Tenho dúvidas sobre se a Petrobras foi realmente indenizada, ou apenas paga em gas importado da Bolívia. Ainda que tenha sido, os valores ficaram bem abaixo do que ela efetivamente investiu.
Paulo Roberto de Almeida
Por que mirar a Bolívia, heterodoxa na ortodoxia
Sergio Leo
Valor Econômico, 8/09/2014
Índices de aprovação beirando os 80% e liderança absoluta nas pesquisas eleitorais acompanham o presidente boliviano, Evo Morales, em sua disputa para um terceiro mandato, nas eleições presidenciais de outubro. O bolivariano que ofendeu os mercados e patrocinou uma Constituição de inéditos poderes à população indígena beneficia-se do crescimento econômico, um dos maiores da região.
Em 2006, quem (como este colunista) estivesse em La Paz, à espera das comemorações do 1 º de Maio na Bolívia, notaria o insistente noticiário sobre a iminente decepção dos bolivianos com o primeiro - e pequeno - aumento do salário mínimo a ser anunciado pelo estreante Evo Morales. À tarde, fora da capital, o que Evo anunciou foi a nacionalização das reservas de gás e de refinarias da Petrobras, que cercou com tropas militares.
O ato gerou uma crise política com o Brasil presidido pelo aliado Lula, depois amenizada, inclusive com pagamento de indenizações devidas à Petrobras. Mas a política econômica que se seguiu afastou investidores e a própria Petrobras. Pouco se falou, porém, da política fortemente baseada na ortodoxia fiscal, adotada desde então pelo ex-cocalero, que conteve arroubos sobre o salário mínimo e outras contas públicas, e garantiu o relativo êxito econômico do país.
"Já há vários anos, o desempenho macroeconômico da Bolívia tem sido muito bom", elogiou a economista do FMI Ana Corbacho, chefe da missão que, em fevereiro, analisou as contas bolivianas. "Esse desempenho foi ativamente apoiado por políticas públicas que ajudaram a aumentar em quase três vezes a renda média da população, melhorar a distribuição de renda e provocar grande redução de pobreza", acrescentou, ao relatar as discussões com as autoridades do país. "E, além disso, tudo aconteceu num período muito curto".
Em 2013, Evo conseguiu um recorde histórico de crescimento, 6,8%, acumulou reservas recordes em moeda internacional, equivalentes a quase metade do Produto Interno Bruto, e manteve superávits, tanto nas contas do governo (1,4% do PIB), quanto nas estatais (0,5%). Estatais, aliás, trazidas ao controle do Estado após um agressivo programa de nacionalização, que afetou os setores de gás e petróleo, telecomunicações, transportes e mineração.
Evo não baixou suas ironias contra o FMI nem após os elogios; e foi bem-sucedido também na política: após uma sucessão de crises, ameaças de separatismo na rica região agrícola conhecida como "meia-lua", na fronteira com o Brasil, ele cooptou, ou afastou do caminho (às vezes com métodos violentos), empresários e líderes oposicionistas, enfraquecendo as ameaças à sua gestão. A terceira reeleição presidencial é uma inédita estabilidade num país que, entre 2001 e 2005, foi governado por seis diferentes presidentes.
Morales era um presidente fraco, de pequeno apoio político em uma Bolívia dividida, em 2006. Desde então, o país cresceu, em média, 4,5% ao ano. Aplicou, sob aprovação de instituições como o Banco Mundial, seu programa de redistribuição da renda e preparou-se bem, segundo o FMI, para enfrentar turbulências como a queda do preço do gás e a desaceleração econômica de seus principais clientes, Brasil e Argentina.
Evo conseguiu, também, um nível razoável de investimento externo, 3,5% do PIB no ano passado, mas muito concentrado nos fornecedores para o setor de gás e petróleo. O gás responde por mais da metade da receita governamental, em um país onde os impostos diretos são quase zero. O governo só agora construiu uma usina para separar, do gás fornecido ao Brasil, gases de uso mais nobre, destinados à petroquímica.
A Bolívia não foi tão bem em reduzir a gás-dependência e avançar além do modelo exportador de commodities. Também é preocupante a retração dos investimentos, inclusive da Petrobras, na exploração e ampliação das reservas de hidrocarbonetos. Desde a nacionalização, os governos Lula e Dilma reduziram quase à metade a dependência do Brasil em relação ao gás boliviano, ao criar infraestrutura para liquefazer e distribuir gás de outros fornecedores.
O afastamento brasileiro não foi completo: neste ano, a Petrobras, descumprindo recomendações de seu departamento jurídico, concordou, após muita resistência do governo Dilma e pressões crescentes de La Paz, em pagar um adicional a Evo pelos gases "ricos" de alta qualidade contidos no gás fornecido ao Brasil nos últimos anos. O Senado cobra explicação da estatal pelo pagamento de US$ 434 milhões.
O governo Evo é acusado de manipular e reprimir o Judiciário para mover ações judiciais contra oposicionistas -150 bolivianos estão refugiados no Brasil fugindo de processos e perseguição - e pode perder sua confortável maioria parlamentar nas próximas eleições, turvando sua capacidade de governar e trazendo riscos de repressão violenta dos oposicionistas.
Na economia, há expectativa de que o terceiro mandato de Evo seja acompanhado de reformas mais amistosas ao setor privado e investidores. A falta de investimentos em ampliação de reservas pode deixar a Bolívia sem gás para todo o consumo e os compromissos de exportação já em 2017, segundo o ex-ministro de Minas e Energia boliviano Álvaro Ríos Roca, que prevê necessidade de investimentos imediatos de pelo menos US$ 5 bilhões no setor.
Em cenário de queda de preços, com concorrência do gás extraído de rochas, Evo vê aproximar-se o fim do atual contrato de fornecimento ao Brasil, em 2019, e deve pressionar para uma renegociação em breve, decidido a não aceitar uma redução nos preços atuais. Na Bolívia, cresce o sentimento nacionalista e antibrasileiro (por motivos diversos, entre eles a riqueza dos empresários de origem brasileira na 'media luna' e as manifestações preconceituosas no Brasil contra bolivianos).
Será grande a tentação de qualquer governante lá, de responder a uma eventual piora na situação econômica desviando atenções para uma briga com o Brasil. A vencedora (ou vencedor) das eleições brasileiras de outubro deve incluir a Bolívia entre os temas desafiadores a estudar durante o seu mandato.
Sergio Leo é jornalista e especialista em relações internacionais pela
UnB. É autor do livro "Ascensão e Queda do Império X", lançado em 2014.
Escreve às segundas-feiras
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