Um texto meu, que tinha desaparecido misteriosamente de meu computador -- sabe-se lá por quais artimanhas de pessoas desconhecidas -- e que reencontrei, com uma mensagem de que o texto era didático, e por isso vai postado aqui.
São respostas que fiz a perguntas de um leitor deste blog, provavelmente estudante, e que acho que podem servir a professores igualmente.
Paulo Roberto de Almeida
Keynesianismo e liberalismo nas
políticas públicas
Paulo Roberto de Almeida
Um leitor constante,
fiel, atento e comentador, reincidente neste blog, me coloca a seguinte
questão, que prefiro responder por inteiro:
EMB compartilhou a
postagem de seu blog no Google+:
Seria correto
afirmar que o governo Fernando Henrique aliou aspectos de ortodoxia em política
econômica com keynesianismo em matérias sociais e até comerciais?
Respondo (PRA):
Respondo de imediato:
sim e não. Por que a contradição? Porque governos, em geral, não fazem NENHUMA
distinção entre teorias ou escolas econômicas, pela simples razão de que estão
por demais ocupados com problemas reais, concretos, tangíveis, urgentes,
preocupantes, talvez até dramáticos – que são, quase sempre, os de
desequilíbrios nas contas domésticas e externas, nas insuficiências
orçamentárias, nas demandas da sociedade e do parlamento por mais e mais
recursos públicos (que são os da coletividade), por ameaças de perdas de
receitas, choques externos, e uma infinidade de outros problemas reais – para
inquietar-se, além da conta, com meras teorias acadêmicas e escolas de
pensamento econômico, que não representam nada, repito NADA, em face da agenda
de trabalho que esses governos têm pela frente.
Só acadêmicos, em geral
os puramente teóricos – ou alienados, como se dizia antigamente – preocupam-se
com a suposta racionalidade econômica das políticas públicas da área econômica.
Só jornalistas, mal formados pelos mesmos acadêmicos, se preocupam em
catalogar, classificar, atribuir um rótulo ou slogan, a um governo qualquer,
como se essas denominações representassem qualquer coisa além de uma mania, uma
simplificação, uma distorção da realidade.
Políticos eleitos
exibem, é verdade, alguma compreensão do mundo, e esse entendimento se baseia
naquilo que eles aprenderam nos bancos escolares e universitários, nos
ensinamentos dos familiares, mas sobretudo na experiência da vida, no trato da
coisa pública, e o que vem em primeiro lugar não é a teoria aprendida, mas a
necessidade prática, o problema concreto. Políticos experientes fazem assim:
aprendem algumas coisas nos livros, outras coisas com pessoas mais experientes
ou mais espertas, mas geralmente no curso de um vida levada no desempenho de
funções públicas, nas quais as mais belas teorias acabam sendo jogadas no lixo
em favor de soluções mais práticas, ou de puro expediente emergencial, com os
meios e instrumentos à disposição, sem muita coerência teórica ou racionalidade
instrumental. Resumindo: eles fazem o que dá para fazer, e o resto vão
empurrando com a barriga, até onde for possível. Se der para resolver o
problema com o que sabem e com os meios à disposição, muito bem, assim será
feito. Se não é possível, vão contornando o problema até onde for impossível
evitar as consequências, e aí a solução será aquela que for apresentada por
algum assessor mais esperto, ou pelos “meios de bordo” (que geralmente é empurrar
para a frente, e deixar o problema para o sucessor).
Políticos inexperientes,
ou acadêmicos – ou seja, ideólogos, alienados, lunáticos – chegam ao poder com
belas teorias, e tentando cumprir aquilo que proclamaram – geralmente mentindo
– na campanha eleitoral, e quando sentam na cadeira descobrem que não vai ser
possível atingir aquelas belas metas proclamadas, que é a felicidade para
todos, ao menor custo possível (de hábito, sem custo explícito nenhum). Se esse
político não for muito estúpido, ele logo vai adaptar o seu discurso pós-posse
às condições efetivamente reinantes, ou seja, meios disponíveis e
possibilidades legais. Se ele for, ou continuar, alienado, ou seja, ideólogo,
vai ser um desastre, pois em nenhum lugar do mundo as soluções acadêmicas cabem
num mero orçamento governamental.
O que isso tem a ver com
o nosso debate?
Keynesianismo e
ortodoxia são apenas dois rótulos, que podem não possuir significado algum no
mundo concreto da política, mas que possuem algum significado para acadêmicos e
jornalistas, para economistas teóricos que escrevem para jornais e outros
representantes da mesma fauna. Políticos – pelo menos os verdadeiros – não são
nem keynesianos, nem ortodoxos, eles apenas sobrevivem com o que existe e com o
que é possível fazer. Geralmente eles costumam gastar por conta: quando as
contas não fecham, aí são obrigados a praticar simples medidas de ajuste, que
serão tão mais severas ou duras quanto foi o abuso praticado na fase anterior,
e nisso não vai nenhuma coloração ideológica. Keynesianos de carteirinha podem
ser gastadores responsáveis, e conservadores históricos podem se comportar de
modo totalmente irresponsável, sempre dependendo das circunstâncias e dos meios
disponíveis. Sempre acham que o Ronald Reagan era um conservador que abaixou
impostos para beneficiar os ricos, quando ele o fez para estimular a economia,
na suposição (correta) de que são os ricos que investem, produzem riquezas,
criam empregos e pagam novos (ou velhos) impostos. Sempre se esquece também que
ele foi um dos mais irresponsáveis presidentes no plano orçamentário, uma vez
que na sua obsessão de afastar o perigo soviético conduziu um dos mais
perdulários programas de gastos com defesa – entre eles a Iniciativa de Defesa
Estratégica, ou Guerra nas Estrelas – que representou, pura e simplesmente, um
keynesianismo militar altamente irresponsável, deixando o governo novamente no
vermelho. Por isso Bush pai teve um governo de recessão e Bill Clinton, um
democrata supostamente distributivista, conduziu um dos governos mais
responsáveis no plano fiscal de que se tem notícia desde Truman ou Eisenhower.
Nenhum deles era liberal
teórico, ou acadêmico, todos eles eram homens práticos, e fizeram o que lhes
parecia adequado fazer, com os dados à disposição, e com os assessores que
tinham. Um dos assessores mais liberais de Reagan, David Stockman, se demitiu
da chefia do Orçamento, em vista das loucuras que Reagan anda fazendo com as
contas públicas, e denunciou isso logo em seguida (ver agora seu livro de
história de todo o processo orçamentário e de contas públicas nos EUA, desde a
presidência Roosevelt, chamado The Great Deformation).
Todos eles fizeram o que achavam que deveriam fazer, com base nas condições do
momento.
Da mesma forma, mesmo o
mais acadêmico dos ministros de finanças, ou Secretário do Tesouro, quando
senta na cadeira de decisor, costuma deixar os livros de lado, e perguntar:
“mostre-me o balanço de pagamentos”, ou “mostre-me o orçamento”, ou ainda, “me
diga como estão as receitas?”, “como anda a atividade econômica?”, ou “como
estão os investimentos?”. Ponto. É com base nisso que eles vão tomar as
decisões que se impõem, sem qualquer preocupação em saber se aquilo é
liberalismo, se é keynesianismo, ou o raio que o parta. Fazer o que é possível
fazer, simples assim.
Voltando, agora, ao
governo de FHC – que, na verdade, começa antes, como ministro da Fazenda de
Itamar – o que podemos dizer é o seguinte: num processo de aceleração
inflacionária, como o que vivíamos entre 1990 e 1994, não dá para perguntar o
que o Keynes ou o Hayek fariam. É preciso simplesmente saber o que é possível
fazer nas circunstâncias dadas. Os assessores vêm, obviamente, armados de
alguns rudimentos metodológicos, de algumas teorias econômicas, de algumas
simpatias por esta ou aquela escola de pensamento econômico, ou até repletos de
relatos históricos sobre como a Alemanha, a Hungria, a Bolívia, Israel, ou
outros países, superaram os seus respectivos surtos inflacionários, e podem,
com base nisso, propor soluções aos problemas encontrados. Alguns proporão
congelamento de preços e salários, e só conseguirão recolher mais inflação logo
adiante. Outros pretendem trocar de moeda. Os mais sensatos concluirão que o
mal radica nos elevados gastos governamentais e no emissionismo irresponsável
de moeda, e poderão propor um ajuste com base nessa concepção, o que é sempre
recessivo. Se o presidente concordar, se faz a recessão e se tenta reconstruir
as bases do crescimento mais adiante. Se o presidente não quiser, então é
provável que continuem as pressões fiscais e emissionistas, as loucuras
orçamentárias e a continuidade do caos econômico.
Torrar dinheiro é
keynesiano, como acusam alguns, e fazer ajustes recessivos é uma maldade
conservadora (ou liberal)? Pode ser, mas o fato é que keynesianos ou
conservadores precisam enfrentar os problemas reais, que são sempre
desequilíbrios nos principais fluxos macroeconômicos. Dependendo do papel do
governo na economia, algumas soluções são possíveis, outras não. Governos que
trabalham com bancos centrais autônomos geralmente não conseguem sair por aí
emitindo irresponsavelmente, outros populistas e delirantes podem fazer como
certos distributivistas inconsequentes, de que temos muitos exemplos na América
Latina. Cada caso terá uma resposta, em função da correlação de forças, do jogo
democrático, das crenças (ou falta de) dos líderes políticos e da qualidade dos
gestores econômicos.
Olhando o Brasil dos
últimos 30 anos, o que tivemos? Militares que sonharam demais – planos grandiosos
– e levaram o país para um endividamento excessivo. Líderes da redemocratização
(Sarney, Ulysses) que esticaram demais a corda das bondades governamentais, e
levaram o país para a hiperinflação. Um líder salvacionista (Collor) que
pretendeu salvar o país da inflação e, por ser mal assessorado (Zélia), acabou
provocando um desastre ainda maior, que tentou remediar (Marcílio) depois, mas
já tarde demais, pois a crise política o engolfou. Depois tivemos um presidente
honesto (Itamar), mas inepto em economia, que trocou quatro vezes de ministros
da Fazenda e de presidentes do Banco Central, antes de acertar com um sociólogo
sensato, que convidou uma brilhante equipe de economistas, que acabou
consertando todas as bobagens dos economistas keynesianos que tivemos antes.
Mas Itamar era um homem que não queria recessão, e que portanto impediu o Plano
Real de ir até as suas consequências lógicas, que era acabar com o excesso de
despesas públicas de forma efetiva. O resultado foi que tivemos um ajuste sem
recessão, o que obrigou a manter altas taxas de juros, o que acabou impactando
negativamente em outros setores: deu na crise de 1999, que pela primeira vez
realizou os ajustes necessários e preparou o Brasil para crescer. No meio
aconteceram as crises financeiras, o apagão elétrico e a crise argentina, o que
atrapalhou; logo em seguida a crise das eleições de 2002, mas tudo foi
encaminhado para colocar o Brasil de volta nos trilhos, com Armínio Fraga e
Pedro Malan.
O governo Lula, sem
qualquer teoria – pois ele, pragmaticamente, abandonou as receitas alopradas
dos seus economistas unicampistas – levou o Brasil para uma fase positiva, não
porque ele fosse um gênio, mas por que as condições externas e as reformas
anteriores o permitiram. Mas começou a gastar demais, desde o primeiro mandato,
o que se agravou na reeleição e no segundo mandato, mas ainda assim ele se
beneficiou com a bonança chinesa (soja a 600 dólares a tonelada, por exemplo).
Pronto, foi o suficiente para eleger um poste, como ele mesmo diz, uma pessoa
ainda mais inepta do que o mais inepto dos economistas unicampistas, que
conseguiu fazer tudo errado o tempo todo, e chegamos onde chegamos: inflação,
não crescimento, aumento da dívida doméstica e da dívida externa, déficits
contínuos, desequilíbrios nas contas internas e nas contas externas, apagão
elétrico, baixo investimento, intervencionismo, protecionismo, enfim, um
inferno completo. É preciso ser muito incompetente para construir um desastre
dessa magnitude. Tudo isso é keynesianismo, ou é o quê?
Provavelmente não é
nada, só incompetência mesmo, pura inépcia e teimosia.
Termino por aqui, pois
acho que já respondi fartamente à pergunta colocada.
Mas uma conclusão:
acadêmicos são em geral sonhadores, mas alguns são mais preparados do que
outros. São eles que assessoram os políticos. Quando temos excesso de ruindade
dos dois lados, aí é o desastre. Parece que no governo FHC tivemos uma feliz
combinação de acadêmicos realistas e políticos pragmáticos. Do governo Lula em
diante, incompetentes em todas as esferas – com raríssimas exceções no primeiro
mandato – e ideólogos e mafiosos espalhados por todas as agências públicas. Deu
no que deu. Vai ser difícil consertar agora, pois é preciso trocar os políticos
e os assessores.
Dá para dormir
tranquilo? Acho que não. Sinto muito...
Hartford,
2803: 5 de abril de 2015, 5 p.
========
Addendum em 6/04/2015.
Uma mensagem deixada por um leitor, o que muito me gratifica.
É exatamente para os jovens estudantes que eu escrevo, e tento ser
didático, ou pelo elucidativo.
Paulo Roberto de Almeida
Willians Franco comentou a postagem de seu blog
Nossa! Extremamente didático esse texto, hein? Normalmente leio textos
político-econômicos via leitura dinâmica, mas esse tive que ler pausadamente
para captar todos os detalhes. Parabéns!
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