Paulo Roberto de Almeida
A pergunta do título
poderia, hipoteticamente, sugerir aos leitores deste texto que eu estaria me
considerando um escritor, o que não é absolutamente verdade, nem pela suposição
implícita, nem, muito menos, pela condição efetiva. Escritor é aquele que faz
do ofício da escrita sua atividade principal e que, portanto, vive disso (a
menos que seja um milionário despreocupado, ou um proustiano que vive de ar e madeleines). Eu não ganho minha vida
escrevendo, muito pelo contrário: até devo perder algum dinheiro (às vezes
muito, pela compra de livros), e provavelmente também porque meus textos publicados
não constituem exatamente ativos em minha vida profissional (eles podem até ter
contribuído para alguns dissabores ao longo da carreira, pelo fato de não
aderir às doutrinas oficiais, e possivelmente também na vida acadêmica, onde o
desfilar de vaidades é uma constante e as lutas tribais inevitáveis).
Então, retomando a
pergunta do título, por que escrevo? Poderia dizer, muito diretamente, assim:
por necessidade interior. Ou então, simplesmente, porque me dá prazer. Com
efeito, faço da escrita uma segunda natureza (talvez a primeira, junto com a
leitura, e não imagino nenhuma outra tão absorvente quanto essas duas; sim tem
outras, mas não é o caso aqui de entrar em detalhes). Mas confesso que estou
escrevendo este pequeno ensaio por sugestão indireta, em todo caso póstuma, de
uma terceira pessoa, ela sim um escritor consumado, deliberado, definitivo, um
dos meus preferidos, desde muitos anos, desde quando, ainda na adolescência, li
Animal Farm (A Revolução dos Bichos).
Sim, Eric Blair, aliás mais conhecido pelo seu nom de plume, George Orwell.
Acabo de receber um
livrinho usado, que comprei por pouco mais de quatro dólares (frete incluído)
da Thriftbooks (via Abebooks), chamado simplesmente de A Collection of Essays (Harbrace, copyright de 1946 pelo próprio
George Orwell e, em vários outros anos, por Sonia Brownell Orwell). A despeito
de conter ensaios altamente convidativos – vários dos quais eu já conhecia por
outras edições de suas obras – como, por exemplo Shooting an Elephant, Politics and the English Language, Looking Back
on the Spanish Civil War – fui direto ao último texto, de 1946, que exibe
exatamente o título deste meu pequeno ensaio: Why I write (sem ponto de interrogação). Devo um pequeno copyright
ao estate de George Orwell, portanto,
ou se não para pagar seus legal rights, pelo menos registro aqui seu moral
right quanto ao título e a inspiração.
Volto à questão da escrita
por necessidade, pois ela é real e verdadeira, se me permitem a redundância. E
isso não tem nada a ver com as características de escritor de George Orwell, que
informa, nesse seu ensaio, que já sabia que queria ser escritor na tenra idade
de cinco ou seis anos, quando recitou um poema para que sua mãe escrevesse,
provavelmente inspirado – ou plagiado, como ele escreve – num poema de Blake,
“Tiger, Tiger”. Em todo caso, já aos onze anos, quando começou a Grande Guerra,
ele escreveu um poema patriótico publicado num jornal local. Ele começou assim,
escrevendo vers d’occasion,
ascendendo numa carreira que enveredou pelo jornalismo, pelo ensaísmo e que chegou
até o famoso romance distópico que ainda hoje é referência, tanto na literatura
dessa área, quanto para o pensamento político dirigido para a condição humana e
a organização das sociedades, naquele tom pessimista que sabemos lhe ter sido precocemente
inspirado pelo conhecimento direto do stalinismo, primeiro na Espanha, depois
ao tomar conhecimento dos processos de Moscou.
No meu caso, não foi nada
disso, nem versos de ocasião, nem experiência traumática em alguma guerra,
embora possa reconhecer que o golpe militar de 1964 me despertou também
precocemente para a política e para o estudo sistemáticos dos problemas sociais
e econômicos do Brasil. Mas, a essa altura, eu já era um escritor não
confirmado, mas provavelmente improvisado, mas já totalmente dedicado às artes
altamente suspeitas da leitura obsessiva e da escrita compulsiva, talvez um
pouco como Orwell. Não que eu pretenda me igualar ao grande escritor, longe
disso, mas é que, como no seu caso – e suspeito que isso eu possa compartilhar
com ele – eu nunca escrevi nada, absolutamente nada, que não tivesse vontade de
escrever, e nunca escrevi qualquer coisa que violasse minha própria consciência
quanto ao conteúdo mesmo que estava sendo transposto para o papel, mais tarde
para as telas de computador. Jamais. Como Orwell, possivelmente, só escrevi
aquilo que motivava minha vontade, que atiçava meu cérebro, que correspondia a
algum impulso interior, e que brotava naturalmente da pluma, ou do teclado,
segundo alguma reflexão própria, jamais ditada por alguma força externa.
Obviamente, ao longo da
carreira profissional fui levado a escrever textos para terceiros, geralmente
chefes na hierarquia vaticana do Itamaraty, mas não me lembro de jamais ter
recorrido ao diplomatês insosso, no estilo bullshit
habitual nesse meio, àquela langue-de-bois
(ou chapa branca) que sempre me horrorizou sobremaneira. Sempre escrevi o que
queria, e se algum chefe, ou gabinete, quisesse mudar depois, isso não mais me
interessava. Nenhum desses escritos entrou na minha lista de trabalhos (só um
ou outro cuja estrutura, conteúdo e forma foram preservados, mas de toda forma
apenas para fins de registro, não como trabalhos que eu pudesse considerar como
sendo meus).
À diferença de Orwell,
comecei a escrever tarde, mas talvez não muito mais tarde do que ele mesmo. As
primeiras lembranças da fase de aprendizagem da leitura e da escrita, me remetem
ao livro de alfabetização – estilo “Ivo viu a uva” – e ao caderno de
caligrafia, com suas três linhas, a superior reservada às maiúsculas iniciais e
aos nomes próprios, mas que jamais poderia ser ultrapassada. As ferramentas
eram o lápis, o apontador, a borracha e a caneta de pluma de ferro, com o
tinteiro de marca americana, creio que Parker, que também era o nome de uma
famosa caneta tinteiro que nunca cheguei a possuir. Mais adiante, talvez no
terceiro ano do primário, já se trocou a caneta de pluma de ferro – também
cheguei a experimentar pluma de ganso, apontada – por uma caneta tinteiro,
dessas de bomba de borracha, que costumam fazer a maior sujeira, se manejadas
sem cuidado (quantos cadernos e livros estragados com uma ou outra vazão
exagerada de tinta...).
Depois do bê-á-bá, os
primeiros escritos foram apenas as respostas às perguntas da professora, copiadas
da lousa, a mesma para os quatro anos do primário, e que dava todas as aulas das
quatro ou cinco disciplinas obrigatórias (e aplicava os corretivos, quando
fosse necessário). Havia também os corretivos em casa, quando o boletim ou o
caderno vinha com notas vergonhosas, o que era raro, mas em todo caso servia
para incutir um alto senso de responsabilidade nos deveres escolares de todo
mundo (algo que aparentemente parece ter sido perdido atualmente, ainda mais
com a tal de “lei da palmada”). Os casos mais graves de comportamento eram
resolvidos no chinelo ou na cinta, mas jamais para deveres escolares, inclusive
porque a escola era disciplinadora.
Mas eu me perco no roteiro
deste ensaio: por que escrevo? Bem, comecei com trabalhos escolares, mas jamais
respondendo apenas o estritamente necessário, de forma lacônica: sempre
passeando pelo Egito antigo, pela Grécia clássica, pela Roma dos tribunos e dos
imperadores aloprados, inclusive porque era isso o que eu aprendia nos livros,
nas versões infantis das histórias de Monteiro Lobato, dos clássicos de Swift,
Cervantes, Hans Staden, Defoe, nos romances de Karl May, Emilio Salgari e
muitos outros. O gosto pela história veio muito cedo, na adaptação feita por
Lobato da História do Mundo para as
Crianças, cujo autor me escapa completamente agora.
Tudo isso eu tinha à minha
disposição na fabulosa Biblioteca Infantil Municipal Anne Frank, no bairro do
Itaim-Bibi, que eu frequentava antes mesmo de aprender a ler, o que só fiz na
tardia idade de sete anos. No ano seguinte, já me debrucei sobre coisas mais
“complicadas”. Cheguei a decorar os nomes de faraós de várias dinastias
egípcias, e sabia perfeitamente distinguir quem foram e o que fizeram os gregos
mais famosos, filósofos, dirigentes políticos ou líderes militares. Não sei se
foi isso que me levou à incontinência da pena, provavelmente não: esse foi
apenas o caminho para a loucura gentil da leitura obsessiva, embora a escrita
caminhasse junto, pois era dessa forma que eu realmente absorvia cada livro
lido, pelos resumos efetuados a cada vez, e que infelizmente se perderam na
passagem da infância para a adolescência.
Chegada essa fase, minhas
preocupações eram outras, não mais puramente históricas, e muito menos
literárias, o que nunca foi o meu forte, até hoje (o que, aliás, explica
inúmeros defeitos de escrita, inclusive porque nunca cuidei da forma, muito
menos da gramática ou do estilo). Elas se tornaram sociais e políticas,
sobretudo porque eu procurava entender porque eu e minha família éramos tão
pobres, tão desprovidos de coisas básicas (telefone, televisão, carro, ou
livros, em casa), em face de tantos colegas da escola, de roupas vistosas e
hábitos “burgueses” (sim, aprendi muito cedo o significado desse conceito
essencialmente marxista).
A percepção, real, cruel,
dolorosa, da pobreza, da desigualdade social, da carência de meios me impactou
desde cedo, e isso porque desde muito cedo fui levado a trabalhar para
suplementar o magérrimo orçamento familiar: meu pai era motorista, minha mãe
lavava roupas para fora, ambos com primário incompleto, e meu destino, desde o
primário, e provavelmente mesmo antes, foi suprir a falta de dinheiro com todos
os expedientes aceitáveis então podendo ser desempenhados por um garoto pobre:
recolhimento de sucata metálica nos fundos de uma fábrica, pegador de bolas de
tênis no clube da vizinhança e empacotador não registrado de supermercado,
ganhando apenas gorjetas, portanto. Mais adiante fui ser “office-boy”, que era
como se chamavam os contínuos antigamente. Fiz um pouco de tudo, inclusive e
principalmente refletir sobre a miséria material da nossa existência.
Daí que, salvo alguns
pequenos textos de juventude, para os jornais escolares, meus primeiros
escritos tenham sido precocemente impregnados de revolta, logo impulsionada
pela leitura de obras como Germinal,
de Émile Zola e outros livros dessa mesma feitura. Da revolta instintiva para a
“consciência social” foi um passo muito curto, que devo ter ultrapassado antes
mesmo do golpe militar de 1964, aos 14 anos, portanto. Antes disso eu já vinha
me politizando, com a leitura de jornais, de Seleções (versão brasileira do Reader’s
Digest), e de quaisquer outros materiais que viessem às mãos. Depois do
Quarto Centenário da cidade de São Paulo, em 1954, e da Copa do Mundo de 1958,
na Suécia, o que provavelmente mais marcou minha infância foi a campanha
vitoriosa de Jânio Quadros, em 1960, sua renúncia, a seis meses do exercício do
cargo (quando minha mãe foi me buscar na escola, talvez temendo uma guerra
civil, ou pelo menos distúrbios nas ruas, como quando do suicídio de Getúlio),
e a crise dos mísseis soviéticos em Cuba, no ano seguinte. Foram episódios
momentosos na vida do país e do mundo, que me levaram às páginas dos jornais,
quando eu então passei a usar do meu pouco dinheiro para comprar o grosso
Estadão de domingo, onde se podia aprender de tudo, naquela linguagem
complicada para um garoto de doze anos.
Nessa altura eu já estava
fazendo resenhas de livros para jornais escolares, e produzindo alguns textos
“góticos” sobre o Brasil e o mundo, que se perderam todos, com uma ou outra
exceção. No ginásio (Vocacional Oswaldo Aranha, entre 1962 e 1965) eu colaborar
com “A Pequena Nação”, que tinha como dístico a seguinte frase, altamente pretensiosa:
“um jornal que diz bem porque pensa no que diz” (sic). Sobraram como
colaborações minhas um elogio pela vitoriosa conquista num torneio feminino de
handball, e um poema chamado A Jangada,
provavelmente inspirado nas leituras obrigatórias que tínhamos de fazer (nesse
caso, José de Alencar, talvez). Mas o golpe militar, logo em seguida, me levou
diretamente às leituras políticas, aos escritos na linha do marxismo e ao meu
engajamento na “luta contra a ditadura”. A partir daí nunca mais deixei de
escrever, compulsivamente, intensamente, aliás muita coisa sob algum nom-de-plume, que no caso era mais
exatamente um nom-de-guerre. Mas esta
já é outra história que pretendo contar um outro dia...
Termino respondendo à
pergunta inicial: escrevo por necessidade. Em primeiro lugar para tentar
explicar a mim mesmo as razões da desigualdade, e do nosso estatuto social
inferior, e para os outros tentando convencê-lo de que é preciso mudar o país e
mudar o mundo, para torná-lo mais justo para aqueles, como eu, que vieram de
uma condição inferior e queriam ter acesso às bondades da sociedade de consumo.
Quando comecei, a intenção era mais bem a destruir a sociedade capitalista e o
mundo burguês, como ocorria com muitos jovens em minha época, e provavelmente
de condição social bem superior: líamos Marx e Engels, obviamente, mas também
Lênin, Marcuse, e toda a literatura especializada nos problemas sociais
brasileiros, inclusive clássicos da teoria social, da história e do
desenvolvimento econômico que só seriam recomendados vários anos mais tarde, já
na Faculdade.
Depois de muitas
aventuras, viagens, leituras e um itinerário de aprendizados constantes eu
aprendi que era preciso transformar o mundo, não necessariamente no sentido
pretendido na juventude, mas de uma forma mais racional, mais ponderada, menos
radical, e certamente mais democrática e tolerante em relação às diversas
orientações doutrinárias, políticas e econômicas. Mas, tudo isso foi sendo absorvido
ao longo da vida, aos poucos, como acontece com todo mundo aliás.
O que nunca deixei de
fazer, sempre, foi ler e escrever, escrever e ler, e pensar, naturalmente. Ainda
tenho cadernos e mais cadernos de notas de leituras e de trabalhos
esquematizados. Continuo fazendo isso, agora guardando em pastas no computador.
Por que eu escrevo? Por
isso mesmo, por absoluta necessidade. Não creio que venha a mudar significativamente
esse meu estilo de vida daqui para a frente, mas seria bom um pouco mais de
organização: tenho dezenas de trabalhos e muitos livros para terminar. Paro por
aqui, pois tenho outras coisas para escrever, no meu caos habitual...
Hartford, 6 de Junho de 2014
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