juristas ou advogados, sou professor em um programa de mestrado e doutorado em, Direito, e portanto divulgo com o maior prazer e interesse pessoal e intelectual os propósitos deste grupo.
Paulo Roberto de Almeida
GRUPO DE TRABALHO
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Olá, caros amigos e amigas! Nunca antes em nossa breve história democrática se viu um elástico, indevido e irrazoável uso da Lei de Segurança Nacional, para investigar, processar e inibir os discursos críticos contra instituições ou agentes públicos. Já era sabido e consabido por todos que a referida lei foi elaborada em outra realidade, muito distinta do atual Estado Democrático de Direito.
Em situações normais, poderíamos nos socorrer de mecanismos tradicionais oferecidos pelo Direito interno, acionando o Poder Judiciário para sanar a ameaça ou a lesão a direito. Ocorre que o próprio Supremo Tribunal Federal vem utilizando a Lei de Segurança Nacional para investigar suspeitos em um inquérito instaurado de ofício.
Dessa maneira, é muito pouco provável que o Supremo Tribunal Federal, nos próximos meses, declare inválida a Lei de Segurança Nacional (nas ADPF's que se encontram pendentes de julgamento). Por sua vez, o Poder Legislativo dá mostras de que não pretende modificar a legislação. Enquanto isso, o Poder Executivo, por meio do Ministério da Justiça, requisita instauração de inquéritos policiais contra postagens em redes sociais, outdoors, cartuns, textos jornalísticos etc.
Diante desse cenário, decidimos peticionar à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, apontando a violação dos direitos fundamentais, de forma estrutural e sistemática pelo Estado brasileiro.
Teremos muito trabalho pela frente e a participação de todos será muito bem vinda. O trabalho será desenvolvido nas seguintes etapas: a) colheita de provas, identificação de vítimas e agentes violadores do Estado, descrição detalhada dos fatos violadores; b) elaboração da petição; c) divulgação do protocolo na imprensa, mídias sociais, carta aberta com todos os integrantes do grupo etc.; d) relacionamento diplomático com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
No dia de hoje, fizemos uma reunião com professores de Direito Constitucional, Internacional, Humanos e Penal, para estabelecer a estratégia de trabalho. As ações serão coordenadas pelos professores CAIO PAIVA, uma das maiores autoridades em Direito Internacional e Humanos do Brasil e RICARDO MACAU, doutor pela USP e grande especialista em Direito Internacional.

Acreditamos que temos muita chance! Podemos fazer história com esse nosso grupo de trabalho. Além de termos elementos fáticos e jurídicos para fazer a questão prosperar na Comissão Interamericana e na Corte Interamericana, podemos mostrar aos brasileiros que há mecanismos internacionais capazes de coibir abusos perpetrados pelo Estado. 



O Cronista Misterioso fala do Itamaraty das antigas, que não era perfeito, e do atual, ARRASADO pelo chanceler acidental

[Nota PRA: Mais um petardo que me chega defasado, e novamente com número duplicado, o que indica que deu comichão no Cronista Misterioso, sentiu necessidade de retomar da pluma, como um saudosista irado, contra o nefando capacho que está destruindo não só nossa imagem internacional, mas a própria credibilidade da diplomacia profissional, cujo corpo permanente, entre os quais eu me incluo, contempla com horror o desprezo que esse submisso de aloprado devota às nossas mais sensatas tradições. Ereto da Brocha não deixa de mencionar todos os vícios e deformações de uma Casa que eu sempre chamei de FEUDAL, mas ele reconhece que o capacho dos Bolsonaros se encarregou de chutar seus méritos e qualidades. O Itamaraty agoniza, mas como naquela famoso samba, não morre: vai renascer...]


40bis O Passado (semana 40-bis)

 

Agarro-me desesperadamente ao passado, às glórias que tivemos, às tradições e às histórias luminosas sobre um Itamaraty que me envaidasse e me aquece a alma. “Não tire de mim esse amor louco por aquilo que não é mais. O que foi é esplendidamente mais bonito do que tudo o que é!”, clamo aos berros as palavras do Imperador Juliano às paredes de meu apartamento, em português, pois nem eu, nem o leitor, nem meus pobres vizinhos, somos obrigados a saber as minúcias do Latim Bizantino.

 

Essa paixão louca pelo passado me domina pouco a pouco. Sou um saudosista, confesso. Ainda ouço meus discos do Cartola na Technics que comprei em Nova Iorque, ainda mando cartões postais e ainda lembro de um Itamaraty de glórias. Tudo isso remonta a um passado igualmente longínquo, tão distante quanto ficcional. Por vezes me pergunto se deveras vivi, ou se imaginei essa instituição que servi por tantos anos.

 

Lembrar do passado é uma tentação, mas não nos deixemos cair em tentação. Chuto esse saudosismo para fora e lembro que o Itamaraty é uma geringonça com enormes defeitos. Exclusão social, racismo, sexismo, violência moral, favoritismos e ignóbeis hierarquizações. Essa é verdade que não pode ser ignorada. 

 

Pergunto-me, então, o porquê de estarmos tão enamorados de um passado que, malgrado reais glórias e contribuições ao progresso do país, é tão maculado por atitudes tão condenáveis? A resposta é simples… o presente é muito pior. Ernesto parece não somente ser capaz de potencializar todos os defeitos intrínsecos ao Itamaraty, que são muitos, mas também capaz de destruir todas as boas qualidades desta casa e, quiçá, criar novas e mais perniciosas mazelas de nossas almas.

 

Em nome de um Itamaraty ereto, reflitam. 

 

Ministro Ereto da Brocha, OMBUDSMAN

 

Batman volta, conclamando à resistência de TODOS os servidores do Itamaraty, contra o chanceler aloprado e os destruidores da política externa

 [Nota PRA: Este petardo de Ereto da Brocha, o Cronista Misterioso do Itamaraty, acaba de me chegar, hoje (19/03/2021), com uma numeração duplicada, 34bis, quando na contagem geral, ainda que defasada, já passamos da semana 46. Pela primeira vez, nosso Batman se refere aos que estão na linha de frente da resistência, entre ativos e aposentados, sendo que eu recebo a distinção de ser mencionado entre os primeiros. Ao agradecer ao nosso colega resistente, conclamo todos os demais colegas a sinalizarem, da forma que acharem apropriada, sua REPULSA ao chanceler submisso, capacho, aloprado e alucinado, que está DESTRUINDO O ITAMARATY. Fica aqui minha mensagem: CHEGA E.A., BASTA, apresente sua renúncia, para não passar definitivamente aos anais como o diplomata que DESTRUIU A DIPLOMACIA brasileira. Já deu, ninguém lhe aguenta mais...]


34bis Eu nem sei quem sou? (semana 34-bis)

 

Regozijo-me, devo admitir amigo leitor, que estas babozeiras que tenho dedicado a vossos olhos tenham tido aderência entre jovens e velhos diplomatas. Alegro-me, devo também admitir, de perceber que estas linhas tenham sido consideradas, bem ou mal, críticas apropriadas ao desgoverno que vivemos em nosso Itamaraty. É-me, contudo, necessário reforçar que minha exultação vem não só dos sopapos que tenho trocado com o bolso-olavismo, mas também das indagações sobre minha verdadeira identidade. 

 

Essas elocubrações sobre minha identidade têm se espalhado até mais do que minhas críticas. Infelizmente, pois parece que tenho gerado mais curiosidade do que insuflado os espíritos contra os asnos que nos dominam. Minhas críticas tornam-se apenas mais um bricabraque da vida, enquanto eu nem sei quem sou.É uma pena. 

 

Farei uso, todavia, desta curiosidade para permanecer na batalha, pois quem sou é uma obviedade. Sou mulheres e homens. Sou índios, negros, brancos, pobres e ricos. Sou homossexuais, evangélicos e militantes. Sou os erros e os acertos. Sou o passado condensado com o futuro que recuperaremos. Sou secretárias, conselheiros, ministros e embaixadoras; quiçá, todos ou quase todos os diplomatas. Como legião, somos uma ideia e não uma pessoa. 

 

Nossa legião, como não poderia ser diferente, são Celsos, Teresas, Rubens, Jobims, Viottis, Escoréis, Paulo Robertos, Samucas, Barões, Maria Celinas, Viscondes, Merquiores, Azambujas, San Tiagos, Lampreias, Azeredos, Synésios, Telles Ribeiros, Abdenures e tantos outros que construíram as paredes desta casa. Mas somos também as bases das estruturas. Somos jovens diplomatas e ofchans que construirão nosso futuro, seguramente mais justo e igual que este. Também menos lunático, menos hierárquico e menos facistóide que este.

 

Ora, quem sou, senão eu? Sou todos aqueles que desprezam o bolso-olavismo e repudiam Ernesto e sua claque. E apesar de vocês, ainda que a nossa gente ande falando de lado e olhando pro chão, quando chegar o momento, esse nosso sofrimento vamos cobrar com juros. E você, Ernesto, vai pagar e é dobrado cada lágrima rolada no penar do nosso povo. 

 

Todos juntos, somos fortes. 

 

Ministro Ereto da Brocha, OMBUDSMAN

 

General Santos Cruz: declaração pública sobre posturas políticas

 Transcrevo e subscrevo ao chamamento para uma união de todos os setores do centro, para evitar uma polarização nefasta:

Nota de esclarecimento do general Santos Cruz: 

ESCLARECIMENTO

O Jornal O Estado de S. Paulo publicou, na edição de ontem (17.3.2021), a informaçao de que a direção do PT ventilou meu nome em um possível convite para compor uma chapa à Presidência da República com o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, dentro de um movimento de aproximação com os militares. A respeito desse assunto, venho a público esclarecer a minha posição.

1.       Jamais recebi qualquer comunicação sobre o assunto em foco e não sou filiado a nenhum partido político. Também, por diversas outras razões, não é possível tal composição. 

2.       Sou um cidadão de direita (apesar de considerar as simplificações "direita e esquerda" limitadas e antiquadas).  Considero o diálogo essencial e repudio o extremismo ideológico, a corrupção, o fanatismo político, o populismo e a demagogia. Tenho sido claro em dizer que o Brasil não merece ter que optar entre dois extremos já conhecidos, viciados e desgastados. Ambos os extremos  do nosso espectro politico são exatamente iguais na prática e não servem para o Brasil.

3.       Neste momento, sou a favor de um governo que promova a paz e a união nacional, que governe para todos e não apenas para os seus seguidores mais próximos. A sociedade não pode viver em estado permanente de campanha política, dividida em amigos e inimigos, intoxicada e manipulada por extremistas. As instituições precisam ser independentes e o aparelhamento das mesmas é inaceitável. O Brasil precisa voltar ao equilíbrio, à normalidade.

4.       Minhas manifestações públicas têm os objetivos de alertar para o perigo do fanatismo político que gera violência e para as tentativas absurdas de arrastar o Exército, aonde servi por cerca de 47 anos, para o dia-a-dia da política partidária e utilizá-lo como instrumento na disputa de poder.

5.       Sou crítico do governo por causa da influência de fanáticos extremistas, falta de comportamento adequado, afastamento das promessas que o levaram ao poder, postura populista, foco em reeleição, irresponsabilidade e polarização política.

6.        É inaceitável que a pandemia tenha sido conduzida sem liderança, com falta de considerações técnicas, com constantes tentativas de desmoralização dos procedimentos apropriados, politização completa de todo o processo e até de medicamentos, e a consequente falta de vacinas, necessárias para salvar vidas e possibilitar o retorno das atividades econômicas. Houve perda de tempo com banalidades e estamos absurdamente atrasados.     

7.       Considero a Operação Lava Jato um marco na nossa história e na esperança de combate à corrupção. Essa operação e outras devem ter continuidade, incluindo o aperfeiçoamento dos mecanismos de transparência e controle de contas públicas.

8.       A reforma do Estado deve contemplar a extinção de todos os privilégios, a começar pelo foro privilegiado.

9.   Acredito numa diplomacia atuante, responsável e multilateral, colocando o Brasil na liderança mundial das questões de preservação da Amazônia e do meio-ambiente.

10.    Considero a liberdade de opinião e de imprensa como fundamental para a democracia, que depende também do aperfeiçoamento permanente das instituições. 

11. A descrença e o desprestígio no Executivo, no Legislativo e no Judiciário e em outras instituições precisam ser tratados com discussão de ideias e medidas que produzam os aperfeiçoamentos institucionais necessários.

12.   Não creio em salvador da pátria  e nem que exista necessidade de tal  salvamento. Acredito no trabalho e na capacidade dos cidadãos.

13. Como eleitor, espero que  as forças políticas e produtivas (empresários e cidadãos), construam alternativas que levem a um governo que traga de volta a paz, o respeito, a união, a recuperação  da economia, reduza a nossa imoral desigualdade social e auxilie os mais vulneráveis.

14. Essas são as razões pelas quais não existe nenhuma possibilidade da minha participação nos dois extremos que considero nocivos ao Brasil.

Brasília, 18.3.2021

Carlos Alberto dos Santos Cruz



Velhos bárbaros, novo Império: resenha de Jean-Christophe Rufin: L’Empire et les Nouveaux Barbares (1991) - Paulo Roberto de Almeida

 Velhos bárbaros, novo Império

 

Paulo Roberto de Almeida

Revista Brasileira de Política Internacional

(Rio de Janeiro, ano XXXV, n. 137-138, 1992/1, pp. 97-103)

 

Jean-Christophe RUFIN: 

L’Empire et les Nouveaux Barbares

Paris, Éditions Jean-Claude Lattès, 1991, 249 pp.

 

O tema está, sem dúvida alguma, na ordem do dia: a emergência de uma nova ordem mundial após a derrocada do sistema soviético. As teses e argumentos do autor não deixam tampouco de ser provocantes: a solidão das democracias ocidentais em face, não mais do inimigo ideológico tradicional, mas, da preocupante nebulosa dos povos divididos do Terceiro Mundo. Ambos se contemplam de um lado e outro do limes, a fronteira imprecisa entre dois mundos: o Norte, recentemente reunificado e supostamente depositário dos valores do direito — o Império — e o Sul, caótico e incontrolável na diversidade de seus povos — os novos bárbaros.

 

Vinho Novo, Velhos Odres

Como todas as teses dicotômicas, o ensaio de Jean-Christophe Rufin incita não só ao debate, mas também à contestação. E, como todos os argumentos razoavelmente “catastrofistas”, o sucesso de mídia parece igualmente assegurado. Esses parecem aliás ter sido os objetivos do autor: provocar a indignação, quando não a rejeição das teses “defendidas” e, por isso mesmo, suscitar um movimento de reação ao curso aparentemente irreprimível tomado na atualidade pela chamada “nova ordem mundial”: a conformação de um novo tipo de “apartheid”, mais insidioso e generalizado que o velho sistema em vias de desaparecimento no país que o criou.

Como demonstrado pela experiência de denso best-seller do historiador Paul Kennedy sobre a ascensão e queda das grandes potências, (1) [Nota ao final] discursos sobre a decadência ou o sucesso relativos das nações sempre despertam sentimentos ambíguos em cada um de nós. Desta vez não se trata de uma pergunta dirigida apenas aos dinossauros da política mundial, mas ao conjunto dos países em desenvolvimento, isto é, à maioria dos membros da já imensa comunidade mundial. Todos devemos, assim, perguntar-nos: a sociedade onde vivo caminha para a frente, para níveis mais elevados de progresso econômico e de bem-estar social, ou seja, no sentido da História, ou, ao contrário, estaria ela condenada ao declínio, à estagnação, ao caos social ? Numa palavra: como meu país se situa em relação à modernidade encarnada pelos países já avançados ? 

Nesse particular, o diagnóstico de Rufin é aparentemente inapelável: o Norte, agora liberado da confrontação Leste-Oeste, prossegue pacientemente seu rumo em direção do futuro, acumulando riquezas e dispensando bem-estar a seus habitantes. O Sul, ao contrário, pareceria condenado ao marasmo econômico, aos conflitos militares e raciais, enfim, à anarquia social e política.

O que é mais preocupante é que não se trata de um simples “atraso histórico” em relação às realizações materiais, econômicas, científicas e culturais do Norte desenvolvido: o que os países do Sul apresentam, na verdade, é uma realidade substancialmente diferente daquela observada no hemisfério setentrional. Os valores greco-latinos são, segundo Rufin, rejeitados ao sul do Equador, a anarquia incontrolável de determinadas porções do planeta estaria transformando territórios mais ou menos vastos em novas terrae incognitae onde nenhum ocidental ousa mais se aventurar, catástrofes e guerras se disseminam no mais completo descaso em diversas regiões.

Para garantir sua própria segurança, o Norte se fecha aos influxos humanos do Sul e passa a reforçar barreiras materiais à penetração dos novos bárbaros. Essas paliçadas modernas são constituídas por Estados tampões, cuja função é a de frear as correntes migratórias, diminuir os pontos de conflito e, em última instância, garantir as fronteiras do Império.

Este é o quadro geopolítico global — amargo, talvez, e mesmo cínico, mas realista — que, segundo Rufin, caracterizaria a nova ordem mundial em construção. O cenário traçado não poderia ser mais claro em sua crueza dicotômica, sob risco de parecer simplista. Mas, antes de rejeitarmos a tese principal de Rufin como irremediavelmente contaminada por um novo tipo de maniqueísmo — ao substituir a hoje defunta oposição Leste-Oeste pelo conflito Norte-Sul, em versão revista, corrigida e ampliada — cabe reconhecer a seriedade e pertinência dos argumentos desenvolvidos em seu ensaio, quando não a fundamentação empírica da maior parte de suas afirmações.

Seu ensaio é, porém, deficiente em razão de duas ordens de problemas: por um lado, um reagrupamento arbitrário, algumas vezes incoerente, de uma série de dados objetivos — demografia, mores social, comportamento político, conflitos militares — sobre diferentes países do Terceiro Mundo; por outro lado, um pecado metodológico comum a todos os comparatistas transtemporais: o desejo de encaixar novas realidades em velhos moldes históricos. Vamos tratar sucessivamente dessas duas questões, ao mesmo tempo em que repassamos os argumentos de Rufin.

 

Existe um Terceiro Mundo ?

Todo o livro de Rufin é construído sobre a oposição entre o Norte, que adere aos valores democráticos e humanos mais ou menos identificados com a ideologia americana, e o resto do mundo, isto é, os novos bárbaros. Nem o Sul, nem o Norte são entidades homogêneas, como o reconhece o autor, mas um conjunto de elementos os diferenciam entre si, ou melhor, diversos traços negativos afastam de maneira inquestionável o destino sombrio dos países do Sul do itinerário relativamente satisfatório seguido pelos países do Norte. 

Já sabíamos, desde Max Weber, que toda ciência social é permeada de subjetividade e que todo comparatismo está irremediavelmente comprometido pela nossa própria visão do que seria o “padrão normal” de desenvolvimento histórico e social. O mesmo Weber, que fazia seus exercícios de comparação sociológica com base nos famosos “tipos ideais”, seria extremamente cauto em fazer a análise dessa imensa variedade de problemas ao abrigo da noção de “terceiro mundo”, um conceito tão carregado de contradições quanto a própria realidade que ele pretende descrever.

Na verdade, os elementos selecionados por Rufin para descrever o quadro político, econômico, social, demográfico e cultural dos países do Sul são todos relevantes quando tomados individualmente ou de maneira tópica para cada um dos países mencionados. A dificuldade está, precisamente, em subsumir elementos de origem diversa num mesmo cenário “unificador”: o assim chamado “terceiro mundo”.

Dito isto, não há como recusar a realidade atual dos países do Sul, tal como evidenciada de maneira dramática no livro de Rufin. Senão vejamos: aparecimento e ampliação de zonas de insegurança relativa em diversas regiões, seja na América Latina (onde o caso mais evidente é o do Peru), na África (Etiópia, Somália, Libéria, etc.), no Oriente Médio (Líbano) ou na Asia (Índia, Sri Lanka, Indochina), conformando as já mencionadas terrae incognitae do novo mapa planetário; colusão do crime organizado com as zonas de pobreza urbana, em diversas megalópoles do Terceiro Mundo; diferenciação gritante das taxas de natalidade ao sul e ao norte do Equador, desmentindo as teses antimalthusianas sobre a “transição demográfica”; acumulação de “arquipélagos de miséria”, nas zonas de refugiados políticos ou econômicos em vários pontos do mundo ou nas próprias cidades do Sul, como resultado do êxodo rural; desenvolvimento de novas ideologias insurrecionais, em ruptura com o marxismo tradicional, sustentando movimentos guerrilheiros virulentamente antiocidentais e anti-humanistas (Sendero Luminoso, Kmer Vermelho, fundamentalistas islâmicos, etc.); disponibilidade de armas e equipamentos sofisticados nas mãos de grupos radicais ou simplesmente criminosos; ineficiência relativa ou absoluta dos programas de desenvolvimento, seja pela ausência de mínimas condições favoráveis à implementação dos projetos, seja pela dilapidação dos recursos da cooperação internacional nas mãos de agentes corruptos. Enfim, um pouco em todas as partes do Sul o que se observa é uma situação geral que não é de simples “atraso histórico” em relação aos países do Norte — atraso que poderia, teoricamente, ser coberto em prazos mais ou menos curtos, segundo os níveis de desenvolvimento já alcançados — mas, uma condição fundamentalmente diversa da dos países avançados, uma diferença estrutural quanto ao modo mesmo em que se processa o “desenvolvimento”.

Rufin tem, sem dúvida alguma, razão no que se refere à maior parte de suas constatações “objetivas” sobre a situação dos países do Sul. De uma forma geral, o quadro é desalentador: avanço da miséria, da instabilidade política e militar, deterioração das condições de vida na maioria das megalópoles do Sul, progressão do crime organizado e da corrupção, falência geral das instituições públicas, numa palavra, recuo geral da sociabilidade e avanço da anomia. Tudo isso é bem real no Terceiro Mundo, mas não necessariamente verdadeiro para os países individualmente.

O cenário assustador do território de “bárbaros” é construído com base nos exemplos mais deploráveis que se oferecem aos olhos dos observadores do Império, elementos de natureza diversa pinçados aqui e ali na atualidade sempre trágica dos chamados “pontos quentes” do terceiro mundo. Esse terceiro mundo do livro de Rufin é o mesmo que comparece regularmente nos telejornais do Norte: guerrilhas, catástrofes naturais e sociais, ditadores sanguinários e líderes corruptos, criminalidade generalizada nas grandes cidades, violência gratuita contra mulheres, abusos dos direitos humanos, camponeses famintos, crianças abandonadas, menores assassinados, em suma, um novo pátio dos milagres com nome e endereço. O Terceiro Mundo não deixou de existir apenas pelo desaparecimento do Segundo: ele prospera, e sua face é horrenda, merecendo mesmo o epíteto de território de bárbaros.

Não se pode, evidentemente, negar a manutenção de altas taxas de fecundidade em muitos países do Sul, bem como a preservação e ampliação de focos de miséria, de desigualdade e de injustiça social na maior parte deles. O que é, entretanto, contestável, do ponto de vista da “boa” ciência social, é o agrupamento de todos esses exemplos “objetivos” numa mesma construção ideal — o chamado “terceiro mundo” — que corresponde, cela va de soi, às expectativas mentais dos habitantes do Império.

Em outros termos, os “novos bárbaros” do terceiro mundo constituem um aglomerado de “primitivos” irremediavelmente divorciados dos valores e práticas conhecidas no Norte. Como trabalho jornalístico, o livro de Rufin é o que se poderia chamar de bom exemplo de “reportagem catástrofe”; como análise objetiva da situação real dos países do Sul, contudo, é um mero emaranhado de horrores, tentando apresentar-se sob forma de edifício coerente.

Essa construção, porém, em que pese toda sua força de atração dramática, simplesmente não consegue manter-se de pé, pelo menos vista pelo ângulo da ciência social. Em primeiro lugar, porque não há esse terceiro mundo descrito por Rufin, mas tão simplesmente lugares e países diversos, apresentando problemas de distinta natureza, derivados de múltiplas causas estruturais ou conjunturais que existem episódica ou permanentemente nos diferentes continentes que compõem esse amálgama maior conhecido por Terceiro Mundo. Em segundo lugar, porque a coleção de tragédias que ele vislumbra nos territórios dos novos bárbaros é por demais incoerente, do ponto de vista analítico, para justificar esse agrupamento parcial e simplificador de elementos heterogêneos numa única construção ideal — o Sul — que se oporia ao Norte em todas as frentes possíveis do desenvolvimento histórico e social.

Pode-se tentar compreender as razões do pessimismo extremo de Rufin: coopérant francês em diversas regiões miseráveis do terceiro mundo (redundância?), coordenador de ajuda humanitária (Médecins Sans Frontières) em regiões de conflito, responsável por diversos programas de socorro urgente em zonas de guerra civil e de refugiados, ele já passou por diversos “infernos” terrestres, feitos pela própria mão do homem (com armas do primeiro mundo, é verdade). Rufin conhece, por assim dizer, as “entranhas” do mundo bárbaro: Líbano, Sudão, Somália, etc.

O que não se pode admitir, no entanto, é uma generalização duvidosa e um amálgama indevido dessas diversas situações de crise extrema e sua extensão abusiva ao conjunto dos países em desenvolvimento, como se, d’un coup, os “bárbaros” dominassem de maneira uniforme os territórios ao sul do novo Império.

 

A Miséria dos Modelos

O problema fundamental do discurso de Rufin, entretanto, não se resume à incoerência dessa agregação de dados dispersos para dar uma imagem caótica de um terceiro mundo unido em seu barbarismo. Ele é, mais exatamente, resultante do desejo secreto de todo aprendiz de comparatista de encontrar um precedente histórico e um paradigma analítico para uma oposição pré-fabricada e aprioristicamente definida entre o Norte e o Sul. A comparação ou, melhor, o modelo adotado no ensaio de Rufin recua longe na História, quando o Império romano, após derrotar Cartago — uma espécie de União Soviética da antiguidade — encontrou-se só em face da maré de bárbaros que batia às portas do mundo civilizado. Uma vez vencido o “império do mal” cartaginês, tratava-se de consolidar as fronteiras do “império do bem”, instalando, nos postos avançados da conquista romana, uma fronteira bem demarcada que tomará o nome de limes.

Hoje em dia o limes, na versão apresentada por Rufin, iria do Rio Grande, na fronteira México-EUA, passaria pelo Mediterrâneo, penetraria nas montanhas do Cáucaso e nas estepes mongóis para terminar nos rios Amur e Ossuri, entre a Sibéria oriental e a China. Esses limites correspondem, grosso modo, ao que, no vocabulário onusiano, foi identificado como o conjunto dos países em desenvolvimento, em oposição aos demais grupos da comunidade internacional. Em outros termos, não há, à primeira vista, novidades geopolíticas no novo mapa traçado por Rufin. Tampouco é surpreendente vê-lo caracterizar o México ou o Marrocos como Estados tampões, isto é, zonas de segurança e de estabilidade na fronteira imediata entre o Norte e o Sul.

Mais interessante, por sua vez, é sua caracterização do Irã e da China como sendo igualmente Estados tampões. Independentemente, portanto, da ideologia política ou do regime econômico e social adotados por cada um desses países, eles desempenhariam o mesmo papel no limes: imobilismo, estabilidade, garantia de paz para o Norte. Vale a pena retomar a descrição de Rufin para o papel da China, que também valeria, mutatis mutandis, para o caso do Irã:

“Perfeitamente à vontade no seu papel de Estado tampão, ela não é uma escória, um vestígio do mundo soviético em vias de extinção. Ela é, ao contrário, enquanto tecnologia da estabilidade, um modelo: o dos futuros Estados tampões que se instalam ao longo do limes. A característica desse modelo é uma mistura bastante surpreendente de eficiência política — no controle e na opressão — e de marasmo econômico” (p. 197).

“Estabilidade, dependência, eis o que o Norte pede aos Estados tampões. No demais, suas vociferações contam muito pouco. No caso dos totalitarismos marxistas de tipo chinês, a retórica anticapitalista pode se desenvolver sem inconvenientes. Ela serve, ao contrário, para reunir o que resta dos movimentos revolucionários internacionalistas no mundo e a evitar sua dispersão anárquica. Mas, a ineficiência econômica é a garantia de que o tigre tem os dentes e as garras limadas. Pode-se deixá-lo morder, pode-se deixá-lo rugir. Ele se mantem solidamente em suas patas, eis tudo que lhe é pedido” (p. 198).

Assim, a despeito de uma discordância fundamental com Rufin a propósito mesmo do modelo Império/novos bárbaros adotado em seu ensaio, cabe reconhecer a agudeza de sua análise política a propósito do papel da China (e do Irã) na nova ordem mundial em construção. Ao Norte interessa muito mais um Estado opressor, mas estável em sua função de fronteira, do que uma democracia insegura e problemática.

Sobre as condições de funcionamento e de manutenção do novo “apartheid”, as posições de Rufin são igualmente pertinentes. “O Império deve, em primeiro lugar, estabelecer um equilíbrio militar ao longo do limes. Depois, ele deve poder se precaver contra perigos longínquos, aqueles que intervêm nas profundezas do mundo bárbaro. Enfim, ele deve aprender a conduzir, ao longo do limes, uma diplomacia da desigualdade” (p. 212). 

A utilização do conceito de “apartheid” pode parecer chocante, ademais de extremamente forte para caracterizar as possíveis relações futuras entre os países do Norte e as nações em desenvolvimento. Ela não é, contudo, em nada exagerada. Aliás, a aplicação desse princípio já foi explicitamente recomendada, embora ao abrigo de um pseudônimo, por um alto funcionário do Governo francês especialista em questões de defesa, devendo o novo regime ser observado antes de mais nada nas transferências ditas “dualistas” de tecnologia (hoje em dia quase todas o são). (2) Apesar de vinculado ao problema das tecnologias de emprego militar, o argumento, exposto brutalmente, é o de que se deve reforçar e adaptar os regimes atualmente em vigor (TNP, Cocom, regime de controle de tecnologia de mísseis), abandonando-se a distinção entre tecnologias civis e militares e estabelecendo-se um “secretariado internacional permanente” para coordenar as exportações de tecnologias “sensíveis”. Considerando-se que mesmo a concepção e manufatura de circuitos integrados já foi declarada pelo Pentágono como do interesse da segurança nacional norte-americana, pode-se deduzir facilmente até onde poderia chegar um tal regime de controle.

Jean-Christophe Rufin deseja, evidentemente, o fim do “apartheid”, de preferência através de uma decidida ação de caráter universalista e humanista que, ao mesmo tempo em que busca perseverar nos projetos de cooperação para o desenvolvimento, faça a denúncia constante de todos os tipos de despotismos: o do dinheiro, o do fanatismo religioso, o da injustiça social. O único problema é que a iniciativa, mais uma vez, deve vir do Norte: assim, os que no Sul se batem pela transformação — são expressamente citados Vargas Llosa e Fernando Collor — deveriam receber mais “ajuda” do Norte. Sua denúncia das hipocrisias mantidas tanto ao Norte quanto ao Sul é, entretanto, muito bem vinda, em que pese o anacronismo da comparação da situação atual com a Roma antiga.

Resta uma última observação, não só em relação ao título da obra, como no que se refere à adequação do adjetivo “novo” aplicado aos “bárbaros”. Estes, como a miséria e a opressão, sempre existiram e continuam a carregar uma existência dramática através dos séculos. O Norte, por sua vez, encontra-se numa situação historicamente inédita: já não se vive a “bipolaridade” dos últimos quarenta anos, nem tampouco retornou-se ao “equilíbrio de potências” do século passado. Dessa forma, o império, sim, é que é novo, pois os “bárbaros” são nossos velhos conhecidos.

 

 

Notas:

1 Cf. Paul M. KENNEDY, The Rise and Fall of Great Powers: Economic Change and Military Conflict from 1500 to 2000, Nova York, Random House, 1987. Edição brasileira: Ascenção e Queda das Grandes Potências, Rio de Janeiro, Editora Campus, 1989, tradução de Waltensir Dutra.

2 Vide Jean VILLARS, “Pour l’Apartheid Technologique”, L’Express (14 setembro 1990, pp. 30-31).

 

[Brasília, 28/02/1992]

[Relação de Trabalhos nº 225]

A linguagem diplomática que pode ser usada contra o Brasil - Gustavo Macedo (Nexo Jornal)

 Ensaio: 

A linguagem diplomática que pode ser usada contra o Brasil

Gustavo Macedo


Apesar de improvável, há teses que podem conectar o princípio da ‘responsabilidade de proteger’, comumente associado à proteção de populações civis de atrocidades em massa, à preservação da Amazônia

Gustavo Macedo


‘A imagem que se constrói lá fora é de um Brasil descomprometido com suas responsabilidades, colocando em risco a segurança ambiental do planeta. Cresce a disposição para que algo seja feito.’ 

Leia no ensaio do cientista político Gustavo Macedo.


Há exatos dez anos o Conselho de Segurança da ONU (Organização das Nações Unidas) autorizava a intervenção militar na Líbia com base no princípio da responsabilidade de proteger”. A intervenção foi um desastre, mudou o regime político líbio e destruiu a legitimidade institucional que existia no país. Hoje, o território fragmentado convive com uma guerra civil, é rota de comércio de escravos e posto avançado de grupos terroristas que assombram o continente.

Renovado, o princípio sempre volta a aparecer quando é conveniente. Dessa vez, discute-se seu uso contra o Brasil.

Embora a Amazônia se estenda por nove países sul-americanos, 60% dela está em território brasileiro, o que explica a preocupação da opinião pública internacional com sua destruição. Fato esse acentuado pelo descaso do Brasil na proteção do ecossistema mais biodiverso da Terra. De acordo com o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, o desmatamento florestal      cresceu 34% em relação ao ano anterior, e tudo indica que aumentou ainda mais em 2020 apesar da crise econômica. 

Apesar disso, o governo tem trabalhado contra suas obrigações constitucionais e compromissos internacionais ao desmantelar a escassa estrutura institucional da qual dispomos. O Projeto de Lei Orçamentária Anual de 2021 prevê uma redução de 27,4% no orçamento do Ministério do Meio Ambiente – o menor das últimas duas décadas; enquanto o governo age para reduzir os autos de infração realizados pelo Ibama de 14.641 em 2019 para 9.516 em 2020

Pouco a pouco, a imagem que se constrói lá fora é de um Brasil descomprometido com suas responsabilidades, colocando em risco a segurança ambiental do planeta. Cresce, portanto, a disposição para que algo seja feito.

Naturalmente, qualquer discussão coletiva de uma ação externa contra a vontade do Brasil passará pelo Conselho de Segurança e a aprovação por seus membros permanentes. Eis que infelizmente, para nós brasileiros, nossas relações com esses membros já viram dias melhores. 

Em 2019 o presidente francês Emmanuel Macron declarou que se deveria discutir a internacionalização da Amazônia e uma eventual intervenção. Em 2020 nos indispusemos com nosso maior parceiro comercial quando membros do governo brasileiro perpetraram ataques xenófobos contra a China. E, finalmente, em 2021, Joe Biden assumiu o comando dos Estados Unidos após sair vitorioso de uma campanha presidencial na qual atacou a política ambiental do Brasil.

Episódios como esses têm reanimado a hipótese de que a responsabilidade de proteger poderia ser usada de alguma forma no caso brasileiro.

Todavia, embora pareça improvável, essa conexão não é impossível. Seria preciso alguma criatividade para conectar responsabilidade de proteger com proteção ambiental. Fato é que o princípio nunca se preocupou com ameaças ambientais, e seu foco sempre foi a proteção das populações civis de atrocidades em massa. Dito isso, expomos abaixo três teses que podem vir a ser usadas contra o Brasil em algum momento.

À primeira vista, falar sobre proteger a Amazônia soa como proteger a fauna e a flora de seu extermínio. Essa é a tese da prevenção de um ‘ecocídio’, ou seja, quando a atividade humana viola os princípios da justiça ambiental por meio do dano sistemático ou destruição de ecossistemas ou ataque à saúde e bem-estar de uma espécie. 

Ecocídio é uma ideia da década de 1970, mas que até hoje não é reconhecida como um crime internacional pelas Nações Unidas. Assumir que a vida de plantas e animais são tão sagradas quanto a humana ainda parece ser um capítulo distante na história da diplomacia. 

Politicamente, essa também é a hipótese mais fraca para uma ação internacional. Os principais países de economia industrializada que hoje assumem uma bandeira ambiental são justamente aqueles que mais destruíram suas florestas, ou de suas colônias, durante seu processo de industrialização a partir do século 19. 

A tese mais recente também é frágil. Em 2017, o Conselho de Segurança adotou uma decisão histórica por meio de sua resolução 2.347 ao deliberar que a destruição e tráfico de patrimônios culturais pode ser considerada um crime de guerra. Baseada na Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural de 1972, a resolução abre brechas para questionar a relação entre natureza e cultura.

Entusiastas dessa hipótese possivelmente explorariam a ameaça ao Complexo Ambiental da Amazônia Central, cravado no coração da floresta e reconhecido como patrimônio natural da humanidade pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) em 2003. Fariam uso, por exemplo, do fato de que em janeiro deste ano Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, anunciou que a região será cedida à exploraçãoda iniciativa privada.

Tanto no ecocídio quanto no “genocídio cultural” a humanidade ameaçada estaria para além das fronteiras do estado brasileiro, visto que todos os cidadãos do mundo seriam de algum modo prejudicados.

Por fim, há a responsabilidade de proteger brasileiros de outros brasileiros. Isto é, proteger as populações nativas de um extermínio que estaria sendo negligenciado ou assistido por setores do próprio governo. Esse último ponto é o mais afastado da ecologia, porém é o mais provável de colar multilateralmente. 

Com o governo Bolsonaro, denúncias de graves violações de direitos humanos têm se intensificado. Além do aumento expressivo do número de assassinatos no campo e em terras indígenas, até mesmo a negligência em proteger povos indígenas contra o avanço da covid-19 tem sido apontada como uma estratégia do governo para eliminar povos nativos e enfraquecer a resistência à destruição ambiental.

Caso o Conselho de Direitos Humanos da ONU reconheça as evidências da ocorrência de um genocídio indígena, o Conselho de Segurança poderia agir.

A responsabilidade de proteger não pressupõe o uso da força, mas ter seu nome vinculado a esse debate seria uma mancha permanente na imagem internacional do Brasil. Embora a destruição da Amazônia não seja a única causa das mudanças climáticas, nem os crimes de atrocidade sejam consensuais, a discussão certamente crescerá nos próximos anos. O movimento será favorecido pelo atual isolamento diplomático brasileiro.

Gustavo Macedo é doutor em ciência política pela USP (Universidade de São Paulo). Foi pesquisador junto ao Departamento de Prevenção de Genocídios e Responsabilidade de Proteger da Organização das Nações Unidas entre 2017 e 2018. Autor do relatório “Making Atrocity Prevention Effective”.

O porão no poder - Gustavo Bezerra

 O PORÃO NO PODER

Gustavo Bezerra, 01/03/2021

Em 5 de outubro de 1988, o deputado Ulysses Guimarães, segurando um exemplar da recém-aprovada Constituição Federal, proclamou, em um famoso discurso perante seus pares na Câmara dos Deputados: "Temos ódio e nojo da ditadura. A sociedade é Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram".
Ulysses estava se referindo ao ex-deputado Rubens Beirodt Paiva, torturado até a morte em 1971 pelos esbirros da repressão a serviço da ditadura militar. O corpo dele jamais foi encontrado. Os carrascos do DOI-CODI que o assassinaram trataram de destruir a prova do crime, transformando-o num "desaparecido politico".
A data do discurso de Ulysses marcou o fim, de direito, do regime militar iniciado em 1964. Desde então, oficialmente, o Brasil é uma democracia, com uma Constituição democrática.
Trinta anos depois, esse regime, a Democracia, que está longe de ser um fato da natureza, está enfrentando sua maior ameaça. E vinda de quem exerce os mais altos cargos do país. Os facínoras de que falou Ulysses chegaram ao governo. O porão está no poder.
Muito se discute sobre a relação do atual PR com os militares. Boçalnato, como se sabe, não esconde sua devoção ao regime de 64, à mesma ditadura odiosa e nojenta repudiada por Ulysses em seu discurso histórico. Isso já seria o suficiente para desqualifica-lo como o contrário de um democrata. Mas acontece que a ameaça bolsonarista ao regime democrático é ainda mais perniciosa, pois está baseada naquilo que o regime dos generais tinha de pior, de mais repulsivo e execrável: não é exatamente os supostos dotes de estadista dos generais-presidentes, mas o que acontecia nos porões da repressão política - no DOPS, na OBAN, no DOI-CODI, no esquadrão da morte -, o que ele louva e reivindica. É a tortura. É o.assassinato de presos políticos. É Ustra. É o delegado Fleury. É o Riocentro. 
São esses personagens - a escória moral da ditadura, aliás da humanidade .-, mais do que Médici ou Costa e Silva, os heróis e ídolos do atual PR. A "tigrada,", como os definiu o ex-ministro (de Costa e Silva, Médici e Figueiredo) Delfim Netto. O, digamos assim, baixo clero da ditadura. Os agentes da repressão. Aqueles que faziam o serviço sujo. Os que acionavam a máquina de choques elétricos. Que quebravam ossos. Que dependuravam no pau de arara. Que torturavam até a morte. E que, depois que matavam, sumiam com os corpos. Gente que atacava teatro, e que jogava bomba em banca de revista. Em nome do regime do AI-5, tão defendido por Boçalnato e seus filhos.
Não é somente Boçalnato e sua prole, claro. Os militares que o sustentam também pensam da mesma forma. Basta lembrar do episódio do deputado bolsonarista que tomou uma merecida cana do STF por ter pregado contra a Democracia. O deputado em si é irrelevante, ele não é ninguém (um parlamentar invocando a imunidade parlamentar e a liberdade de expressão para defender o AI-5, que acabou com a imunidade parlamentar e a liberdade de expressão, é roteiro de comédia besteirol); o fato é grave porque o que o motivou foi a reação de um ministro do STF a um tuite do ex-comandante das Forças Armadas, o general Villas-Boas, claramente ameaçando o STF caso o resultado de um julgamento não fosse o esperado por Villas-Boas. Um claro flerte com o autoritarismo. Outro general das hostes governistas, Augusto Heleno, chefe do GSI, já foi flagrado praguejando em público contra o Congresso. Augusto Heleno, aliás, que foi assessor do chefe da linha-dura militar, o então ministro do Exercito, general Sylvio Frota, quando de sua demissão por Ernesto Geisel em 1977, por se opor ao processo de abertura política iniciada por Geisel (mesmo Geisel que chamou Boçalnato, então deputado, de "mau militar"). E há o vice Mourão, que muitos consideram "moderado" (até Atila, o Huno, parece "moderado" perto de Boçalnato), o qual vira e mexe solta um elogio a Ustra, um "bom instrutor". Ustra, o torturador que o atual PR considera um herói. Liguem os pontos. 
É esse setor - militares saudosos da repressão -, o principal esteio do desgoverno Boçalnato. É o ódio à Democracia, juntamente com o lavajatismo (a corrupção da Lava-Jato), o liberalismo de fachada (encarnado pelo vendedor de redes Paulo Guedes), a truculência parapolicial e miliciana e o moralismo de galinheiro (a "guerra cultural" dos fanáticos religiosos, gurus de internet e evangélicos dinheiristas), o que move os que fizeram campanha para essa figura grotesca e caricatural, elevando-o desgraçadamente ao cargo máximo da nação. A internet, com sua vocação para a.boçalidade, fez o resto. Sem falar nos oportunistas de sempre. Houve quem acreditasse que seria um governo liberal, honesto, de perfil técnico, sem viés ideológico - e democrata (!). Pois é.
Villas-Boas, Heleno, Mourão e mesmo Boçalnato (este mais pela idade, e não por falta de vontade) não foram torturadores, mas se identificam com quem o foi. E, no caso do PR, têm neles um modelo e uma inspiração. Só isso já bastaria para considerá-lo um inimigo da Democracia e da Civilização. Mas tem mais. 
Boçalnato se elegeu com um discurso - infelizmente, popular, ou melhor dizendo: populista -, anti-política, contra o "sistema". Que sistema? O da Constituição de 1988. O sistema democrático. Seu objetivo não é outro senão destruir a Democracia, e isso não é (ou não deveria ser) segredo pra ninguém. 
Como JB faz isso? Ele já deu algumas pistas. Um dos caminhos é se aproximando de setores subalternos dos militares, participando de eventos como formação de cadetes (sua principal agenda nos últimos meses, além de provocar aglomerações em meio à pandemia) e apoiando projetos que visam a aumentar o poder das PMs, de modo a retirá-las da alçada estadual para a federal. Outro sinal é a obsessão com a liberação de armas - algo que não tem absolutamente nada a ver com segurança pública ou liberdade individual, como creem alguns incautos, mas com o armamento de milícias pró-governo, à moda chavista (fato confessado pelo próprio PR, naquela famosa reunião ministerial no ano passado).
Boçalnato e sua corja conspiram contra a Constituição no que ela tem de melhor- os direitos e garantias individuais -, mas não no que ela tem de pior- o corporativismo, a defesa de privilegios, o excesso de intervencionismo estatal (a intervenção desastrosa na Petrobras é o último exemplo; há outros). Nisso, aliás, eles se aproximam dos petistas (o PT, é bom lembrar, se recusou a assinar a CF-88).
Enfim, é um projeto claramente autoritário, urdido por um ex-milico de passado terrorista, que sempre odiou a Democracia, embora deva tudo a ela. Um projeto autoritário e golpista. "Ah, mas e o Centrão?". O Centrão está com qualquer governo. E a aproximação só se deu pelo medo do impeachment, assim como a aproximação com o STF só se deu por causa do medo da condenação do filhote Zero Um no caso das rachadinhas. Alguém vê algo de republicano nisso? 
Há alguns anos, foi inaugurado um busto de Rubens Paiva num dos anexos da Câmara dos Deputados, em Brasília. Presente ao local, a família dele. No meio da cerimônia, um deputado apareceu causando tumulto. Inclusive, cuspiu no busto do homenageado. O nome do então deputado? Ele mesmo, o atual PR.
O atual governo brasileiro é um governo de facínoras. De inimigos da Democracia. De adoradores da morte. Merece, portanto, todo o asco e repulsa, como discursou o Dr. Ulysses.

Usurpando a condição de "escritor"? Não por minha decisão ou indicação – Paulo Roberto de Almeida

 Tenho reparado que, em diversos anúncios relativos a eventos dos quais tenho participado, sempre a convite de seus promotores, não por autoconvite meu, tenho sido apresentado, entre a condição profissional e a atividade de professor, como "escritor", assim mesmo, sem que eu jamais tenha usado esse substantivo para me descrever.

Ao contrário, tenho feito questão, quando me perguntam sobre como devo ser apresentado, de expressar o seguinte: 

"As fórmulas mais sintéticas são as as melhores: 

PRA, diplomata de carreira, professor universitário. Bastaria isso."

De fato, neste exemplo mais recente, recebi em resposta esta confirmação:

Está ótimo! Colocarei na forma sintética: Cientista Social, Diplomata de carreira, professor do Centro Universitário de Brasília.

E, no entanto, acabou aparecendo isto: 


Se eu tivesse que me aproximar um pouco mais do conceito, eu preferiria que ficasse registrado que eu sou um "escrevinhador", simples assim. 
Com efeito, o escritor é aquele indivíduo dedicado às artes da escrita, o que nunca foi o meu caso. Escrevo o estrito necessário para expressar o meu pensamento, minhas opiniões, sem ligar minimamente para a audiência, para regras de estilo, e até violando algumas boas normas da palavra escrita, da língua elegante, como querem alguns. 
Sempre fui um admirador do Millor Fernandes, que se chamava a si mesmo, por derrisão, de Vão Gogo (em sua condição de desenhista de humor), mas que também se classificava como um " escritor sem estilo". É isso que sou. E também sigo uma outra máxima dele: se alguma palavra não existe, mas você tem necessidade dela, invente-a, use-a, que algum dia ela estará no dicionário. Pimba!
Mas essa coisa de chamar-me de "escritor", o que me deixa um pouco enxabido – como ficava o lobisomem do Coronel e o Lobisomem, de José Cândido de Carvalho –, fez-me lembrar de uma antiga leitura de um texto de George Orwell, que era sim um escritor, e que havia composto uma crônica tentando responder à razão de ser de seu ofício, como relatado abaixo.
Sobre essa pequeno texto dele, acabei escrevendo duas pequenas notas, nas quais expresso minha motivação no ofício da escrita, sem que eu jamais tivesse me colocado como um verdadeiro escritor.
Nem me lembro mais do que escrevi quase sete anos atrás, nem vou buscar agora o que está ali. 
Quem tiver curiosidade, pode clicar num dos links e as notas aparecerão. 
Quem escreve, se expõe a críticas, sendo escritor ou um mero escrevinhador.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 19 de março de 2021

2614. “Por que escrevo? (1)”, Hartford, 6 Junho 2014, 6 p. Ensaio inspirado no artigo de título similar “Why I write”, de George Orwell, in: A Collection of Essays (New York: Harbrace Paperbound Library, 1953; p. 309-316). Divulgado no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/06/por-que-escrevo-1-paulo-roberto-de.html). Reproduzido novamente no Diplomatizzando em 2/01/2016 (link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/01/por-que-escrevo-1-retomando-minhas.html).

2615. “Por que escrevo? (2)”, Hartford, 7 Junho 2014, 7 p. Ensaio inspirado no artigo de título similar “Why I write”, de George Orwell, in: A Collection of Essays (New York: Harbrace Paperbound Library, 1953; p. 309-316). Divulgado no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/06/por-que-escrevo-2-paulo-roberto-de.html). Reproduzido novamente no Diplomatizzando em 2/01/2016 (link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/01/por-que-escrevo-2-detalhando-as-razoes.html).


Rupturas na diplomacia e desenvolvimento interrompido do Brasil: Renato de Oliveira entrevista Paulo Roberto de Almeida

 Rupturas na diplomacia e desenvolvimento interrompido do Brasil


De onde surgiu um Ernesto Araújo, o chanceler que diz se orgulhar do fato de o Brasil ter se tornado um pária internacional? O que ele representa numa instituição como o Itamaraty? Qual o preço que pagaremos pelo isolamento internacional num momento de retomada do protagonismo dos Estados nacionais em decorrência da pandemia e de mudanças estruturais na economia mundial? Estamos condenados a permanecer na periferia do sistema mundial?
Estas e outras questões serão abordadas pelo Embaixador Paulo Roberto de Almeida em nossa conversa no próximo dia 25 aqui no Facebook.
Paulo Roberto de Almeida é diplomata de carreira desde 1977, sendo um dos mais brilhantes diplomatas da sua geração. Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas e Mestre em Planejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia, foi professor no Instituto Rio Branco e na Universidade de Brasília, além de diretor do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais e do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais da Fundação Alexandre de Gusmão. Atualmente professor de Economia Política no Centro Universitário de Brasília, publicou diversas obras nas áreas de relações econômicas internacionais, política externa do Brasil e história diplomática.
Paulo Roberto de Almeida será nosso entrevistado em nossa próxima live aqui no Facebook, no próximo dia 25 às 17h.


PRA: Postarei uma nota que fiz a respeito das grandes questões pertinentes aos temas em debate.

quinta-feira, 18 de março de 2021

Quem disse que a economia do antigo Egito era primitiva? Era uma das grandes economias do mundo antigo - Stacy Schiff (book on Cleopatra)

 Cleopatra: A Life by Stacy Schiff. 

The economy of Egypt during Cleopatra's reign was robust and efficient. This made Cleopatra fabulously wealthy -- even by today's standards -- and one of the wealthiest monarchs in the world. She was wealthier than Caesar, but had no standing army, and was thus both coveted by and vulnerable to Rome:

"The Ptolemaic system [the Ptolemies were Cleopatra's dynastic family and the Greek rulers of Egypt, after its conquest by one of Alexander the Great's generals] has been compared to that of Soviet Russia; it stands among the most closely controlled economies in history. No matter who farmed it -- Egyptian peasant, Greek settler, temple priest -- most land was royal land. As such, Cleopatra's functionaries determined and monitored its use. Only with government permission could you fell a tree, breed pigs, turn your barley field into an olive garden. All was scrupulously designed for the sake of the record-keeping, profit-surveying bureaucrat rather than for the convenience of the cultivator or the benefit of the crop. You faced prosecution (as did one overly enterprising woman) if you planted palms without permission. The beekeeper could not move his hives from one administrative district to another, as doing so confused the authorities. No one left his village during the agricultural season. Neither did his farm animals.

"All land was surveyed, all livestock inventoried, the latter at the height of the flood season, when it could not be hidden. Looms were checked to make sure that none was idle and thread counts correct. It was illegal for a private individual to own an oil press or anything resembling one. Officials spent a great deal of time shutting down clandestine operations. (Temples alone were exempt from this rule for two months of every year, at the end of which they, too, were shut down.) The brewer operated only with a license and received his barley -- from which he pledged to make beer -- from the state. Once he had sold his goods he submitted his profits to the crown, which deducted the costs of raw materials and rents from his income. Cleopatra was thereby assured both of a market for her barley and of profits on the brewer's sales. Her officials audited all revenues carefully, to verify that the mulberries and willows and acacia were planted at the proper time, to survey the maintenance of every canal. In the process, they were especially and frequently exhorted to disseminate throughout Egypt the reassuring message that 'nobody is allowed to do what he wishes, but that everything is arranged for the best.'

"Unparalleled in its sophistication, the system was hugely effective and, for Cleopatra, hugely lucrative. The greatest of Egypt's industries -- wheat, glass, papyrus, linen, oils, and unguents -- essentially constituted royal monopolies. On those commodities Cleopatra profited doubly. The sale of oil to the crown was taxed at nearly 50 percent. Cleopatra then resold the oil at a profit, in some cases as great as 300 percent. Cleopatra's subjects paid a salt tax, a dike tax, a pasture tax; generally if an item could be named, it was taxed. Owners of baths, which were private concerns, owed the state a third of their revenue. Professional fishermen surrendered 25 percent of their catch, vintners 16 percent of their tonnage. Cleopatra operated several wool and textile factories of her own, with a staff of slave girls. She must have seemed divine in her omniscience. A Ptolemy 'knew each day what each of his subjects was worth and what most of them were doing.'

"How wealthy was she? Into her coffers went approximately half of what Egypt produced. Her annual cash revenue was probably between 12,000 and 15,000 silver talents. That was an astronomical sum of money for any sovereign, in the words of one modern historian 'the equivalent of all of the hedge fund managers of yesteryear rolled into one.' (Inflation was an issue throughout the century, but it affected Cleopatra's silver less than her bronze currency.) The most lavish of lavish burials cost 1 talent, the prize a king tossed out at a palace drinking contest. A half-talent was a crushing fine to an Egyptian villager. A priest in Cleopatra's day -- his post was a coveted one -- made 15 talents yearly. That was a princely sum ... Pirates set a staggering 20-talent ransom on the head of the young Julius Caesar, who, being Caesar, protested that he was worth at least 50. Given a choice between a 50-talent fine and prison, you opted for jail. You could build two impressive monuments for a much-loved mistress for 200 talents. Cleopatra's costs were high ... But by the most stringent of definitions -- that of Rome's wealthiest citizen -- she was fabulously well-off. Crassus claimed that no one was truly rich if he could not afford to maintain an army.*

"*On one contemporary list Cleopatra appears as the twenty-second richest person in history, well behind John D. Rockefeller and Tsar Nicholas II, but ahead of Napoleon and J. P. Morgan. She is assigned a net worth of $95.8 billion, or more than three Queen Elizabeth IIs. It is of course impossible to accurately convert currencies across eras."

Cleopatra: A Life
 
author: Stacy Schiff 
title: Cleopatra: A Life 
publisher: Back Bay Books 
date: Copyright 2010 by Stacy Schiff 
page(s): 91, 92, & 97