Explico-me: editores de uma revista acadêmica de uma IEES solicitaram-me um artigo na linha do texto abaixo, ao que eu disse que não poderia fazer por não dispor de tempo. Como entretanto me tivessem dito que a revista poderia aceitar um depoimento como "contribuição especial", eu preparei um depoimento como contribuição especial. Supunha eu que sendo assim, meu depoimento, ou seja, de alguém que vivenciou a coisa em ação, ou seja, o lulopetismo diplomático na prática, seria aceito pelo seu valor face, que é o de um depoimento pessoal, sobre algo que vivenciei.
Mas, como dizem os entendidos, em política vale mais a versão do que o fato.
O artigo foi recusado, o que me aliviou bastante, pois estava começando a achar que aqueles professores gramscianos estavam começando a amolecer com os depoentes muito firmes como eu, tergiversando sobre as gloriosas realizações do lulopetismo diplomático.
Fui comunicado que: "O conselho editorial da revista achou que a contribuição estava muito forte podendo causar algum transtorno para a revista que, a priori, não segue nenhuma linha política.”
Acho inteiramente correto, mas então a revista não pode aceitar depoimentos pessoais, a menos que eles sejam impessoais, claro, e concordem com a opinião dos membros do Conselho Editorial.
Aliás é estranho a postura do CE: se a revista não segue nenhuma linha política, ela deve também exigir que todas as suas colaborações, convidadas ou não, não sigam nenhuma postura política, o que indica, ab initio, uma postura política de censura a posturas políticas.
Gozado não é?
Mas, enfim, fico aliviado ao saber que os gramscianos continuam gramscianos, e gramscianos fracos, pois eles não podem aceitar uma contribuição "forte".
Vou tentar enfraquecer na próxima vez...
Como eu escrevi na postagem original que transcreveu o artigo abaixo:
"Trata-se de uma visão pessoal, impressionista talvez, mas não menos sincera. Uma boa parte dos acadêmicos não vai gostar, o que me dirá que estou exatamente no caminho certo..."
Pois é, eu estava no caminho certo, e os acadêmicos não gostaram.
Meus agradecimentos sinceros a eles: acho que a revista deles se diminuiria com um artigo como o meu...
Ufa! Ainda bem...
Paulo Roberto de Almeida
Aproveito, no entanto, para confirmar inteiramente este meu:
Addendum em 26/06/2016:
Meus
agradecimentos a todos os que já comentaram este meu texto, e a todos
os que se inscreveram para fazê-lo, na plataforma Academia.edu, mas
gostaria de alertar, e de explicar, que este ensaio improvisado
constitui apenas uma pequena parte de um depoimento muito maior, ou de
uma história completa, que ainda tenho que dizer ou escrever, relatando
tudo o que sei sobre os anos "loucos", quando não destrambelhados, do
chamado lulopetismo diplomático, algo que, a rigor, não existe, pois os
companheiros são tão ineptos e ignorantes que jamais poderiam
ter concebido, desenvolvido e implementado algo tão complexo quanto uma
política externa de um grande país como o Brasil, ou administrado uma
diplomacia profissional tão habilidosa como a do Itamaraty, se não
contassem com certas competências internas sobre as quais será preciso
também discorrer. No seu devido tempo...
Paulo Roberto de Almeida
Diplomata de carreira; professor no Centro
Universitário de Brasília (Uniceub);
[Texto provisório, feito com vistas a
complementação documental; não destinado a publicação.]
Razões de um depoimento
pessoal de caráter acadêmico-diplomático
Diplomatas costumam ser,
salvo as exceções de praxe, funcionários discretos e disciplinados por natureza.
Típicos servidores de Estado, eles também costumam servir indistintamente – com
proficiência, proverbial discrição e sentido de responsabilidade – a todos os
governos que, legitimamente ou não, ocupam, de forma temporária ou quase permanente,
as rédeas do poder político, de preferência na saudável alternância das
democracias normais. Apenas essas características explicam que o Itamaraty e os
diplomatas profissionais tenham atravessado os anos exóticos do lulopetismo,
tendo sabido preservar de modo relativamente incólume sua reputação de
qualidade, em face dos problemas acumulados pela maneira sui generis de fazer política – e “negócios” bizarros também – que caracterizaram
quase três lustros de anomalias funcionais e disparates institucionais em
praticamente todas as áreas da administração pública. Também com as exceções de
praxe, os diplomatas procuraram, nesses anos, conciliar a qualidade técnica de
seus serviços especializadas com algumas opções na política externa que
certamente destoaram, e muito, do modo de ação diplomática que sempre
distinguiu a Casa de Rio Branco. Mas, os governos passam e os diplomatas ficam.
O autor deste depoimento é
uma das exceções de praxe, talvez uma das poucas pessoas a terem atravessado a
trajetória quase completa de opções possíveis no largo arco de aventuras
políticas que marcou a ascensão ao poder, em janeiro de 2003, de um governo de
esquerda, típico representante dos movimentos esquerdistas da região (e do
movimento socialista mundial) que lutaram contra as ditaduras militares da
América Latina, desde a era da Guerra Fria até o atual período de turbulências
na terceira onda da globalização. Tendo pertencido aos movimentos que lutaram
contra o regime militar, e por isso mesmo conhecido um longo exílio de sete
anos nos anos mais sombrios da ditadura castrense (entre 1970 e 1977), tendo
ingressado logo após no serviço exterior brasileiro, ao mesmo tempo em que manteve,
paralelamente, uma intensa carreira acadêmica, e tendo acumulado reflexões e
observações escritas sobre os mais diferentes regimes políticos e econômicos no
decorrer de mais de meio século, quem subscreve o presente depoimento acredita
possuir credenciais, conhecimento ou maturidade suficientes para efetuar um
julgamento pessoal (mas fortemente embasado numa experiência direta dos fatos
narrados) sobre o que foi aqui designado como “auge e declínio” do lulopetismo
diplomático (este um conceito de duvidosa existência).
Os argumentos alinhados a
seguir refletem, portanto, uma vivência de algumas décadas na diplomacia
profissional, combinada com atividades acadêmicas as mais variadas, além de um
conhecimento pessoal da trajetória das organizações de esquerda que perfilaram
na luta contra o regime militar e que ascenderam ao poder federal na aliança
com o PT como resultado das eleições presidenciais de 2002. A postura política
assumida neste depoimento é fortemente crítica dessa hegemonia de esquerda, em
geral e no tocante ao assim designado “lulopetismo diplomático”, sem que no
entanto seu autor possa ser classificado como um representante da “direita”, ou
de “forças conservadoras”, muito pelo contrário. Tendo ao início assumido uma
postura simpática ao governo que tomou posse em janeiro de 2003 – como revelado
em reflexões iniciais sobre essa atitude no livro A Grande Mudança: consequências econômicas da transição política no
Brasil (São Paulo: Editora Códex, 2003) –, o que transparece claramente nas
observações críticas formuladas abaixo é a simples constatação de que, além e
acima de todos os crimes comuns, dos crimes políticos e dos “crimes econômicos”
perpetrados principalmente pelo PT e partidos associados, o Brasil que agora é
legado pelo regime lulopetista em declínio enfrenta a pior crise (política,
econômica, moral) de toda a sua história, o que se reflete igualmente no
terreno da diplomacia e da política externa.
Ao fazê-lo, o autor deste
depoimento tem plena consciência de que oferece uma espécie de “relatório de
minoria”, uma vez que, tanto no ambiente profissional quanto nos meios
acadêmicos, tal postura crítica constitui, justamente, antes a exceção do que a
regra, o que apenas confirma uma atitude contrarianista em relação a certos
consensos que parecem contraditórios com uma exposição honesta dos fatos. Ser
minoria nunca me parece um problema, quando se pretende defender um serviço
profissional, como o do Itamaraty, em condições adversas de manutenção dos
princípios permanentes da política externa brasileira, nesses tempos “não
convencionais”, quando a luta era pela preservação de valores fundamentais da
carreira diplomática, por alguém que, por acaso, é também acadêmico, e que
sempre levou um duplo combate, nas duas frentes, em prol da ideia de
honestidade intelectual e do princípio do interesse nacional.
O lulopetismo como
expressão de um projeto político integral
Sempre é conveniente, e necessário, esclarecer
termos e conceitos ao início de qualquer debate de natureza subjetiva, como as reflexões
que agora seguem. A despeito do fato que alguns dos ideólogos do regime que agora
parece tocar no seu termo – após uma trajetória ascendente que representou um
parênteses notável na história política brasileira – tenham procurado
identificar a política externa praticada nos governos do PT como sendo uma
“diplomacia ativa e altiva”, parece legítimo ao observador externo (e, a fortiori, ao interno) não acatar
designações feitas pro domo sua, mas
procurar exercer seu senso crítico em função das interpretações dominantes ao
longo de toda uma fase deprimente dessa história política. Esse termo
“lulopetismo” (sem copyright aparente),
parece servir bastante bem para designar uma fase dessa trajetória política que
combina os traços característicos do petismo com idiossincrasias próprias a seu
chefe inconteste, talvez o único a ter podido unir correntes e movimentos
diversos – dos quais os mais importantes foram lideranças sindicais
alternativas, depois pelegas como todas as outras, seguidas daqueles que eu
chamo de “guerrilheiros reciclados”, além de seitas diversas da fauna
esquerdista – num partido que chegou a exercer uma hegemonia real no sistema
político brasileiro, ainda que não tenha sido sempre a força dominante no
Congresso ou nos diversos rincões do mapa eleitoral brasileiro. O chefe inconteste
desse partido exibiu, em todo caso, um capital pessoal eleitoral superior inclusive
ao do petismo, o que habilitou observadores políticos a realizarem essa junção
desses dois termos, o lulismo e o petismo, num movimento que conheceu seus
momentos de glória e de aparente consagração nos anais da história. Parênteses
fechado? Difícil dizer...
Agora que se aproxima o
fim esse capítulo da trajetória política contemporânea brasileira – certamente
um dos menos memoráveis, dada a profundidade e a extensão das atividades
corruptas da verdadeira organização criminosa que tomou de assalto o poder em 2003,
como revelado nas investigações da Operação Lava Jato, e em outras, paralelas,
igualmente devastadoras –, pode-se tentar fazer um balanço do que representaram
esses anos do lulopetismo na frente diplomática e no terreno da política
externa, começando justamente por fazer essa necessária distinção entre
diplomacia e política externa. A primeira é simplesmente uma técnica, uma
ferramenta, uma modalidade de ação estatal, que congrega recursos humanos e
capacitação especializada na interface do relacionamento do país com o mundo
exterior, nos planos bilateral, regional ou multilateral. A segunda é o
conteúdo que se imprime a essa ação, feita de opções políticas legitimadas
pelas escolhas básicas feitas pelos eleitores, em função de sua percepção sobre
os interesses nacionais e as prioridades sociais, muito embora essas escolhas
raramente envolvam grandes questões da agenda internacional do país.
Não é incorreto dizer que
a área da política externa é uma das menos exploradas nos embates eleitorais,
tanto pela sua aparente distância em relação aos problemas mais prementes da
cidadania – geralmente de caráter econômico e social – quanto pela complexidade
da agenda internacional aos olhos da cidadania. A política externa, com, também,
exceções de praxe, geralmente passa ao largo dos debates nas campanhas
presidenciais, e assim costuma permanecer ao longo de um mandato político
qualquer. O Itamaraty raramente aparece nas polêmicas políticas. Não foi certamente
o caso nos anos bizarros do “lulopetismo diplomático”, quando ele esteve associado
a várias iniciativas que marcaram esses anos com certa pirotecnia internacional
(e intencional), mas que se afastaram nitidamente de certo consenso nacional
sobre o curso da política externa e que destoaram sobremaneira do estilo (e do
espírito) de trabalho com que o Itamaraty sempre conduziu a gestão da política oficial
nas relações exteriores.
Ao lado dos vários crimes
comuns cometidos por grão-petistas que se exerceram no governo – nem todos,
ainda, devidamente sancionados pela Justiça – e dos muitos “crimes econômicos”
cometidos por uma gestão particularmente inepta na condução da política
econômica, e que levaram o Brasil ao que eu chamei de “Grande Destruição” – e
que deixaram profundas marcas em termos de baixo crescimento, de recrudescimento
da inflação, do desequilíbrios e irregularidades nas contas públicas, e da exacerbação
do dirigismo estatal e do protecionismo comercial –, o lulopetismo diplomático
representou uma séria deterioração dos padrões habituais da atuação do Brasil
na frente externa. O Itamaraty só não foi aparelhado pelos apparatchiks do partido e assaltado por militantes da causa petista
– como ocorreu em praticamente todas as demais agências públicas – por
injunções da legislação que obsta esse tipo de invasão exótica no ministério;
mas a política externa não ficou imune ao festival de bizarrices perpetradas
pelos lulopetistas em quase todas as demais esferas da administração pública.
Já examinei, em meu livro Nunca Antes na Diplomacia: a política
externa brasileira em tempos não convencionais (Curitiba: Appris, 2014), os
principais exemplos das bizarrices lulopetistas nesse terreno especializado da
ação estatal, mas convém neste momento chamar a atenção para outros aspectos
que tiveram de ser discretamente abordados nesse livro, em função justamente da
reserva que diplomatas devem manter quando se pronunciam publicamente sobre
temas da política externa corrente. Num momento em que uma diplomacia sem
rótulos bizarros começa a ser estabelecida, não só em benefício do próprio
Itamaraty, mas em função de padrões diplomáticos mais consentâneos com práticas
consagradas na tradição brasileira de relações exteriores, cabe refletir sobre
o volume de deformações impostas pelo lulopetismo à ação externa do Brasil. Um
balanço feito a partir dos registros disponíveis certamente revelaria um número
bem maior de bizarrices diplomáticas que conviria examinar, e corrigir, para que
a política externa do Brasil retorne aos seus padrões habituais de correção e
equilíbrio, sem mais aventuras exóticas e escolhas francamente deletérias do
ponto de vista dos interesses nacionais.
Por que “auge e declínio”
no tocante ao lulopetismo diplomático?
Caberia explicar porque os
primeiros termos deste depoimento se referem a “auge e declínio” do lulopetismo
diplomático e não, como seria mais comum, “ascensão e queda”, ou “triunfo e
fracasso”, ou qualquer outro equivalente encontrado na literatura corrente deste
gênero. A razão é que este depoente não acredita que o lulopetismo diplomático
tenha sido de fato derrotado, ou se encontre irremediavelmente condenado,
inclusive porque existem bases ideológicas bastante fortes para que o lulopetismo,
em si, como também sua variante “diplomática” continuem exercendo certa
dominância política no sistema eleitoral-partidário, e sobretudo na
“consciência coletiva” de largos estratos da população, inclusive e
principalmente entre aqueles que podem ser chamados de “gramscianos de
academia”, que são os que mantêm vivas a influência e a predominância política
do lulopetismo nas vertentes interpretativas mais comuns sobre a diplomacia e a
política externa brasileira contemporâneas.
O lulopetismo diplomático
certamente já conheceu momentos mais elevados de “glória” e, se ele se encontra
temporariamente num declínio aparente, não é seguro que esteja enfrentando uma
crise terminal ou condenado a desaparecer irremediavelmente, como resultado de
tantos fracassos acumulados em diversas frentes da diplomacia e da política
externa do país. A primeira razão de sua “fortaleza” é que o lulopetismo, em si
mesmo, é relativamente vigoroso, baseado, por um lado, na crença de imensas
massas – e também de muitos true believers
da academia – nas virtudes proclamadas por esse movimento na resolução de
alguns dos grandes problemas da sociedade brasileira: pobreza, carências reais
em matéria de saúde, educação, habitação, renda, emprego, desigualdades
sociais, etc. Por outro lado, o lulopetismo sempre foi extremamente hábil em
sua própria propaganda, fazendo intenso uso e contínua publicidade das supostas
virtudes das políticas propostas pelos lulopetistas para o equacionamento e a resolução
daqueles mesmos problemas; ou então na atribuição de responsabilidades por eventual
situação negativa nessas questões a vagamente designados “inimigos do povo”,
que seriam políticos e partidos não identificados com, ou opostos às políticas
e propostas dos lulopetistas, ou a fatores “objetivos” que poderiam ser
vencidos por eles: as elites, a burguesia e os grandes financistas, o
capitalismo em geral, o imperialismo em particular (e o americano em especial),
enfim, os ricos e poderosos, a “grande mídia”, quando não ameaças mais
“sofisticadas”, como o neoliberalismo, termo especialmente em voga na boca de
acadêmicos que nunca se envergonharam da indigência mental e da profunda
desonestidade sub-intelectual implícita ao emprego desse tipo de argumento
falacioso.
O lulopetismo teve a seu
favor, para ser bem sucedido na primeira linha, crenças já existentes na
sociedade, mas continuamente alimentadas pela tribo aqui chamada de “acadêmicos
gramscianos” – eles não precisam ler ou conhecer Gramsci, basta atuar no
universo conceitual que ele elaborou – e repetidamente reiteradas na estrutura
de ensino, nos três níveis de educação abertos à população em geral. Essa foi a
primeira condição e a razão do “sucesso” eleitoral e político do lulopetismo. A
outra perna, a da publicidade, sempre necessita de poderosos recursos, para
criar ou alimentar um poderoso exército de propagandistas das “boas causas”, e
de ataque sistemático aos “inimigos” dessas boas causas. Para a eficácia da
técnica à la Goebbels é preciso largas somas de dinheiro, e é a isso a que a
máquina partidária do lulopetismo se dedicou desde o início, antes mesmo de
conquistar o poder central na República. Conquistado esse poder, em 2003, tudo
se tornou mais fácil: a máquina de publicidade do lulopetismo passou a dispor
de imensos recursos do Estado, de somas fabulosas, de possibilidades
gigantescas, disponíveis não só no Estado, mas também fora dele, junto a
capitalistas desejosos ou necessitados de contratar com o Estado, para obras de
grande valor unitário, geralmente empreiteiras e construtoras, mas também
banqueiros e grandes carteis, que podem ser “seduzidos” para fins de “doações
legais” ou convenientemente extorquidos.
O PT e o lulopetismo – que
se completam, mas não são exatamente a mesma coisa – usaram e usam, largamente,
abundantemente, regularmente, sistematicamente, legalmente e criminosamente,
dos dois expedientes para criar, manter, defender e ampliar o seu poder sobre a
sociedade. Eles começaram por assegurar seu próprio domínio sobre o Estado,
lotando a máquina pública de militantes obedientes, comprando (literalmente) ou
subornando parlamentares e mesmo máquinas partidárias inteiras, designando
juízes amigos para os tribunais superiores e, sobretudo, criando e
multiplicando as redes sociais de divulgação de suas ideias, das crenças, da
propaganda mais ou menos “correta” e das mensagens mentirosas, os tais “blogs
sujos”, simples mercenários de uma direção atuando seguindo princípios
neobolcheviques.
Essas duas forças –
crenças arraigadas numa sociedade adepta do estatismo mais exacerbado, e um
“estamento burocrático” de feitura gramsciana, com uma organização de tipo
neobolchevique, dedicada fundamentalmente a aprofundar essas crenças – só não
puderam “conquistar” num movimento de ocupação o próprio Itamaraty em virtude das
características funcionais já identificadas acima. Mas a instituição foi
devidamente manietada e submetida, inclusive e sobretudo com a ativa
colaboração de diplomatas que estiveram em sua direção durante quase todo o
tempo de vigência do lulopetismo diplomático, com o suporte entusiasta dos
referidos gramscianos de academia e uma forte atuação de apparatchiks do PT em diversas instâncias decisivas do processo
decisório incidindo sobre a diplomacia, inclusive e principalmente por meio da
intervenção direta de um “chanceler paralelo”, isto é, o encarregado de assuntos
internacionais do partido trabalhando numa assessoria da Presidência da
República.
O papel dos apparatchiks do PT na implementação do
lulopetismo diplomático
Assessores presidenciais
em matéria de política externa são essenciais para o bom desempenho do chefe do
executivo nas diversas frentes diplomáticas que se abrem ao seu exercício
direito, num contexto internacional agora profundamente marcado pela
intervenção direta dos chefes de governo nos assuntos externos dos respectivos
países (sendo que presidentes, salvo as exceções europeias, não são geralmente
versados ou experts em temas internacionais). A realidade, porém, é que esse
tipo de assessoria raramente existiu ao longo da história republicana
brasileira, seja porque os presidentes se envolviam pouco em matérias de
política externa – em épocas de comunicações e transportes mais difíceis ou
lentos – seja porque os presidentes delegavam aos chanceleres o essencial do
trabalho nessas esferas, ou interagiam diretamente com eles para as tarefas que
fossem julgadas mais relevantes no plano diplomático.
Na história política
brasileira, justamente, uma “agência”, ou assessoria formal desse tipo, nunca
existiu enquanto tal, sendo geralmente o resultado de disposições
administrativas tomadas de forma ad hoc
apenas por determinados presidentes. Vargas, por exemplo, se entretinha
diretamente com vários embaixadores, seja aqueles enviados especialmente por
ele mesmo – e que não eram de carreira – seja com diplomatas de carreira, com
os quais ele mantinha correspondência pessoal e distinta da série de
expedientes oficiais do Itamaraty. No curso da República de 1946, ou durante o
regime militar, diplomatas trabalharam ocasionalmente na Presidência da
República, em geral no âmbito da Casa Civil, mais para assessorar o ministro em
temas internacionais, não necessariamente o presidente. Na redemocratização, em
1985, se instituiu de forma mais ou menos improvisada “uma” assessoria
especial, que funcionou inteiramente e exclusivamente com diplomatas até os governos
de Fernando Henrique Cardoso: todos mantiveram um padrão de comportamento
bastante discreto e uma atuação em perfeita sintonia com o Itamaraty, como
seria de se esperar de diplomatas profissionais.
A
grande mudança ocorreu justamente na era do lulopetismo presidencial, ainda que
o apparatchik do PT ali colocado
tenha se cercado de vários diplomatas porque ele mesmo – um ex-secretário de
assuntos internacionais do PT durante longos anos – não tinha manifestamente competência
para tratar da maior parte dos dossiês diplomáticos. Se tratava de uma espécie
de “filtro” entre o Itamaraty e o presidente, este um grande ignorante nessa
área, mesmo que tivesse mantido, desde seus tempos de líder sindical, muitos
contatos na área do sindicalismo internacional (centrais estrangeiras) e até
com o Partido Comunista Cubano, provavelmente um grande financiador do PT em
seus anos iniciais (e talvez até mesmo a conquista do poder, para a qual deve
ter colaborado).
O
ex-secretário internacional do PT era justamente um homem de confiança dos
cubanos, que o conheciam desde seus tempos de exílio durante boa parte do
regime militar, como também era de “confiança” o principal “executivo” do
partido, ex-líder estudantil treinado pela Inteligência cubana para permanecer
“adormecido” durante a longa fase agônica do regime militar. Ambos foram
responsáveis pela instalação e pelo funcionamento do Foro de São Paulo, uma
entidade de monitoramento e controle de todos os partidos e movimentos de
esquerda da América Latina pelo PCC, que passou a “guiar” – stricto et lato sensi – todas essas “correias
de transmissão” na região, a partir de 1990, quando a falência do velho centro
comunista na URSS se tornou inevitável e inexorável. Este aspecto do “movimento
comunista regional”, na América Latina, não está ainda adequadamente coberto
pela historiografia disponível – da mesma forma como o foi, por exemplo, o
comunismo internacional a partir da URSS e da China – e pouco se sabe, na literatura
da área, ou no jornalismo especializado, em torno da influência real e dos
vínculos operacionais entre o PCC e suas “antenas” na região.
O
fato é que, de uma forma ou de outra, o apparatchik
do PT na Presidência da República estava ali não só para controlar o Itamaraty
(em nome do partido ou de outros esquemas ainda não identificados), como também
para desempenhar ou se encarregar diretamente de algumas tarefas que muito raramente
deixaram traços documentais nos expedientes oficiais do Itamaraty. Devido a uma
provável insuficiência linguística, ou uma notória “vantagem comparativa” em
assuntos da própria região, esse assessor logo passou a ser conhecido – meio
jocosamente, meio a sério, tanto por jornalistas como entre os próprios
diplomatas – como o “chanceler para a América do Sul”, condição expressamente
reconhecida pelo presidente Lula numa de suas inúmeras arengas improvisadas no
próprio Itamaraty. A distinção entre a diplomacia oficial do Itamaraty, ou
seja, aquela que cuida das relações entre Estados, e uma outra, “paralela”, voltada
para as “relações com os partidos de esquerda da região”, está justamente documentada
em discursos feitos pelo próprio presidente Lula durante comemorações do Dia do
Diplomata, sempre da mesma forma improvisada e jactanciosa que o caracterizava.
Independentemente
do desempenho de missões oficiais por parte desse assessor, subsistem inúmeras
lacunas sobre como foi feita a tomada de determinadas decisões no âmbito da
diplomacia regional. É um fato que algumas dessas missões assumiram grande
relevância nessa diplomacia regional ao longo dos trezes anos de presença do
assessor no palácio presidencial, em especial em direção de Cuba e dos países
ditos “bolivarianos”. Tal relevância pode não ter sido intrínseca a uma agenda
própria ao Itamaraty, o que não impediu alguns desses temas de se converterem
em importantes dossiês diplomáticos nesses anos, uma vez que a política externa
destoou dos padrões habituais do Itamaraty, ao ter sido partidarizada, como já enfatizado
diversas vezes (são inúmeros as matérias de jornalistas, assim como trabalhos
meus, a esse respeito).
Esse
aspecto merece ser devidamente registrado, uma vez “extirpada” – pelo menos
temporariamente – a política externa partidária, uma vez que ele pode passar ao
largo da literatura da área, sem o devido registro pelos historiadores (e não é
seguro que subsista suficiente documentação disponível a respeito de alguns
dossiês). Em qualquer hipótese, no que se refere ao caráter dessa política, existiam
diversos “canais” através dos quais a política externa partidária fluía do
palácio presidencial, ou do próprio PT em direção do Itamaraty ou para outras
agências (ministérios setoriais, o BNDES para certas funções, ou uma companhia
estatal, para outras), por intermédio de personagens conhecidos ou até de
pessoas ou entidades pouco identificadas. Hipoteticamente, poderia até não
existir “um” assessor presidencial em temas de política externa, o que foi o caso
em outras eras, como já registrado. Nos governos militares. a figura não
existia: o presidente Geisel, por exemplo, despachava diretamente com o chanceler
Azeredo da Silveira os assuntos de política externa, e o ministro Leitão de
Abreu tinha vários diplomatas na Casa Civil porque gostava, não porque
existisse uma assessoria com essa finalidade. A política externa, durante todo esse
período, era a do presidente e a do Itamaraty, com uma grande ênfase
institucional, como se sabe.
Na
era lulopetista, ao contrário, a política externa foi a do PT, não do
Itamaraty, em temas de interesse do partido, do presidente, ou de outros
interesses que caberia um dia esclarecer devidamente. A assessoria presidencial
em matéria de política externa pode ter sido relevante, no caso da
personalidade em questão (por força de certos vínculos externos mantidos por essa
figura), mas isso não eximiu a diplomacia de ser partidária (uma vez que, no
fundo, se tratava provavelmente não de uma conveniência, mas de uma necessidade
política e operacional). A rigor, esse tipo de assessoria não precisasse
existir, se o ministro fosse diretamente um quadro petista. Ocorreu, no caso,
que o PT não dispunha (e ainda não dispõe) de gente competente nessa área, por
isso teve de recorrer a diplomatas profissionais para exercer o cargo, servidores
que concordaram com, ou aplicaram, a política externa do PT, com alguns matizes
setoriais.
O que é importante
registrar, para fins de possíveis trabalhos futuros no terreno historiográfico
ou mesmo na área da ciência política, é que a era
lulopetista foi de uma enorme obscuridade no tratamento de muitos assuntos de
Estado, e não apenas na esfera diplomática e na da política externa, como agora
se constata pelos inúmeros casos de corrupção vindo à tona. Quem poderia
imaginar, alguns anos atrás, que a Petrobras estava sendo assaltada na
proporção gigantesca, em bilhões de dólares, e na extensão inédita, em
praticamente todos os investimentos e atividades, a partir das quais ela foi
literalmente destruída? Quem imaginava quanto dinheiro da corrupção fluiu para
os cofres do partido e de seus dirigentes corruptos nesses anos todos,
concretamente desde o início da era lulopetista? Em todo caso, o registro
completo das muitas atividades da assessoria presidencial em temas internacionais
ainda está para ser feito. Entretanto, ele talvez nunca venha a ser feito, por
inúmeras e óbvias razões.
O
Itamaraty não esteve diretamente envolvido nas muitas falcatruas lulopetistas –
certamente devido a seu corpo de profissionais, e na ausência de alocação de
recursos para “investimentos” próprios – mas não se pode deixar de registrar
que ele também foi utilizado indevidamente pelos petistas, a começar pelo presidente,
por exemplo em suas viagens literalmente de “negócios” (até como ex-presidente).
Passaram também pelos canais oficiais, operações bizarras, como a “importação” algo
esdrúxula de médicos estrangeiros (na verdade uma cobertura para a remessa de
dinheiro do Brasil aos “companheiros cubanos”, desesperados desde a derrocada
econômica do chavismo).
O que significou para a
diplomacia profissional o lulopetismo diplomático?
Começaria por destacar o
próprio rótulo que tentaram colar à política externa, feita de gestos
histriônicos conduzidos pelo “nosso guia” no cenário internacional, com a
assessoria de alguns diplomatas profissionais convertidos em fieis servidores
da causa: ela teria sido “ativa, altiva e soberana”, como não se cansava de
repetir um dos chefes dessa diplomacia feita de muita publicidade em causa
própria e de poucas explicações sobre as razões de determinadas ações jamais
explicadas ao Congresso ou à cidadania. Por exemplo: como o ex-presidente
Zelaya, deposto numa operação confusa por parte das forças armadas de Honduras,
adentrou realmente nossa embaixada na capital do país? Ou como se processou,
efetivamente, a expropriação de ativos da Petrobras na Bolívia, em total
descumprimento das normas mais elementares do direito internacional e na
ausência de uma ação mais vigorosa por parte da diplomacia brasileira? Como se
permitiu à Argentina derrogar durante muitos anos às regras de política
comercial do Mercosul, em detrimento de exportações brasileiras? Como o tratado
de Itaipu foi alterado para permitir novas generosidades a partir de recursos
nacionais? Por que supostas “assimetrias” no Mercosul precisam ser cobertas, à
razão de 70%, com verbas brasileiras, quando o país mantém assimetrias muito
mais graves em seu interior? São muitos os casos obscuros na diplomacia na era
lulopetista, o que não a impediu de continuar a ser classificada de “ativa e
altiva” (e soberana), para gáudio dos neófitos.
Quando se tem a
preocupação de grudar um ou dois rótulos à diplomacia, que geralmente dispensa
qualificações quando é exercida dentro dos parâmetros normais da ação estatal,
é porque, no plano psicológico, já se sente a necessidade de justificar as
escolhas feitas, provavelmente pelo pressentimento de que elas não se moldam ao
que se tinha habitualmente como padrão de um relacionamento externo normal. Esta
foi justamente a atitude dos lulopetistas – diplomatas ou não – em relação a
temas que deixaram cicatrizes no estabelecimento diplomático, a começar por uma
estranha “diplomacia Sul-Sul” que partia, não de um exame tecnicamente isento
da agenda externa do país, mas de uma escolha prévia, deliberada e totalmente
ideológica, por alianças internacionais, ditas “estratégicas”, que premiavam
parceiros considerados “anti-hegemônicos”, em contraposição às posições
tradicionais do Itamaraty. Este sempre se pautou por recomendar um relacionamento
externo não discriminatório nos planos geográfico e político, em função
unicamente dos interesses do país, e certamente olharia com estranheza essa
tentativas ingênuas e canhestras de “mudar a relação de forças no mundo”, ou de
criar uma também bizarra “nova geografia do comércio internacional”, geralmente
com resultados frustrantes e sempre patéticos.
A soberania do país foi
exatamente a mais comprometida por uma série de escolhas que invariavelmente
primavam por um anti-imperialismo infantil, por um antiamericanismo anacrônico
e por um apoio indisfarçável a uma das ditaduras mais longevas na região e no
mundo, sem mencionar os regimes populistas-autoritários, ideologicamente
beneficiários da tradicional postura diplomática, aliás consagrada num dos mais
sagrados princípios constitucionais – o da não intervenção nos assuntos
internos dos demais países – que sempre levou o Itamaraty a nunca fazer
considerações de natureza política sobre suas escolhas eleitorais. Para o
lulopetismo, essa coisa de “não intervenção” nunca valeu para regimes amigos e
aliados ideológicos, por motivos de clara identidade política (ou por outras
razões, não exatamente transparentes).
O vistoso condutor da
nação, nos momentos de campanhas presidenciais em países vizinhos, nunca deixou
de emprestar seu apoio político – quando não o dinheiro da nação – aos
candidatos que ele julgava merecedores dessas bizarras “alianças estratégicas”,
invariavelmente completadas por financiamentos ultra-favorecidos raramente
questionados pelo corpo parlamentar. Os muitos casos de empréstimos “secretos”
a “parceiros estratégicos”, ou simples aliados ideológicos, é um dos inúmeros
exemplos de operações carentes de qualquer transparência e, provavelmente até,
de amparo legal em normas constitucionais e disposições legais no plano
financeiro.
O Mercosul, um projeto
basicamente de abertura econômica e de liberalização comercial, e de formação
de um espaço integrado com os vizinhos do cone sul, foi desviado de seus
objetivos essenciais (expressos no artigo 1o. do Tratado de
Assunção), e convertido num empreendimento político que serviu unicamente de
palanque para a retórica vazia dos lulopetistas, com um recuo notável nos
padrões de funcionamento, uma vez que a administração petista condescendeu com
as violações cometidas contra o livre comércio e a união aduaneira que deveriam
servir de regras fundamentais para a sua existência. Não se descobrirá, por
outro lado, qualquer iniciativa na frente externa que tenha descontentado as
lideranças castristas ou bolivarianas, invariavelmente beneficiadas pelo apoio
político ou financeiro do lulopetismo diplomático.
Certamente que o Itamaraty
por si próprio não teria apoiado determinadas escolhas – na Bolívia, em
Honduras, na Venezuela, ou no Paraguai – que foram decididas exclusivamente no
círculo restrito dos apparatchiks
petistas, sem o devido registro nos expedientes diplomáticos e nos arquivos da
Casa. A suspensão ilegal do Paraguai do Mercosul – porque sequer amparada nas
normas do Protocolo de Ushuaia, que regulam a cláusula democrática do bloco – requer
um reexame de todo o processo, mesmo que fosse para um simples registro factual
dos eventos, e de algumas das conversações mantidas na ocasião. O importante
tema do devido registro documental de cada trâmite diplomático merece uma seção
especial, ainda que fosse por um simples procedimento burocrático, como
justamente agora se argumenta.
O que resultou,
finalmente, do lulopetismo diplomático?
Pode-se imaginar como
futuros historiadores interpretarão – se forem capazes – certas decisões
tomadas nesses anos obscuros, na ausência de um processo diplomático de exame
circunstanciado da cada ação empreendida na frente externa. Como e por que, por
exemplo, se decidiu suspender o Paraguai do Mercosul, na ausência completa de
uma estrita observância dos próprios rituais do Protocolo de Ushuaia, sobre a
cláusula diplomática do bloco? Como, e sob quais justificativas, se decidiu
admitir politicamente a Venezuela no mesmo bloco, se ela jamais cumpriu
qualquer um dos requisitos simplesmente técnicos de sua adesão à união
aduaneira do Mercosul, sem mencionar o lado bem mais grave da observância de padrões
aceitáveis no plano da democracia? Que tipo de acordo foi feito com a governo
cubano para repassar um volume expressivo de recursos para aquele regime (seja
para o porto de Mariel, seja para outras transferências altamente suspeitas),
se o Parlamento não foi chamado a examinar e dar a sua chancela a esses
“encargos gravosos” no plano externo, como o determina a Constituição? Esses
são apenas alguns dos muitos casos sobre os quais existem dúvidas sobre se
foram, de fato, respeitados os padrões habituais do acatamento do Itamaraty às
regras do direito (administrativo ou qualquer outro) que sempre pautaram a
atuação da Casa de Rio Branco ao longo de sua história quase bicentenária.
Uma característica que
sempre marcou a diplomacia lulopetista – consoante o caráter desonesto do
partido e de seus dirigentes em todas as demais frentes, de sempre buscar
apontar alguma “traição” anterior, ou alguma “herança maldita”, que lhes teria
sido deixada como um grande obstáculo às suas magníficas realizações – foi a de
inventar uma suposta submissão do “antigo regime” a ditames externos, a regras
impostas por um fantasmagórico Consenso de Washington, ou quaisquer outros
compromissos negociadores externos. A transferência de responsabilidades
começou logo na campanha eleitoral, ou imediatamente no seu seguimento, uma vez
que a deterioração da situação econômica do Brasil, durante os meses da
campanha eleitoral de 2002 só existiu por que os mercados temiam, justamente,
os possíveis efeitos de uma política econômica esquizofrênica que os aprendizes
de feitiçarias econômicas do PT tinham se encarregado de propagar durante os
meses anteriores ao pleito presidencial (em especial no chamado “programa de
Olinda”, de dezembro de 2001).
Uma vez chegados ao poder,
eles foram logo se empenhando na implosão da Alca, a proposta americana de uma
zona de livre comércio hemisférica, que seria, nas palavras do líder
simplificador, não uma iniciativa de integração, mas um “projeto de anexação”.
A oposição de princípio ao acordo em negociação foi feita não porque os
economistas e diplomatas comprometidos com essa linha redutora tivessem
conduzido detalhados estudos técnicos, de simulação econômica, sobre os efeitos
de um tal acordo para o Brasil, mas apenas porque, ideologicamente, eles eram
contra tudo o que pudesse provir do gigante do norte, ou que tivesse sido
legado pelo regime “submisso” anterior.
No lugar do famigerado
projeto imperialista de anexação, os lulopetistas decerto esperavam maravilhas
de um hipotético acordo entre a União Europeia e o Mercosul; o “Nosso Guia”
chegou até a propor um acordo de livre comércio entre o bloco do Cone Sul e a
China, como se esta fosse a solução para todos os problemas externos do Brasil
e do Mercosul. Deve-se reconhecer que os companheiros conseguiram o seu
intento, não exatamente o livre comércio com a União Europeia – uma ilusão de
ingênuos e de amadores – e menos ainda tal tipo de arranjo com a China, mas
obtiveram, de fato, a implosão da Alca, transformada em um protótipo de dragão
da maldade imperialista.
Os estrategistas
companheiros também ficaram iludidos pela possibilidade de o Brasil ser
admitido como membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidos, uma
verdadeira obsessão para alguns, numa outra suprema demonstração de irrealismo
e de total falta de prioridades para a agenda externa do Brasil. Em nome desse
objetivo, o supremo mandatário saiu pelo mundo perdoando dívidas bilaterais de
ditadores do petróleo e prometendo apoio político para os mesmos inimigos das
liberdades e dos direitos humanos. Aliás, manter amizade com ditaduras confirmou-se
como uma mania dos companheiros, sempre dispostos a tratar com complacência os
piores perpetradores de atentados aos direitos humanos e valores democráticos.
No “antigo regime tucanês”,
o Brasil apenas se abstinha nas discussões e votos a respeito dos casos mais
politizados nessas matérias nas instâncias da ONU: a partir de 2003, o país
passou a votar ativamente em favor dos violadores de direitos humanos e dos inimigos
da democracia ao redor do mundo. Não se está aqui inventando nada: basta
conferir os votos envolvendo alguns desses países. O embaixador político enviado
pela diplomacia lulopetista a Havana até chegou a defender o fuzilamento de
simples balseiros que tentavam fugir da ilha-prisão da qual os companheiros sempre
gostaram (a ponto de financiá-la fartamente quando a situação falimentar do
socialismo bolivariano diminuiu o subsídio ao regime cubano). Um ministro da
Justiça devolveu à ditadura cubana – em avião imediatamente providenciado pelo
caudilho bolivariano –, dois boxeadores cubanos que solicitavam asilo no Brasil
durante uma competição esportiva.
Um outro comportamento
inadequado do ponto de vista dos interesses do Brasil, sob qualquer critério
que se julgue, foi o abandono da agenda comercial do Mercosul, em favor de uma
agenda política que poucos progressos trouxe ao bloco; ao contrário, fê-lo
retroceder tremendamente nos últimos dez anos. Ao pretender que o Mercosul não
era só econômico ou apenas comercial, e que ele deveria também avançar nos
terrenos político ou social, não constituiu apenas uma impropriedade semântica,
mas representou um crime econômico contra o bloco, e isso a mais de um título.
O Mercosul é, antes de mais nada, um tratado de integração comercial, e se
fundamenta, basicamente, na abertura econômica recíproca, na liberalização
comercial, e na plena integração produtiva do bloco ao resto do mundo, ponto. É
isso que está escrito em seu tratado constitutivo e é essa agenda pela qual os
países deveriam se bater em suas políticas comercial e industrial.
Nada disso se fez na
lula-década, ao contrário. Durante todo esse tempo, o bloco só recuou na
liberalização interna e na abertura externa, voltando a ser o avestruz temeroso
que os países membros eram nos tempos pouco gloriosos do protecionismo
comercial e da introversão econômica. Como resultado dessas políticas, o
Mercosul recuou relativamente na pauta comercial externa do Brasil, deixando de
ser o indutor de economias de escala e de modernização tecnológica e de
inserção na economia mundial, objetivos para os quais ele foi concebido
originalmente. Não bastasse esse clamoroso desvio das metas originais do bloco
de integração, a criação de um Fundo para a Correção de Assimetrias Estruturais
no Mercosul (Focem), financiado a 70% pelo Brasil, representou um outro
equívoco monumental de compreensão do que sejam assimetrias estruturais, e
quanto à ilusão de “superá-las” pela ação sempre canhestra dos governos, num
completo abandono dos critérios de mercado.
Em diversas outras
vertentes, os rumos sensatos da diplomacia profissional foram bastante afetados
por um extremo personalismo presidencial, e tudo passou a girar em torno da
figura retumbante do “nosso guia”, apresentado pela publicidade do regime como
um líder das nações periféricas – ou seja, aquelas exploradas pelo imperialismo
de nações hegemônicas –, o estadista que iria comandar uma cruzada contra o
unilateralismo arrogante dessas grandes potências, até conseguir “mudar a
relação de forças no mundo” e “inaugurar uma nova geografia do comércio
internacional” (esses objetivos correspondem a projetos políticos refletidos em
frases efetivamente pronunciadas pelos promotores do lulopetismo diplomático).
Em nome de tais objetivos,
iniciativas de grande envergadura foram adotadas, para as quais se mobilizaram
recursos materiais e humanos em abundância, sempre com o objetivo de exaltar a
figura do chefe e seus discursos de sindicalista universal. Tudo começou pela
tentativa de se implantar um Fome Zero Universal, quando sequer o brasileiro
deu certo, e foi logo abandonado e substituído pela assemblagem de todos os
programas sociais existentes desde o governo anterior, apenas rotulando-os com
um novo nome e aumentando o poder de fogo do curral eleitoral então criado. A
pretensão de universalizar um Fome Zero inexistente no Brasil – aliás contra
recomendações de vários órgãos da ONU, como o PNUD, ou o Programa Mundial de
Alimentos – resultou pateticamente no simples financiamento da aquisição de
medicamentos contra a Aids em benefício de países africanos, mediante um novo
imposto sobre transportes aéreos que sequer foi implementado pelo próprio
Brasil.
A máquina do lulopetismo
diplomático teve continuidade pelas duas ambiciosas iniciativas de unir as “nações
periféricas” – representadas por países da África negra e da comunidade árabe –
em grandes conclaves de chefes de Estado das duas regiões com seus contrapartes
da América do Sul, em função das quais imensos esforços e recursos foram
dispendidos, sem que resultados concretos tenham emergido de ambos projetos
típicos da megalomania lulopetista. Esforços paralelos foram encetados em
direção de parceiros “estratégicos” pré-selecionados segundo a míope
“diplomacia Sul-Sul”, da qual resultaram dois foros de consulta e coordenação
de políticas: o IBAS – juntando Brasil, Índia e África do Sul – e o Bric – os
dois primeiros, mais China e Rússia, ao quais se agregou mais tarde a África do
Sul, formando então o Brics. Esses foros representaram novas e custosas
arquiteturas burocráticas caracterizadas pelo “mínimo denominador comum” de
posições (de resto, nunca parcialmente convergentes, a não ser com muito
esforço reducionista, justamente), em mais uma tentativa de oferecer alternativas
ao “mundo das potências dominantes” (representado pelo G7) e ao “clube dos
países ricos” (representado pela Ocde).
O último esforço de
megalomania mal concebida do lulopetismo diplomático – ainda na gestão do
demiurgo, uma vez que sua sucessora se absteve de qualquer nova iniciativa –foi
representado pelo rapidamente desmantelado acordo tripartite Brasil-Turquia-Irã
em torno do programa nuclear do país persa. O acordo, desonestamente
apresentado por seu principal arquiteto – o chanceler oficial do lulopetismo – como
sendo apenas e tão somente a realização dos objetivos de controle desse
programa pelo P5+1 (os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das
Nações Unidas e a Alemanha), atendia apenas aos interesses do Irã, quando o
P5+1 sempre sinalizou com metas bem mais intrusivas de inspeções e
monitoramento de atividades do que o obtido pelos três aliados de ocasião. Essa
iniciativa, somada à atitude claramente pró-Rússia, tomada já no terceiro
governo lulopetista, quando da discussão da invasão da Criméia pelo aliado no
Brics levada a cabo na ONU, provavelmente enterrou por algum tempo qualquer
pretensão do Brasil a conquistar uma cadeira permanente no CSNU.
Como a história registrará
a esquizofrenia do lulopetismo diplomático?
A história nem sempre é
escrita pelos vencedores, ao contrário do que se crê. A história do regime
militar de 1964-85 foi largamente construída, mesmo durante a sua vigência,
pelas forças derrotadas naquele momento inicial, e que continuaram criando uma
versão que resultou bem sucedida – com bastante sucesso, aliás – pela mãos dos
mesmos “fabricantes acadêmicos” de história aliados ou simpáticos ao lulopetismo,
quando não trabalhando diretamente para ele, enquanto governo, como foi o caso
da chamada “Comissão da Verdade”, um dos muitos exemplos de construção de mitos
e de confirmação de interpretações parciais do processo histórico.
Com o lulopetismo em sua
vertente diplomática deve ocorrer algo similar: a versão comumente propagada,
presente em praticamente todos os cursos de relações internacionais de nossas
faculdades, e maciçamente reproduzida na produção escrita circulando fartamente
nos mais diversos veículos abertos a essa entidade vaga e difusa chamada de
“comunidade epistêmica de relações internacionais”, é justamente aquela
produzida e difundida pelos sustentadores do mito lulopetista diplomático. E
qual seria esse mito: o de que, a partir de 2003, a diplomacia “ativa e altiva”
rompeu com a antiga e vergonhosa submissão e alinhamento do Brasil às potências
dominantes, conduziu um bem sucedido esforço de construção de alianças nessa
construção mental conhecida como “Sul Global”, empreendeu um processo de
acumulação de forças com parceiros “estratégicos não-hegemônicos”, e ampliou
consideravelmente a projeção mundial do Brasil, graças a uma estratégia de
recomposição de parcerias no âmbito das novas potências “emergentes”,
conseguindo, finalmente, alterar, ainda que parcialmente, a relação de forças
no cenário internacional, ademais de ampliar consideravelmente o leque dos
intercâmbios econômicos como resultado da atilada diplomacia Sul-Sul.
Os conceitos acima podem
parecer estereótipos, mas eles foram de fato esgrimidos, em diferentes
ocasiões, e pelas diversas “cabeças pensantes” (elas eram várias) do
lulopetismo diplomático, buscando justamente construir essa versão da história
que encontra grande ressonância nas academias e em diversos círculos vinculados
de uma forma ou de outra às relações internacionais do Brasil. Trata-se de uma
construção discursiva que deve continuar a consolidar um espaço explicativo e
interpretativo relativamente importante – mesmo numa fase de lulopetismo
declinante –, e como tal impor-se como a versão mais fiável da história
diplomática brasileira neste início de milênio.
É com base nessa percepção
que, ao início deste depoimento, o autor explicitou sua opinião quanto à
capacidade de resiliência do lulopetismo, especialmente em sua vertente
diplomática, uma vez que ele se encaixa num molde histórico que é um “social
constructo” aparentemente dominante nas academias, combinando um discurso de
feição autonomista e nacionalista, tomando apoio numa suposta resistência de
países periféricos às investidas de potências hegemônicas. Este foi, em resumo,
o mito do lulopetismo diplomático, alimentado pelos dirigentes partidários e
sustentado pelos seus aliados diplomáticos, sem esquecer a vasta comunidade dos
gramscianos de academia, que pensam exatamente isso das relações internacionais
do Brasil e de sua diplomacia.
Em face desse tipo de
constatação, o autor deste depoimento igualmente exótico – pois que interno à
diplomacia profissional, mas igualmente inserido nos ambientes acadêmicos onde o
mito é produzido e a partir dos quais se propaga, e também sabedor de como
pensam, como agem, o que fizeram e o que fazem os representantes do partido
neobolchevique agora afastado do poder – não tem nenhuma ilusão de que uma
versão equilibrada da história possa prevalecer no futuro previsível. A bem da
verdade, o país continuará dividido, até onde a vista alcança, por visões
dicotômicas do que foi, do que é a política atualmente, e do que deveria ser
uma política externa compatível com cada uma dessas posturas contrapostas.
Um depoimento como este,
fortemente contrastante com a interpretação política dominante nas duas últimas
décadas, possui um modesto poder corretivo sobre aqueles que aderem, segundo o
título desta seção, à esquizofrenia do lulopetismo diplomático. Mas ele é
feito, ainda assim, como uma contribuição de oportunidade, mesmo pequena, a um
esforço futuro de construção de um discurso alternativo – ao qual este autor
não estará certamente alheio – à dominância atual do gramscismo acadêmico no
campo dos estudos de relações internacionais e de política externa do Brasil,
sobretudo em sua vertente historiográfica (mas eventualmente também nas
monografias temáticas de ciência política). O autor deste depoimento tem
consciência da baixa receptividade desse tipo de discurso – de condenação total
do lulopetismo como regime político, e de recusa absoluta de toda a sua
mitologia diplomática – em face do padrão interpretativo prevalecente atualmente
nos meios que frequenta, inclusive o diplomático. Mas ele o faz, de toda forma,
como uma espécie de desencargo de consciência ou, simplesmente, como um
reconhecimento da necessidade imperiosa de que a honestidade intelectual possa
prevalecer sobre mitos tão corriqueiramente servidos nesses meios, em especial
e principalmente no contexto profissional e acadêmico que foi o seu nas últimas
décadas.
Vale!
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22 de junho de 2016.
Revisto em 1/07/2016
Nota final: os principais trabalhos do autor podendo
ser inseridos no espírito do exame crítico do lulopetismo diplomático, tal como
descrito neste depoimento pessoal, podem ser conferidos nesta listagem:
“Uma seleção de trabalhos sobre a política
externa brasileira na era Lula: Paulo Roberto de Almeida, 2002-2016”, Brasília,
6 junho 2016, 13 p. Listagem seletiva, na ordem cronológica inversa, dos
trabalhos mais importantes, inéditos e publicados, produzidos no período em
apreço em temas da diplomacia e do sistema político brasileiro. Disponível no
blog Diplomatizzando (http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/06/a-politica-externa-brasileira-na-era.html) e na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/26393585/Trabalhos_PRA_sobre_a_politica_externa_brasileira_na_era_Lula_2002-2016_).
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