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terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Ministério da Economia quer ter sua representação em Washington: é prêmio ou é trabalho sério?

 Ministério usa queda na captação de fundos para justificar base nos EUA

Nota técnica defende criação de escritório da Economia em Washington
Por Daniel Rittner — De Brasília
Valor Econômico, 14/12/2021 05h00

A alocação de recursos em ativos no Brasil por fundos internacionais (de pensão, private equity, soberanos) está caindo significativamente e atingiu o patamar mais baixo dos últimos 16 anos. Atualmente o país representa apenas 0,23% dos aportes globais e 5,10% dos investimentos em mercados emergentes, segundo números levantados pelo BTG Pactual e compilados em nota técnica da equipe econômica para justificar a criação do Escritório de Representação do Ministério da Economia no Exterior.

Em dezembro de 2018, às vésperas da troca de governo, a participação brasileira na carteira dos fundos estrangeiros era de 0,54% no total de desembolsos e de 7,69% entre aqueles destinados especificamente aos emergentes. No auge, em dezembro de 2005, essa parcela era respectivamente de 0,88% e de 12,72%

O escritório deverá ter sede em Washington e ser chefiado pelo secretário especial de Produtividade e Competitividade, Carlos Da Costa, um dos últimos sobreviventes da equipe original do ministro Paulo Guedes. Na nota técnica que embasa o decreto presidencial de criação da nova estrutura, a justificativa é de que o escritório facilitaria a interlocução com investidores e seria capaz de atrair mais recursos. A nomeação do secretário ocorreria por portaria, depois do decreto.

“[O escritório] visa preencher uma lacuna técnica no que se refere aos avanços e transformações econômicas e institucionais do país nos últimos anos”, afirma um trecho do documento, que foi obtido pelo Valor. “O relacionamento direto entre o Ministério da Economia e atores internacionais, em alinhamento com o Ministério das Relações Exteriores, garante maior efetividade na comunicação estratégica dessas ações.”

De acordo com o texto, o escritório deverá ter duas pessoas - um chefe e seu assessor -, ambas necessariamente com pelo menos um ano de experiência no Ministério da Economia e ainda vínculo formal com a pasta. Elas precisarão da “senioridade máxima possível”, equivalente à de um ministro de primeira classe (embaixador) e de um ministro de segunda classe no Itamaraty.

“Washington DC seria a cidade ideal, pela concentração de think tanks, interlocutores públicos e o alinhamento com a Embaixada do Brasil, que já possui programas e planos para estreitar relações com representantes do Executivo e do Legislativo do país, além de organismos internacionais. Além disso, Washington fica próxima o suficiente de Nova York e Miami para eventos e reuniões de um dia, além de ter logística excelente para eventos na Costa Oeste e na Europa (onde estão os maiores investidores, após os EUA)”, diz a nota técnica.

O governo, no entanto, jamais havia citado a ausência de um escritório do Ministério da Economia no exterior como uma das razões para capturar menos recursos internacionais em ativos brasileiros. A própria equipe econômica já havia atribuído essa dificuldade a cláusulas estatutárias dos fundos estrangeiros. Muitos estão impedidos de fazer desembolsos em países fora da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) ou que não possuem grau de investimento pelas agências de classificação de risco, uma condição perdida pelo Brasil em 2015.

Outro ponto muito comentado por gestores de fundos de investimento é a falta de incentivos específicos nas atuais regras das debêntures de infraestrutura, que oferecem isenção de Imposto de Renda. Só quem compra esses papéis como pessoa física goza do estímulo tributário. A nova lei de debêntures, já aprovada na Câmara, muda essa abordagem e coloca o incentivo na emissão dos títulos, facilitando investimentos por fundos. O projeto, porém, ainda depende de avanços no Senado.

A representação do Ministério da Economia foi mal recebida por muitos diplomatas, que enxergam sobreposição com o setor comercial da embaixada em Washington e os dois  escritórios da Apex nos EUA. Eles já têm como prioridade o diálogo com potenciais investidores e a atração de recursos. Fontes da equipe econômica rebatem que países como Reino Unido e Colômbia possuem estrutura semelhante, ligada às pastas congêneres.

https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/12/14/ministerio-usa-queda-na-captacao-de-fundos-para-justificar-base-nos-eua.ghtml

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Itamaraty caminhando para cotas de gênero? "Mulheres no Itamaraty, a luta por mais espaço" - Daniel Rittner (Valor)

Já existem cotas constitucionais e "raciais" para ingresso no Itamaraty, mas as mulheres representam apenas 25% (ou menos) do corpo diplomático. Não é culpa do Itamaraty: os exames são totalmente não identificados, assim é impossível fazer discriminação contra as mulheres.

Paulo Roberto Almeida


 OPINIÃO

Na lista semestral de promoções no Itamaraty, de três promovidos a embaixador, uma mulher. Apenas 16% dos postos no exterior têm uma mulher na chefia. Nas 25 embaixadas ou missões com maior lotação de diplomatas (dez ou mais), só homens estão no comando. Segundo o jornal Valor Econômico, no último dia 25, a presidente da comissão, senadora Kátia Abreu, disse ter ficado sabendo como as mulheres eram minoria na lista de promoções e escreveu para o chanceler Carlos França: "Decepção total." Segundo ela, havia um compromisso de ir aumentando a participação feminina entre ministros de primeira classe até 30% no fim de 2022.

Mulheres no Itamaraty, a luta por mais espaço

Nenhuma das 25 maiores embaixadas brasileiras é chefiada por mulher

08/12/2021 05h00  Atualizado há 3 horas

Saiu no último dia 24 a lista semestral de promoções no Itamaraty, evento aguardado com mais ansiedade por diplomatas do que o discurso do presidente na Assembleia Geral da ONU ou a próxima reunião de cúpula do Mercosul. De três promovidos a embaixador, uma mulher. Nove avançaram na carreira para ser ministros de segunda classe - de novo, uma representante do sexo feminino. Entre 12 que se tornaram conselheiros, terceiro degrau na hierarquia do serviço exterior, elas são apenas três.

Um abismo nos separa de 1918, quando o chanceler Nilo Peçanha autorizou por escrito que uma mulher fizesse concurso para o ministério: “Não sei se as mulheres desempenhariam com proveito a diplomacia, onde tantos atributos de discrição e de capacidade são exigidos. Melhor seria, certamente, para seu prestígio, que continuassem à direção do lar, tais são os desenganos da vida pública”. A candidata passou em primeiro lugar. Um banheiro feminino foi construído às pressas no Palácio do Itamaraty, no Rio de Janeiro.

Muitas mulheres sustentam que, mais de um século depois, a paridade de gênero ainda é uma ilusão na diplomacia. No dia seguinte à última lista de promoções, a Comissão de Relações Exteriores (CRE) do Senado fez a sabatina de cinco embaixadoras que vão ocupar representações brasileiras no exterior: Claudia Buzzi (Suíça), Maria Luisa Escorel (Suécia), Susan Kleebank (Hungria), Andrea Watson (Honduras) e Vivian Sanmartin (Namíbia). Deu uma bela foto de todas juntas. Razões para celebrar?

Apenas 16% dos postos no exterior têm uma mulher na chefia. Nas 25 embaixadas ou missões com maior lotação de diplomatas (dez ou mais), só homens estão no comando. Nunca houve embaixadora em Washington, em Buenos Aires, Londres, Tóquio, Pequim ou na OMC. Nunca houve ministra das Relações Exteriores ou secretária-geral (número 2) do Itamaraty, o que deixa o Brasil mais como exceção do que como regra na América Latina. Países como Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Peru e Venezuela já tiveram ministras.

É como se dissessem: elas são boas o suficiente para o Leste Europeu, a América Central, a África ou para departamentos administrativos - todas funções relevantes, que ninguém entenda mal, mas sem o mesmo status, admita-se. Na hora de falar sobre Estados Unidos ou União Europeia, sobre ONU ou comércio, os homens entram em cena. Para registro: hoje nenhuma mulher exerce cargo em nível de DAS 5 ou DAS 6 - acrônimos que Brasília lê como posição de chefia ou poder - em unidades do Itamaraty responsáveis por temas econômico-comerciais.

Vale conferir o testemunho da diplomata aposentada Vitória Alice Cleaver, 77 anos, melhor aluna do Instituto Rio Branco em 1970-1971. “Era comum que a primeira lotação, quando o candidato tinha se classificado em primeiro lugar, ele pudesse escolher. E eu tinha o sonho de trabalhar na Divisão das Nações Unidas. Fiquei decepcionada quando soube que eu seria direcionada para o Cerimonial”, contou Cleaver, em documentário produzido pelo Grupo de Mulheres Diplomatas, coletivo criado em 2013 e que hoje congrega mais de um terço das diplomatas brasileiras.s

Não se trata da lógica fria dos números. Eugênia Barthelmess, hoje embaixadora do Brasil em Cingapura, descreve da seguinte forma no documentário: “Terno e gravata estão para a nossa vida civil como as insígnias para a vida militar. São a insígnia do prestígio, da respeitabilidade, da confiabilidade, de um poder tranquilo. A diplomata vestida da maneira mais elegante, mais sóbria, não alcança esse nível de respeitabilidade que o mais jovem dos secretários tem aqui, por estar usando terno e gravata”.

No último dia 25, logo após a sabatina das embaixadoras na CRE, a presidente da comissão, senadora Kátia Abreu (PP-TO), disse ter ficado sabendo como as mulheres eram minoria na lista de promoções e escreveu para o chanceler Carlos França: “Decepção total.” Segundo ela, havia um compromisso de ir aumentando a participação feminina entre ministros de primeira classe até 30% no fim de 2022. “Não adianta. A comissão que elege quem vai ser promovido só tem homens. Então, é impossível não haver as preferências de amizade”, notou.

O caminho, segundo Kátia Abreu, talvez seja um projeto de lei que reserve pelo menos 30% das vagas de embaixador para mulheres. No ritmo atual de promoções, seria necessário esperar mais dez anos para atingir esse percentual. Não é o Itamaraty um mundo à parte, e ele padece de desafios existentes em toda a sociedade. Porém, na vanguarda do serviço público e como um centro de excelência do Estado brasileiro, pode enfrentar o problema de modo exemplar.

Daniel Rittner é repórter especial em Brasília e escreve às quartas-feiras
E-mail: daniel.rittner@valor.com.br

https://valor.globo.com/brasil/coluna/mulheres-no-itamaraty-a-luta-por-mais-espaco.ghtml

domingo, 20 de junho de 2021

Mercosul não é causa do isolamento do país, diz Teixeira da Costa - Alex Ribeiro (Valor)

Um trecho desta entrevista com Roberto Teixeira da Costa, ex-CVM e CEBRI: 

Valor: A saída de Ernesto Araújo do Itamaraty não ajuda a melhorar a nossa imagem no exterior?

Costa: Estávamos com uma política externa suicida. Não dava para entender aonde queríamos chegar. Agora imaginar que o sucessor venha a recolocar o Brasil numa posição que ele tinha anteriormente é um pouco o que falei antes. É uma questão de tempo, não é do dia para a noite. Não sei se foi o Fernando Henrique que falou isso: o Brasil, na América do Sul, era sempre lembrado em qualquer acordo, qualquer disputa, como na entre o Peru e o Equador. O Brasil agora é totalmente esquecido na região. Ninguém mais fala do Brasil. Nunca vi uma situação como essa. Nunca viu tamanha disparidade, desinteresse.

Mercosul não é causa do isolamento do país, diz Teixeira da Costa

Economista lança livro sobre falta de abertura do Brasil e questiona argumento do ministro da Economia

Por Alex Ribeiro — De São Paulo

Valor Econômico, 18/06/2021 

O economista Roberto Teixeira da Costa diz que é uma “desculpa” colocar no Mercosul a responsabilidade pela falta de progresso na abertura da economia brasileira ao mundo. “Botar na conta da Tarifa Externa Comum [TEC] as responsabilidade pelo insucesso do Mercosul e do Brasil é querer tapar o sol com a peneira”, afirma ele, que é conselheiro e fundador do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri).

A tese tem sido levantada, ultimamente, pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, que na semana passada afirmou que o Mercosul foi uma “armadilha” para o Brasil que impediu que nossa economia se integrasse às cadeias produtivas globais.

“Na imagem do Brasil, vamos ter que trabalhar muito para mudar. Com esse governo, jamais vamos conseguir”

Costa, que foi o primeiro presidente da Comissão de Valores Imobiliários (CVM), está lançando o livro O Brasil tem medo do mundo?, que aborda exatamente as razões do isolamento do país. O subtítulo do livro - Ou o mundo tem medo do Brasil? - é uma referência ao período mais recente, no governo Bolsonaro, quando as demais economias tomaram a iniciativa de se distanciar de nós, num movimento agravado pela pandemia.

“Na questão da imagem do Brasil, vamos ter que trabalhar muito para mudar. Quase geracional. Com esse governo, jamais vamos conseguir”, afirma.

Guedes, liberal, é defensor das virtudes da internacionalização da economia brasileira, mas anunciou uma estratégia em dois passos. Primeiro, afirma, o país deve fazer reformas, como a tributária, que vão assegurar as condições competitivas às empresas. Só então seria possível abrir o país ao mundo.

Costa discorda dessa estratégia. “O que vem antes? O ovo ou a galinha?”, pergunta, questionando se na verdade não é a abertura que traz mais eficiência e competitividade. “Vamos ter acesso a novas tecnologias, vamos ter acesso a novos mercados.”

O presidente tomou atitude incorreta em relação aos EUA, apostando todas as fichas. Isso é um erro estratégico”

Aos 86 anos, ele afirma que um dos legados da pandemia foi expor a desigualdade de renda. “Meus amigos dizem que eu virei socialista. Eu digo: não sou socialista. Como você vai criar mercado no Brasil sem distribuir renda? Me explique. O sujeito tem dez geladeiras, vai comprar mais dez?” A seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: Por que o sr. escreveu um livro sobre o isolamento do Brasil em relação ao mundo?

Roberto Teixeira da Costa: Depois que saí da Comissão de Valores Mobiliários [CVM], comecei a dedicar um tempo importante da minha vida às relações internacionais, no Conselho Empresarial da América Latina [Ceal] e, mais tarde, principalmente com [o ex-ministro das Relações Exteriores] Luiz Felipe Lampreia, trabalhamos em conjunto com um grupo de empresários e estadistas na criação do Centro Brasileiro de Relações Internacionais [Cebri]. Concluí que, em termos comparativos, a nossa presença nas reuniões internacionais, o nosso envolvimento, estava muitíssimo abaixo do que deveria. Havia quase uma alienação do interesse brasileiro em termos internacionais. Cito no livro uma frase do Fernando Henrique Cardoso: “O brasileiro adora ser ignorado”. Não é bem assim, mas é quase assim. Há 21 anos estamos discutindo um acordo comercial com a União Europeia. Por que o Brasil está tão isolado do mundo? Devemos atribuir à geografia? Não, a geografia deixou de ser uma razão. É um país que foi descoberto por caravelas.

Valor: O Brasil tem medo do mundo, como o título do livro sugere?

Costa: Se não tem medo, é intimidado. O subtítulo do livro, “O mundo tem medo do Brasil?”, foi criado em 2020, por causa da pandemia. Ficamos execrados pelo resto do mundo. Ainda agora estava vendo que a França está se negando a receber estudantes brasileiros. Isso é algo jamais visto. O Brasil era sempre muito querido no resto do mundo. Onde você ia, as pessoas nos recebiam com um sorriso. Hoje, nos recebem com restrições e não entendem o que está acontecendo no Brasil. Há anos, participei de uma reunião em Washington, quando a inflação estava em 70% ou 80%. As pessoas perguntavam: como vocês conseguem conviver com uma inflação como essa? A inflação nos colocava numa posição de isolamento. E, hoje, é a pandemia, são os incêndios florestais, o Brasil estar mudando regras que tinham sido consideradas estáveis. A previsibilidade é um fator fundamental para um investidor.

Valor: Nosso isolamento não vem do fato de sermos um país continental, diferentemente do pequeno Chile, que tem que se abrir para sobreviver?

Costa: Numa reunião com o ex-presidente do Chile Ricardo Lagos, eu fiz essa pergunta. Ele disse: “Somos diferentes, não somos um país baleia, somos um país que tem que olhar para o mercado externo”. Mas não é compreensível que o Brasil seja fechado apenas pelo tamanho. Havia um protecionismo aqui do chamado grupo de suporte: federações da indústria, comércio, sempre tivemos um viés protecionista. Em Davos, por exemplo, você vê que a federação da indústria da Índia, os argentinos, os mexicanos, os chilenos, todos têm presença maior do que o Brasil. A coisa mudou um pouco com o Collor de Mello, com a abertura unilateral. E todos dizem: nós demos muito nessa abertura unilateral e não pedimos nada. Ficou esse jargão durante muito tempo, até cairmos na real. E aí ficamos sempre pensando um novo momento para uma revisão tarifária, mas ela não veio.

Valor: O ministro da Economia, Paulo Guedes, é um liberal e reconhece as vantagens da abertura. Mas ele diz que, antes, tem que fazer a reforma tributária para dar condições para o empresário nacional competir com os chineses. Não parece correto esse sequenciamento?

Costa: Eu acho que é uma desculpa. Veja bem, o que vem antes? O ovo ou a galinha? Quando se olha a internacionalização, nós só pensamos em valor do mercado. Nós não pensamos nos “plus” que vamos ter com uma empresa multinacional. Vamos ter acesso a novas tecnologias, vamos ter acesso a novos mercados. Uma coisa que ficou clara com o Collor é que não podemos mais olhar o Brasil como um mercado isolado. A crise nos ensinou que existem mercado globais. Outro dia assisti à Hillary Clinton dizendo que os Estados Unidos não podem mais ficar dependentes da compra de insumos de fora. Embora não tenha falado em China, disse nas entrelinhas. Quando os Estados Unidos se depararam com a necessidade dos insumos chineses, dos aparelhos respiradores, chegaram à conclusão de que, mesmo tendo que pagar um custo mais alto, eles vão ter que ter uma produção local. Ou, acrescento eu, uma produção num país vizinho com que tenham uma relação mais amistosa. Portanto, esse é um “plus” para o Brasil, uma oportunidade que o Brasil deve aproveitar.

Valor: O ministro Guedes disse na semana passada que o Mercosul foi uma armadilha que evitou que o Brasil se integrasse às cadeias globais. O Mercosul está travando a abertura brasileira para o mundo

Costa: De novo, é uma desculpa. Botar na conta da Tarifa Externa Comum [TEC] as responsabilidade pelo insucesso do Mercosul e do Brasil é querer tapar o sol com a peneira. Continuo sendo um grande defensor do Mercosul. Você não pode estar numa vizinhança, numa rua, com o seu vizinho do lado tendo problemas o tempo todo. Se ele tem problemas o tempo todo, vão acabar te contaminando. A Argentina não é uma opção para o Brasil. A Argentina é uma realidade que está do nosso lado. Você não pode olhar a Argentina como um concorrente. É um parceiro nosso. Uma das aberturas importantes que o Brasil fez para o mercado internacional foi para a Argentina. No tempo do [ministro da Economia argentino Domingo] Cavallo, a taxa de câmbio era extremamente favorável ao Brasil e os brasileiros descobriram a Argentina. Depois, o contrário, os argentinos descobriram o Brasil. Mas tem que ter parcerias.

Valor: Mas a Argentina não nos atrapalha na busca de um acordo de livre-comércio, por exemplo, com a União Europeia?

Costa: Quando o Brasil queria fazer, a Argentina não queria fazer, e vice-versa. O Mercosul foi abandonado. As crises, que deveriam nos unir, nos separaram. Cada um procurou o seu lado. Na área de alta tecnologia, quantas coisas poderíamos fazer com os argentinos e não fazemos? Acho que não tem sentido botar a culpa nos outros. Vamos rever a TEC? Sim, vamos rever, mas desde que seja por unanimidade. O Uruguai quer fazer um acordo bilateral com os Estados Unidos? Acho que deve ser feita uma exceção. O que Uruguai vai conseguir num acordo bilateral, francamente falando, o que o Mercosul não possa conseguir? Abandonar o Mercosul parece muito mais fácil do que realmente é. Muitas empresas se estruturaram baseadas na existência de uma TEC. Você simplesmente, agora, não pode abandoná-la.

Valor: Na última reunião do G-7, uma novidade foi os Estados Unidos procurarem criar um programa de investimentos junto com os europeus para se contrapor ao da China, que tem o “Belt and Road Initiative”. Como o Brasil deve ser portar diante desses dois polos?

Costa: Vejo muitos analistas prevendo o domínio crescente da China no mundo. Acho que essas pessoas estão subestimando o papel dos Estados Unidos. Nessa reunião do G-7, a Europa se deu conta de que tem que estar junta dos Estados Unidos para fazer frente à China. Agora, na relação com o Brasil, não devemos tomar partido nisso. Temos, sim, que olhar o que nos interessa. Programas de infraestrutura americanos interessam ao Brasil? Mais do que nunca. Infelizmente, o nosso presidente tomou uma atitude incorreta em relação aos Estados Unidos, apostando todas as fichas. Isso é um erro estratégico. A questão é que nós não damos peso à nossa importância. Nossa importância não estava nisso, em assumir posições que mais tarde iriam nos custar caro.

Valor: Mas, do ponto de vista prático, é possível manter essa equidistância? O Brasil está sendo muito pressionado dos dois lados na disputa do 5G.

Costa: O 5G é realmente difícil de equacionar. Se, de um lado, você veda a Huawei, que tem uma presença grande [no Brasil], vai ser uma destruição de uma coisa que já foi construída. Do outro lado, os Estados Unidos, em vez de ficarem barrando, deveriam fazer alguma coisa que rivalizasse com a Huawei, que pudesse ser uma alternativa para os países, e não brincar de vedar. Não acho que é uma solução inteligente que os Estados Unidos estão tomando em relação ao assunto.

Valor: O Brasil está sendo pressionado pelos Estados Unidos também na pauta ambiental. Qual é a estratégia seguir, nesse caso?

Costa: Mas o Brasil não tem estratégia. Não tem. O Brasil gasta mais tempo com o passado. A não ser algumas exceções raríssimas, está todo mundo olhando para trás. Por que a China é o que é? Eles têm planejamento, de 20 anos ou 30 anos para frente. Não nos damos conta de que temos que olhar o futuro. Aí que vem a questão de Estado e governo. Temos que ter programas de médio e longo prazo. O nosso sistema presidencialista tem esse pecado. Copiamos o modelo americano, de um país que é completamente diferente do nosso. Você elege um presidente para quatro anos de mandato, o primeiro ano ele não sabe os botões que vai apertar. No segundo, ele começa a governar. No terceiro ano está preocupado com sucessão. Sou radicalmente favorável ao parlamentarismo. Não está dando certo, muda. Aqui, se errou, vai carregar por quatro anos. É o caso do Bolsonaro. Apesar da popularidade dele, acho que muitos dos que votaram nele hoje não estariam com o mesmo entusiasmo. Principalmente a Faria Lima.

Valor: Como a pandemia afeta nossa integração com o mundo?

Costa: Infelizmente, embora seja uma pessoa com um realismo esperançoso, a pandemia nos atrapalhou muito. Os Estados Unidos chegaram a 500 mil mortos, o Brasil nas próximas semanas vai chegar a isso. Por isso que as pessoas têm medo do Brasil. Como um país que tem um sistema de saúde que era cantado em prosa e verso como eficiente se retardou tanto? A questão é política. Houve um atraso muito grande na vacinação. Acho que isso é uma chaga que vai nos acompanhar. Portanto, na questão da imagem do Brasil, vamos ter que trabalhar muito para mudar. Quase geracional. Com esse governo, jamais vamos conseguir. Temos que buscar um estadista, escolher as pessoas certas para que o Brasil recupere a sua imagem no exterior.

Valor: A saída de Ernesto Araújo do Itamaraty não ajuda a melhorar a nossa imagem no exterior?

Costa: Estávamos com uma política externa suicida. Não dava para entender aonde queríamos chegar. Agora imaginar que o sucessor venha a recolocar o Brasil numa posição que ele tinha anteriormente é um pouco o que falei antes. É uma questão de tempo, não é do dia para a noite. Não sei se foi o Fernando Henrique que falou isso: o Brasil, na América do Sul, era sempre lembrado em qualquer acordo, qualquer disputa, como na entre o Peru e o Equador. O Brasil agora é totalmente esquecido na região. Ninguém mais fala do Brasil. Nunca vi uma situação como essa. Nunca viu tamanha disparidade, desinteresse.

Valor: A pandemia nos trouxe outros prejuízos?

Costa: A pandemia não nos ajudou. Ajudou meia dúzia de empresas que se favoreceram com esse contexto. Um dos problemas cruciais no Brasil é a distribuição de renda. Meus amigos dizem que eu virei socialista. Eu digo: não sou socialista. Como você criar mercado no Brasil sem distribuir renda? Me explique. O sujeito tem dez geladeiras, vai comprar mais dez? Tem cinco carros, vai comprar mais cinco carros? Não. Tem que criar condições para as pessoas chegarem ao mercado. Você só vai fazer isso distribuindo renda.

Valor: Mas o Brasil não criou um programa imenso de transferência de renda na pandemia?

Costa: Sempre tive muita cautela em defender a renda mínima. Mas eu acho que a renda mínima é uma das possíveis soluções. Não sob o ponto de vista de distribuir dinheiro, mas sim de gerar emprego. Da mesma forma como o Estado americano está criando na infraestrutura. É muito melhor você dar dinheiro para uma pessoa do que está trabalhando do que dar dinheiro para uma pessoa apenas ficar com ele. A pandemia não piorou os problemas, ela aflorou muitos dos problemas do Brasil.

Valor: Não houve avanços?

Costa: Essa questão da representação racial no Brasil. É certo que o Brasil continua com um viés racial enorme. É uma coisa cultural. Mas a coisa está mudando. Você olha as universidades, o número de negros que tem, olha na própria televisão, hoje tem uma presença maior. O Brasil se move com as crises. As crises nos ajudam a encarar melhor os problemas. O ESG [Ambiental, Social e Governança, na sigla em inglês], novamente, uma coisa entre o Estado e a sociedade. Isso está andando. Quando uma empresa se dava conta de que, ao comprar uma ação, era importante saber a política dessa empresa com o meio ambiente? Isso tudo está mudando, são mudanças fundamentais. Não acredito que elas vão ter a velocidade que eu gostaria. Mas, a curto prazo, esse é um efeito. Mas, no curto prazo, as coisa pioraram também.

Valor: De tudo o que o sr. cita no livro, quais são as duas principais medidas que o Brasil deveria tomar para diminuir esse distanciamento com o resto do mundo?

Costa: Primeira, mudar o “mindset” dos empresários sobre o assunto. Os empresários são a ponta de lança numa inserção internacional. A segunda coisa é ir um pouco às origens. É um problema de educação, cidadania. Temos que cultivar um pouco essa visão de autoconfiança no Brasil. Isso requer uma mudança no processo educacional. Não nos olharmos com viés de inferioridade, olharmos olho no olho. O país tem vantagens competitivas. O binômio educação e distribuição de renda são fundamentais em termos de futuro.

https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/06/18/mercosul-nao-e-causa-do-isolamento-do-pais-diz-teixeira-da-costa.ghtml

quarta-feira, 28 de abril de 2021

Carência de vacinas: entre o Brasil e a Índia, os EUA ficam com esta, diz Ricupero (Valor)

 EUA tendem a privilegiar Índia e não Brasil ao doar vacinas, diz Ricupero

Embaixador e conselheiro emérito do Cebri diz na Live do Valor que Brasil tem chances, mas "governo não ajuda", enquanto Índia é considerada estratégica pelos americanos

Por Gabriel Vasconcelos, Valor — Rio

27/04/2021 12h57  Atualizado há 59 minutos

O embaixador e conselheiro emérito do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), Rubens Ricupero, afirma que o Brasil tem chances, mas está muito mal posicionado para receber excedente de vacinas contra covid-19 a ser doado pelos Estados Unidos. "O governo não ajuda", resume o diplomata, que já atuou em Washington. Ricupero analisou o cenário na Live do Valor desta terça-feira.

Ricupero afirma que há muito pouco excedente de vacinas no mundo, a maior parte restrita aos Estados Unidos, além de volumes pouco significativos em países menores, como Israel e Emirados Árabes Unidos.

"O que há de excedente de vacinas no mundo é muito pouco. Mesmo nos Estados Unidos, o que há de concreto são 10 milhões de doses da AstraZeneca. O resto [outras 50 milhões de doses] são estimativas de produção futura, de maio e junho", diz. Na visão do embaixador, no entanto, a doação de imunizantes pelos EUA é movimento em "franca evolução".

"Os americanos resistiram muito à ideia de exportar vacina enquanto toda a sua população não fosse vacinada. Mas agora isso mudou, embora ainda não esteja muito claro como vai acontecer. No início deram a impressão de que privilegiariam o consórcio Covax Facility, da OMS. Agora devem usar isso como instrumento de influência diplomática direta", diz Ricupero. Para ele, os EUA devem aderir à noção de diplomacia da vacina, praticada desde o início da crise por nações como China e Índia.

A Índia, que permitiu exportação de vacinas prontas e insumos no início, teria se arrependido com o agravamento da crise e registros diários de 350 mil novos casos de covid-19. O país, na visão de Ricupero, será o principal beneficiário das doações norte-americanas.

"Os Estados Unidos devem privilegiar a Índia na doação de vacinas. Essa preferência tem componente de geoestratégia", diz o diplomata ao citar a aliança dos EUA com Índia, Japão e Austrália, com quem formam o Grupo Quad (quadrilátero) na região do indo-pacífico a fim de fazer frente à China. "Já o Brasil não tem tanta importância estratégica e isso pesa", afirma Ricupero.

Mesmo assim, ele acredita que o Brasil tem chances por razões estruturais, embora tenha dinamitado o "componente de simpatia". "O Brasil é um país do hemisfério ocidental, tem relações fortes e históricas com os EUA e se qualifica pela dimensão do desastre sanitário. Mas o governo não ajuda."

Ricupero menciona, ainda, que o Brasil pode comprar ou permutar vacinas com os EUA diferentemente de países mais pobres, como os africanos. A estratégia já teria sido vocalizada pelo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, que mantém contato com autoridades americanas e já teria dado como opção o pagamento ou adiantamento de doses a serem repostas posteriormente com o avanço da produção brasileira para uso diplomático dos EUA.

A entrevista, conduzida pelas repórteres Marsílea Gombata, da editoria Internacional, Daniela Chiaretti, especial de meio ambiente, do Valor em São Paulo, pode ser assistida na íntegra pelo site e pelas páginas do Valor no YouTube e no LinkedIn.

https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/04/27/eua-devem-privilegiar-india-ao-doar-vacinas-brasil-esta-mal-posicionado-diz-ricupero.ghtml


sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

A vitória da China na nova diplomacia das Vacinas - Valor Econômico

 E se a China vencer a guerra das vacinas?

A China vem fazendo um grande esforço de exportação de suas vacinas, enquanto os países ricos do Ocidente estão priorizando vacinar as suas populações. Isso permite a Pequim ampliar sua influência no mundo

Valor Econômico | 19/2/2021, 5h

No século 20, os EUA lideraram o mundo no enfrentamento de duas ameaças globais. Venceram o nazifascismo, na Segunda Guerra Mundial, e o comunismo, na Guerra Fria, tornando-se a potência hegemônica. Quem vai liderar o mundo contra a covid-19? Esse papel vem sendo ocupado cada vez mais pela China. Uma vitória chinesa na guerra das vacinas poderá acelerar a ascensão do país neste século.

Apesar do otimismo recente com as vacinas, só uns poucos países conseguiram, até agora, avançar com programas amplos de vacinação. Os EUA aplicaram pouco mais de 56 milhões de doses. A China, 40 milhões. O Reino Unido, 16 milhões. A Índia, 9,42 milhões. Os demais estão abaixo de 7 milhões.

EUA e UE retém suas vacinas e dão espaço para avanço chinês

Faltam vacinas e, como alertou ontem o secretário-geral da ONU, António Guterres, a distribuição das vacinas é muito desigual. Dez países (incluindo o Brasil) concentram 75% das doses aplicadas, e 130 países ainda não receberam nenhuma dose.

Os países produtores deveriam aceitar vacinar mais lentamente as suas populações para enviar vacinas ao resto do mundo? A questão é complexa e a resposta tem repercussões importantes.

Os países ricos estão hoje mantendo quase exclusivamente para si as vacinas que produzem. Os EUA embarcaram numa política de America First. Em dezembro, Donald Trump assinou decreto que obriga as empresas que produzem no país a priorizar o mercado interno. Joe Biden manteve isso e recusou apelos recentes dos vizinhos México e Canadá e de aliados na

Europa pela liberação de mais vacinas. A União Europeia (UE), prejudicada por essa política americana, adotou regras para limitar a exportação de vacinas produzidas localmente, caso o mercado europeu não seja abastecido adequadamente.

Isso pode ser eleitoralmente eficaz nesses países, mas ameaça colocar o mundo contra o Ocidente e nos braços de China. 

A China, segundo levantamento divulgado nesta semana pelo jornal “South China Morning Post”, de Hong Kong, exportou ao menos 46 milhões de doses, entre vacinas prontas ou insumos para vacinas. Ou seja, mais do que aplicou localmente. É difícil saber quantas pessoas já foram de fato vacinadas no país. O dado é opaco, e suspeita-se que a vacinação começou bem antes de as vacinas serem oficialmente aprovadas. Ainda assim, a China não atingiu sua meta oficial de vacinar 50 milhões de pessoas até o fim de janeiro, algo insólito num regime que tem verdadeira obsessão por atingir metas.

O ministro das Relações Exteriores chinês, Wang Yi, já se referiu às vacinas chineses como “produtos públicos globais”. Enquanto a China fala diariamente em distribuir vacinas, EUA e UE falam só em quantas doses asseguraram para si mesmos. Na semana passada, Biden anunciou acordo para a compra de mais 200 milhões de doses da Pfizer e da Moderna, a serem entregues até julho. Além disso, essas empresas, que vêm atrasando envios para outros países, teriam concordado em antecipar entregas ao governo americano. Nesta semana, a UE anunciou acordos de compra de mais 200 milhões de doses da Pfizer e 150 milhões da Moderna.

Para a China, possivelmente é mais fácil exportar as vacinas em detrimento de seus cidadãos. Primeiro porque o país, assim como outros na Ásia, conseguiu controlar a epidemia, tendo poucos casos e poucas mortes. Mas também o regime chinês controla a mídia e a internet no país, e qualquer dissenso sobre a política de usar as vacinas para ganhar influência no exterior pode rapidamente ser abafado.

O impacto desse esforço chinês de fornecer vacinas para o mundo é evidente. Na América Latina, o México começou a vacinar primeiro, mas parou em 1,16 milhão de doses devido ao atraso das remessas da Pfizer. O mesmo ocorreu com o Chile, que também iniciou a vacinação em dezembro. As vacinas da Pfizer acabaram, mas a vacinação acabou decolando com a chegada das doses chinesas. Tem sido assim em todo o mundo.

Rússia e Índia também estão se movimentando nessa guerra das vacinas, mas sem o poder de mobilização da China. A Rússia, com pouca capacidade interna, fez acordos com dez países para terceirizar a produção da Sputnik V, mas esses países têm os seus gargalos, e a iniciativa ainda não decolou. A Argentina, que depende da vacina russa, aplicou até agora pouco mais de 600 mil doses. Já a Índia tem seus próprios obstáculos. Por ser uma democracia, o governo está sujeito à acusação de não priorizar a própria e imensa população. Assim, Nova Déli decidiu usar suas ainda escassas doses para ajudar os países vizinhos, numa disputa por influência regional com a China.

O atraso da vacinação não implica somente a continuidade da crise na saúde, com mais casos de covid-19 e mais mortes. Tem também impacto econômico (quem se vacinar primeiro sairá antes da crise econômica) e político. Muitos líderes pelo mundo estão sendo criticados e se sentem ameaçados por não conseguiram a vacina. Assim, obtê-la virou uma prioridade de sobrevivência política. Quem tiver vacinas para fornecer pode se aproveitar desse momento de fragilidade dos governos.

A França percebeu essa ameaça e ontem o presidente Emmanuel Macron propôs que EUA e UE repassem 5% de suas vacinas a países pobres. Mas o governo Biden rejeitou a proposta e reiterou que sua prioridade por enquanto é vacinar americanos.

É provável que, vencida a luta interna contra a covid-19, os EUA venham em socorro do mundo. A UE também já acenou com doar vacinas compradas e não usadas. Mas isso dificilmente acontecerá antes do fim deste ano. Até lá, é possível que a “diplomacia da vacina” chinesa já tenha sido retribuído com favores políticos, econômicos, comerciais e militares pelos países ajudados. Isso é ampliação de influência.

Não está claro se a China conseguirá manter essa política por muito tempo. Se os EUA vacinarem toda a sua população até meados deste ano, como pretende Biden, poderão ganhar uma vantagem competitiva importante, pois as medidas de restrição adotadas por Pequim para conter a epidemia têm um custo econômico e social alto.

Mas as implicações de longo prazo desse esforço chinês podem ser muitos importantes. As imagens de soldados americanos libertando a Europa na Segunda Guerra e da queda do Muro de Berlim levaram ao período de maior expansão global da democracia. Nas últimas décadas tem havido retrocessos. A cena das vacinas chinesas chegando pode ajudar Pequim a difundir o seu modelo.

https://valor.globo.com/politica/coluna/e-se-a-china-vencer-a-guerra-das-vacinas.ghtml


sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Como as teorias da conspiração guiam a agenda internacional de Bolsonaro - Eduardo Barella (Valor)

 Como as teorias da conspiração guiam a agenda internacional de Bolsonaro

Como a cruzada contra o globalismo pauta as relações internacionais no governo Bolsonaro

Eduardo Barella

Valor Econômico | 29/1/2021, 5h

Quando candidato, Jair Bolsonaro acenou com um “novo Itamaraty” para conduzir a política externa brasileira. Parece estar cumprindo a promessa.

Em dois anos, o comando da diplomacia brasileira abandonou décadas de atuação pautada pelo multilateralismo e princípio da não ingerência, entre outras diretrizes. Bolsonaro deu o tom: discutiu com o presidente da França, Emmanuel Macron, sobre as queimadas na Amazônia; lamentou a vitória de Alberto Fernández na eleição presidencial argentina; acusou o governo chinês de disseminar o “comunavírus” e virou as costas para a ONU.

Sob tal diretriz, o “novo Itamaraty” trocou as propostas de diálogos construtivos por uma cruzada contra o chamado globalismo - para a direita radical, o conjunto de teorias conspiratórias disseminadas por agências internacionais e governos de esquerda para impor o “marxismo cultural”, em oposição aos valores patrióticos, anticomunistas e cristãos.

Um extenso levantamento feito por pesquisadores acadêmicos analisou 705 discursos e entrevistas sobre política externa dos principais integrantes do governo Jair Bolsonaro, da campanha de 2018 até julho de 2020. O mesmo foi feito com meio milhão de mensagens no Twitter postadas pela cúpula do governo e por influenciadores digitais que apoiam o presidente, mas num intervalo menor, entre dezembro de 2019 e julho de 2020.

A conclusão é de que 20% das menções da política externa brasileira sob o bolsonarismo contêm referências a teorias conspiratórias ligadas ao globalismo, algo inédito na diplomacia brasileira. Nenhum outro tema foi tão explorado pelo discurso oficial. O resultado surpreende porque teorias da conspiração não costumam fazer parte da política externa de governos, que têm a diplomacia racional como modelo predominante de narrativa.

O estudo identificou que 40% de todas as mensagens no Twitter no Brasil com teor conspiratório foram postadas por integrantes do governo, incluindo os do chamado “gabinete do ódio” - grupo de assessores responsável pelas redes sociais da Presidência.

Ou seja, além dos canais diplomáticos e oficiais, as teses conspiratórias ganharam capilaridade pela via digital e, com ajuda de influenciadores bolsonaristas, chegaram à base eleitoral do governo.

“Esses números comprovam que a política externa do bolsonarismo, do ponto de vista narrativo, está sendo pautada por uma visão de mundo antiglobalista, que, embora muita gente não tenha percebido, atende também a uma agenda interna do governo”, afirma o cientista político Feliciano de Sá Guimarães, professor do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da Universidade de São Paulo (USP) e um dos responsáveis pelo levantamento.

“Falar mal da China, da Venezuela e da OMS ou denunciar que Macron quer invadir a Amazônia são temas internacionais que dão voto, pois passam uma mensagem de defesa de valores patrióticos”, acrescenta. O “comunavírus” seria um exemplo dessa suposta trama conspiratória globalista. A expressão se refere à narrativa de que o vírus SARS-CoV-2 foi criado em laboratório pelo governo da China com o objetivo de infectar o mundo inteiro e destruir a civilização cristã ocidental.

A pesquisa foi esmiuçada num artigo acadêmico ainda inédito, “When Conspiracy Theories Capture Foreign Policy Narratives: Jair Bolsonaro’s ‘Globalist’ Conspiracy in International Relations” (Quando teorias da conspiração capturam as narrativas de política externa: a conspiração ‘globalista’ de Jair Bolsonaro nas relações internacionais), assinado por Guimarães e três pesquisadores - Irma Dutra Gomes de Oliveira e Silva e Anna Carolina Raposo de Mello, ambas do IRI-USP; e Davi Moreira, da Fundação Getulio Vargas (FGV-SP).

Guimarães e Irma prepararam outro artigo, que deverá entrar na próxima edição da revista britânica “International Affairs”, especializada em relações internacionais, em que relacionam as principais identidades populistas de direita radical no discurso de política externa de Bolsonaro e como elas formataram a relação do Brasil com o governo Trump e a China.

“As situações apresentadas numa teoria da conspiração geralmente são simplificadas por um tripé: a identificação de um inimigo, o plano desse inimigo para dominar o mundo e a ideologia que ele quer impor”, explica Guimarães. Segundo ele, os antiglobalistas afirmam que o debate ideológico fundamental do planeta não se dá mais entre capitalismo e comunismo, e sim entre internacionalismo (que chamam de globalismo) e nacionalismo, as nações.

Vem daí a narrativa antiglobalista de que existe um complô internacional liderado por vários inimigos mesclados - o governo chinês, a ONU, a OMS, o investidor George Soros etc. - para impor o “marxismo cultural”, que nada mais seria que uma leitura enviesada da obra do filósofo marxista italiano Antonio Gramsci (1891-1937), datada dos anos 30 do século passado. Gramsci dizia que o embate dos comunistas contra os capitalistas deveria se dar também no campo da cultura e das instituições culturais. “Essa fração da extrema direita acredita que o comunismo venceu essa guerra cultural e, portanto, vai impor valores agnósticos ou ateus, antinacionalistas e anticristãos”, afirma Guimarães.

A correlação entre teorias da conspiração e globalismo no discurso bolsonarista fica evidente ao se observar como essa mensagem chega à base eleitoral do governo. Na primeira parte do levantamento foram analisados discursos, pronunciamentos, vídeos no YouTube e entrevistas sobre política externa de quatro integrantes do governo: Jair Bolsonaro (123 registros), o chanceler Ernesto Araújo (480), o assessor de política externa Felipe Martins (43) e a titular do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves (35), além do deputado federal Eduardo Bolsonaro (24), filho do presidente.

Os pesquisadores captaram características de teorias conspiratórias por meio de palavras-chave (como globalismo, China, marxismo, ONU, OMS, etc.), rodaram os dados num software e colheram revelações interessantes. O antiglobalismo, por exemplo, foi tema de apenas 1% dos discursos de política externa de Bolsonaro. “Pode parecer pouco, mas aparece em quatro discursos-chave do presidente, incluindo os dois que ele fez nas Nações Unidas”, afirma Guimarães. Já Eduardo Bolsonaro se mostrou o mais radical de todos: a narrativa conspiratória antiglobalista esteve presente em 58% de todas as suas falas de política externa.

As citações de política externa da ministra Damares, por sua vez, eram mais ligadas a temas religiosos do que ao discurso antiglobalista, o que levou os pesquisadores a dar início a uma nova pesquisa, sobre os evangélicos e a política externa. “Temos evidências de que a frente parlamentar evangélica, a Assembleia de Deus e a Igreja Universal têm pautado a narrativa de dois grandes temas de política externa brasileira: a mudança da embaixada brasileira em Israel de Tel-Aviv para Jerusalém, que ainda não ocorreu, e a criação de uma aliança internacional de países contra perseguições a minorias cristãs”, diz Guimarães. “É a primeira vez que temas religiosos e argumentos teológicos são utilizados sistematicamente no discurso da política externa brasileira”, acrescenta.

Em outra frente, no Twitter, o trabalho serviu para dimensionar a ressonância das teorias conspiratórias bolsonaristas nessa rede social. O levantamento contou com um filtro específico (limitado às expressões “globalismo” e “globalistas”), chegando a pouco mais de 552 mil tuítes.

Por meio de alguns critérios, entre eles de alcance, frequência e engajamento (incluindo postagens que foram retuitadas mais de cem vezes), os pesquisadores chegaram a uma lista dos 50 maiores influenciadores digitais antiglobalistas do bolsonarismo.

Entre os integrantes do governo aparecem Arthur Weintraub (ex-assessor da Presidência e irmão do ex-ministro Abraham Weintraub); Felipe Pedri, secretário de Comunicação Institucional do Ministério das Comunicações; e Ernesto Araújo, um grande influenciador, com 557 mil seguidores no Twitter. Os ativistas digitais, maioria na lista, incluem o perfil que se identifica como “Dom Esdras das Threads”, o jornalista Rodrigo Constantino, o deputado cassado Roberto Jefferson e notórios bolsonaristas, como Allan Santos e Sara Winter.

Guimarães chama atenção para o fato de o Twitter ser uma rede social muito usada pela elite política bolsonarista. “A hipótese especulativa é que o Twitter pauta o WhatsApp, que tem um potencial de disseminação de ideias infinitamente maior, mas é impossível de ser medido por ser fechado”, explica o acadêmico. “É raro ver policiais militares ou caminhoneiros tuitando, mas áudios e mensagens dessas lideranças que apoiam o governo têm muita capilaridade no WhatsApp.”

O levantamento também reforça a hegemonia do discurso político bolsonarista nas redes sociais, que teve início na mobilização pelos protestos de rua para o impeachment de Dilma Rousseff (PT).

Surpreso com os números, o ex-embaixador Rubens Ricupero cita um precedente histórico para alertar as demais correntes políticas sobre essa hegemonia. “Assim como o bolsonarismo está se aproveitando hoje das redes sociais, o fascismo e o nazismo, no começo do século XX, também perceberam a importância do rádio como um novo veículo de massa para atingir camponeses e operários e passar sua mensagem”, diz.

Procurado pelo Valor para comentar os dados do levantamento, o Ministério das Relações Exteriores informou, por meio de seu Departamento de Comunicação, que prefere aguardar a divulgação do estudo acadêmico para se manifestar.

A guinada da política externa brasileira sob o bolsonarismo não foi absorvida por boa parte dos integrantes e ex-integrantes do corpo diplomático do Itamaraty. Basta mencionar expressões como “globalismo” e “teoria conspiratória” para ouvir muitas reclamações.

“Eu nunca vi nada igual na nossa diplomacia, e olha que tenho 50 anos de carreira”, afirma o ex-embaixador Cesario Melantonio Neto, que antecipou a aposentadoria em dezembro de 2019, ao fim do primeiro ano do governo Bolsonaro, quando chefiava a embaixada em Atenas. Melantonio critica a relação de Bolsonaro com o agora ex-presidente Trump. “Não era de alinhamento, era de subserviência”, diz. “A gente abaixa a cabeça e ainda diz ‘I love you’? Não dá.”

Embora os diplomatas reconheçam que a política externa é sempre definida pelo presidente da República, cabendo ao chanceler cumpri-la, a atuação de Ernesto Araújo nos dois anos à frente do Itamaraty concentra boa parte das críticas. “Admito que parei de ler os discursos e os textos antiglobalistas do Araújo, dá aflição e desgosto de tão descolado da realidade”, afirma um diplomata com mais de dez anos de carreira, que ocupa uma posição intermediária na hierarquia do Itamaraty e prefere não se identificar por medo de represálias.

Ele diz que não existe mais clima entre os colegas para se discutir política. “Hoje consigo identificar quatro grupos entre os diplomatas da ativa: os que são contra e se expõem, os que são contra e se mantêm em silêncio [mas tentam conseguir um posto em que não sejam obrigados a seguir as novas diretrizes], os que flutuam de acordo com o governo, limitando-se a fazer o que lhes pedem, e, por fim, os que são alinhados e apoiam o chanceler”, revela.

Entre os diplomatas da ativa que não têm medo de se expor, o mais conhecido é o embaixador Paulo Roberto de Almeida. “Nenhum diplomata que frequentou o Instituto Rio Branco e serviu 30 anos no Itamaraty, como é o caso do Ernesto, tem o direito de ser antimultilateralista na diplomacia”, diz Almeida, que atualmente está sem cargo ou função.

Doutor em ciências sociais e autor de três livros sobre a era bolsonarista, Almeida foi demitido da diretoria do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais após publicar críticas à política externa do governo em seu blog, Diplomatizzando. Chegou a ser transferido para a Divisão de Arquivo, no segundo subsolo do Anexo 2 do Itamaraty, onde celular e Wi-Fi não têm sinal. Almeida diz que “Trump e o Ocidente”, texto de Araújo que chamou atenção de Olavo de Carvalho, guru do bolsonarismo, conseguiu o objetivo de alçá-lo ao posto. “Metade do artigo é sobre o declínio do Ocidente, a outra metade é puro delírio olavista, juntando religião, salvação e antiglobalismo”, diz.

Pelo menos 20 diplomatas da ativa estão sem função. Há muita especulação sobre uma suposta caça às bruxas aos opositores do governo dentro do Itamaraty. Para Ricupero - autor de “A Diplomacia na Construção do Brasil - 1750-2016”, um dos livros mais abrangentes da história da diplomacia brasileira -, há uma intenção do governo Bolsonaro de implementar uma renovação nos quadros do Itamaraty.

Antes, segundo ele, os postos mais importantes, incluindo embaixadas de peso, sempre foram ocupados pelos diplomatas mais experientes. “Toda a cúpula do Itamaraty nomeada pelo Ernesto Araújo, que tem 53 anos, é da geração dele ou mais jovem. As mudanças parecem atender mais a esse objetivo”, afirma. No entanto, a insistência em adotar a narrativa antiglobalista fez Araújo perder a liderança entre os pares no Itamaraty. “Ele não é respeitado, é ridicularizado, o que é muito pior”, lamenta.

Sem Trump na Casa Branca, resta saber como ficam as relações do Brasil com os maiores parceiros comerciais, China e EUA. Para analistas, com a posse do presidente dos EUA, o democrata Joe Biden, e os constantes atritos com a China em meio ao agravamento da pandemia de covid-19, o governo deve ser pressionado a rever suas prioridades de política externa. 

“Seguramente vai aumentar a pressão do setor privado, do agronegócio e da indústria para que o Brasil assuma uma posição pragmática em relação ao governo americano”, afirma o ex-embaixador Rubens Barbosa, listando alguns prováveis pontos de fricção na relação bilateral. “Na área comercial, os EUA podem suspender conversações que começaram com Trump de facilitação de comércio; na área agrícola, alguma restrição à importação de produtos brasileiros e, na área política, podem surgir atritos no âmbito da ONU, em temas como democracia e direitos humanos”, enumera.

Barbosa adverte, porém, que é preciso aguardar como Bolsonaro vai reagir à principal agenda externa de Biden: o meio ambiente. “A política ambiental americana tem como objetivo impedir o aquecimento do planeta, por isso os EUA vão voltar ao Acordo de Paris”, diz. “Não acredito que Biden tenha especificamente algo contra o Brasil, ele tem perfil pragmático, não deve propor retaliações, pois mantemos relações econômicas, comerciais e financeiras importantes com os EUA”, afirma.

Segundo ele, como o acordo União Europeia-Mercosul não deve ser ratificado em 2021 - outro fator que poderia influenciar na questão ambiental -, Bolsonaro vai ganhar tempo. “Ele pode seguir com a mesma retórica, de que é macho e não se atemorizou com o resultado da eleição americana, mas tudo vai depender das pesquisas e da pressão interna”, observa Barbosa.

Para o cientista político Guilherme Casarões, professor de relações internacionais da FGV, o discurso antiglobalista e suas teorias da conspiração atendem à estratégia populista de buscar inimigos, uma das marcas do atual governo. “Bolsonaro jamais falou em conciliação ou concessão, está o tempo todo antagonizando”, diz. “À exceção da pauta de reformas, toda a agenda do governo é negativa: é desconstruir, desinstitucionalizar, fechar o Ibama - e por aí vai.”

A sorte do presidente, segundo Casarões, é que alguns fatores econômicos internos permitiram que Bolsonaro seguisse nessa linha narrativa. “O agronegócio, por exemplo, tolerou as ‘bolsonarices’ do governo porque não teve perdas: a pandemia aumentou o preço dos alimentos, a China continuou comprando do Brasil, os mercados de soja e carne continuaram favoráveis”, diz.

Olhando para o futuro a curto prazo - os dois anos que restam do mandato de Bolsonaro -, Ricupero concorda que o isolamento do Brasil no cenário internacional tende a aumentar e pressionar internamente o presidente. “Os problemas causados pela opção pelo alinhamento com o Trump em contraposição à hostilidade com a China e ao comércio Sul-Sul com os asiáticos não chegaram a ser percebidos pela população, mas agora isso ficou mais evidente”, diz.

Ricupero diz que a questão das vacinas serve de exemplo. “Os EUA representam menos de 10% das exportações brasileiras, enquanto a China responde por cerca de 30% e, juntando com outros países da Ásia, incluindo Índia, somam 50% de nosso comércio”, diz. “Na hora que precisamos deles, para obter insumos da China e a liberação das vacinas da Índia, sentimos o que é o isolamento por causa de uma política externa equivocada.”

Para Ricupero, a pergunta a ser feita é simples: quais os custos e benefícios dessa política externa bolsonarista? “Os benefícios foram pequenos, atenderam mais ao grupo ideológico, que é apenas uma fração da base do governo, enquanto os custos, em especial os econômicos, foram elevados para vários setores, incluindo os que apoiam o presidente”, diz.

Segundo Ricupero, a política externa com viés antiglobalista do governo manchou para sempre a imagem do Itamaraty. “O dano já foi feito, não só para a diplomacia brasileira como para a noção do que o Brasil representa no cenário internacional”, diz. “Um dos componentes do respeito que sempre tivemos era a continuidade da nossa orientação diplomática, que agora foi rompida”, acrescenta. “Provavelmente vamos levar ao menos duas gerações para recuperar o prestígio.”

https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2021/01/29/como-as-teorias-da-conspiracao-guiam-a-agenda-internacional-de-bolsonaro.ghtml

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Agendas do Brasil: renda básica para crianças, Bolsa Família, emprego (Valor)

Valor Econômico, 26/06/202

Renda básica para as crianças 

Naercio Menezes Filho
A pandemia explicitou ainda mais a desigualdade extrema que existe no país. Os mais pobres estão sendo os mais afetados pela perda de empregos e renda, os que mais ficam doentes, não conseguem aprender à distância e estão morrendo mais. Mas justamente por ter deixado isso ainda mais evidente, a pandemia abriu uma janela de oportunidades para tornarmos as oportunidades menos desiguais no país. Como podemos aproveitá-la da melhor forma?
Em primeiro lugar, é preciso lembrar que 3 milhões de crianças nascem todos os anos no Brasil e que cerca de 25% delas não terão oportunidades para se desenvolver, estudar e conseguir um emprego no setor formal, especialmente as negras. No futuro essas crianças irão se juntar ao enorme estoque de adultos que também não teve oportunidades no passado. E isso vai diminuindo a produtividade do país e drenando recursos públicos para construção de mais hospitais, presídios e para programas de qualificação profissional, minando a sustentabilidade fiscal do país no longo prazo.
Para melhorar a vida dos mais pobres, não deveríamos tornar permanente o programa de renda básica emergencial do jeito que ele foi desenhado, nem criar um programa de transferência de renda universal. É melhor transferir mais renda para quem realmente precisa do que transferir um valor pequeno para todos os brasileiros. E devemos priorizar as crianças.
O programa de renda básica emergencial está sendo muito bem-sucedido, conseguindo atenuar os efeitos sociais da pandemia e evitando uma recessão ainda maior. É provável que abril, maio e junho sejam os meses de menor pobreza e desigualdade da história do país, em plena pandemia, devido a esse programa. Portanto, ele deve continuar até que o novo programa social seja colocado em prática. Porém, por ter sido implementado de forma rápida (o que era necessário), acabou beneficiando muitos brasileiros que não precisavam do auxílio, mas que não resistiram à tentação de aproveitar a "boquinha". Isso aumentou muito o seu custo.
Já o programa Bolsa Família, apesar de ter uma focalização bem melhor, não é suficiente para tirar as crianças da pobreza. Apenas evita a pobreza extrema. Por exemplo, 50% das famílias com crianças de 0 a 6 anos que estão no programa continuam pobres mesmo depois das transferências. Além disso, o programa tem que disputar verbas com outros programas não prioritários, o que gera atrasos e ausência de reajustes, como ocorreu nos últimos anos.
Assim, nosso desafio é combinar as partes boas desses dois programas e eliminar as ruins. Para isso, junto-me a vários especialistas que têm defendido ampliar o valor das transferências para as famílias com crianças. Mas qual seria a alternativa para fazer isso com a menor razão custo/benefício?
A tabela mostra simulações com diferentes possibilidades. Atualmente, 25% das famílias brasileiras com crianças de 0 a 6 anos são pobres. Podemos transferir R$ 800 para todas as famílias com crianças ou somente para as que estão no programa Bolsa Família (PBF). Podemos transferir os recursos por família ou por criança. Se transferirmos R$ 800 por criança para todas as famílias com crianças, a pobreza cairia para 5%, ao custo de R$ 174 bilhões. Se transferirmos o mesmo valor por criança, mas somente para as famílias que estão no PBF, o custo seria de R$ 83 bilhões e a pobreza cairia para 13%.
Mas se o programa Bolsa Família fosse aperfeiçoado, chegando a todas as famílias pobres e retirando do programa as que não o são, a pobreza cairia para 5%, ao custo de apenas R$ 48 bilhões. Assim, com esse valor poderíamos praticamente eliminar a pobreza infantil no Brasil e manter as condicionalidades existentes no PBF, que se mostraram importantes para melhorar a educação e saúde dos mais pobres.
Para melhorar a focalização do programa, o governo deveria usar o aplicativo desenvolvido para o programa de renda básica emergencial. O ideal seria que todas as famílias potencialmente pobres fizessem o cadastro eletrônico no aplicativo e inserissem as suas informações de renda, trabalho e ativos todos os meses, tal como é feito no imposto de renda uma vez por ano. As que não dispõem de celular nem computador poderiam ir ao conselho de assistência social do município para atualizar os valores. Quem entrasse na pobreza receberia a transferência automaticamente e quem saísse da pobreza receberia um bônus e teria os valores das transferências reduzidos paulatinamente ao longo do tempo.
Uma equipe do governo verificaria a consistência das informações ao longo do tempo e usaria todas as bases de dados do governo e movimentações bancárias para diminuir as fraudes. Além disso, as equipes municipais sorteariam uma pequena amostra para fazer auditorias através de visitas domiciliares todos os meses. Quem fraudasse o sistema teria que pagar multa e não poderia mais entrar no programa.
Para arrecadar os recursos para pagar esse programa, o governo deveria acabar com os abatimentos do imposto de renda para os gastos com educação e saúde e tributar a renda de todas as pessoas igualmente, independentemente da fonte. Assim, os lucros e dividendos, juros sobre capital próprio, renda do trabalho e rendimentos das empresas que estão no "Simples" seriam todos tributadas da mesma forma. Nada mais justo.
Além disso, a alíquota do imposto sobre herança deveria aumentar e uma nova alíquota no imposto de renda de 35% deveria ser criada. Por fim, o imposto sobre pessoa jurídica deveria ser reduzido para diminuir a bitributação, mas todos os artifícios legais usados pelas empresas para pagar menos impostos teriam que ser proibidos.
Além disso, deveríamos continuar contendo os gastos públicos, sempre buscando mais eficiência, mas preservando o orçamento da saúde, educação e ciência, que são essenciais para igualar oportunidades e se mostraram importantes para lidarmos com a crise atual. Em suma, é possível acabar com a pobreza infantil no Brasil, mas para isso temos controlar o aumento de gastos no setor público e tornar nosso sistema tributário mais justo.

Bolsa Família avança, mas auxílio é baixo, mostra Ipea

Instituto diz que acesso cresceu entre os 10% mais pobres

Por Gabriel Vasconcelos — Do Rio 

A distribuição de renda promovida pelo Bolsa Família se aperfeiçoou continuamente entre 2012 e 2019, inclusive no primeiro ano do governo Jair Bolsonaro. Análise do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que, entre 2012 e 2018, o percentual de beneficiários que fazem parte dos 10% mais pobres da população avançou 6,3 pontos percentuais (p.p.), alcançando 38,9% dos contemplados. Em 2019, essa participação dos mais pobres no programa subiu para 40,0%, segundo atualização do dado feita pelos pesquisadores ao Valor. Eles utilizaram os dados completos de rendimento fornecidos pelo IBGE.
Entretanto, os valores médios recebidos pelas famílias, de R$ 117 a R$ 200 ao mês, são considerados módicos ante as necessidades brasileiras. Segundo especialistas, o impacto do auxílio emergencial sobre as estatísticas da pobreza no país "escancarou" a modéstia dos valores do Bolsa Família. Em maio, na média, o auxílio emergencial pagou R$ 846,50 por domicílio contemplado, informou o IBGE.
Quanto ao desempenho do Bolsa Família em 2019, sob Bolsonaro, o economista do Ipea Luis Henrique Paiva afirma que cerca de 408 mil brasileiros do decil mais pobre da população passaram a receber o benefício. Mas, segundo a análise, o avanço não se deve a esforço do atual governo e sim a melhorias promovidas por prefeituras e aprimoramento das ferramentas de checagem do programa - aperfeiçoadas desde 2005, quando começou o cruzamento dos dados declarados com as bases do governo e, depois, foi firmado contrato com a Dataprev, que desenvolveu inteligência própria.
O fato negativo em 2019, diz Paiva, foi o retorno da fila de pedidos pelo benefício, eliminada no governo Michel Temer. "Fechamos o ano com o menor número de famílias beneficiadas em muito tempo, cerca de 13,3 milhões. Mas, logo no início da pandemia, o governo admitiu 1 milhão delas e o número se estabilizou."
Os pesquisadores do Ipea destacam que, como contemplados de menor renda tem benefício maior, a participação do decil mais pobre da população é ainda mais expressiva quando considerado o montante de recursos aplicado no programa. Esse grupo ficava com 36,1% dos recursos em 2012 e passou a tocar 45% do dinheiro aplicado no Bolsa Família, R$ 30 bilhões em 2019.
"O avanço [de 8,9 pontos percentuais] é alto para um programa que já era dos mais progressivos da América Latina em 2011", diz Paiva. Hoje, o Bolsa Família é o terceiro com melhor focalização na região, só atrás de programas de Panamá e Peru. Estes, embora tenham performance melhor, atendem público e território bem menores que o brasileiro.
Os beneficiários do Bolsa Família dos dois decis de renda mais baixa subiram de 58% em 2012 para 65,7% do total em 2019. Essa faixa percebeu 70,1% do valor no ano passado, ante 61,5% em 2012. O avanço fez a participação de faixas com maior renda cair: pessoas entre os 10% mais ricos do país eram 6,3% dos beneficiários há oito anos e foram 4,2% no ano passado.
Medidor mais acurado de progressividade por considerar a renda domiciliar per capita já com o benefício, o coeficiente de concentração dos recursos do Bolsa Família também melhorou, caindo 6,0 p.p., para -0,64 2018. O indicador varia de -1 a +1, situação em que todo o dinheiro vai para o mais rico.
Ponto negativo é a taxa de exclusão do programa: 18,9% dos brasileiros entre os 10% mais pobres não estão no programa. Se o Brasil quer avançar ainda mais contra a pobreza, diz ele, deve incluí-los e aumentar os valores individuais dos benefícios. Depois, afirma o economista, o segundo passo é ampliar a focalização nas crianças. "Metade das crianças que não recebem nenhuma transferência de renda estão no terço mais pobre da população", diz ao criticar, or exemplo, as deduções de imposto à pessoa física para dependentes, que privilegia os filhos das camadas ricas.
Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre/FGV), Daniel Duque concorda. "O Bolsa Família corresponde a 0,4% do PIB e há consenso de que é pouco. Além disso, pouco se fala que ele hoje tem valor real menor do que tinha em 2014, porque no ano seguinte houve inflação de 10,67% sem reajuste para o programa", diz.
Para Duque, aumentar o valor do benefício do Bolsa Família é sim boa ideia após ajuste das contas públicas via reformas. Mas, para além disso, seria importante aumentar sua eligibilidade. "Existe grande número de famílias que transita na pobreza, muitos informais, que não conseguem entrar no programa porque tem renda acima da elegível em boa parte do ano mas a perdem em algum momento. Isso seria resolvido se a inclusão se desse de forma automática ou se o teto de renda elegível fosse ampliado", sugere.
Ambos afirmam que o auxílio emergencial, com repasses até dez vezes maiores que os do Bolsa Família, jogou luz sobre as suas limitações. A partir dos microdados da Pnad Contínua Covid-19, do IBGE, Duque afirma que o auxílio emergencial fez o percentual da população abaixo da linha da pobreza cair de 24,8% para 22,2% somente entre a primeira e a última semana de maio. A pobreza extrema, diz ele, caiu de 5% para 3,5% no mesmo intervalo de tempo. No cenário em que a cobertura dos repasses (38,7% dos domicílios) ainda aumenta, seus efeitos tendem a crescer, diz o especialista.
Paiva lembra que o auxílio praticamente cobriu três folhas do Bolsa Família, uma vez que 19 a cada 20 famílias que o recebem migraram temporariamente de programa. Como o excedente é de difícil remanejamento por exigir aprovação do Congresso, o governo poderia usar os recursos para turbinar mensalidades ou admitir mais contemplados nó pós-crise. "São R$ 7 bilhões que vão sobrar no programa", diz, considerando remota a possibilidade de mais um aumento em 2021 devido ao teto de gastos.

Economistas sugerem programa de renda com foco na geração de emprego

Projeto prevê valor variável para auxílio, a fim de complementar rendimentos até um nível mínimo

Por Gabriel Vasconcelos — Do Rio 

Os economistas Sérgio Firpo, do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), e Pedro Olinto, do Banco Mundial, desenvolveram uma proposta própria de novo programa social, que mira não só o arcabouço social, mas o estímulo à geração de empregos formais.
A dupla propõe renda mínima universal que, a exemplo de outras propostas e da própria ideia da equipe econômica, seria viabilizada pelo remanejamento de gastos com programas já existentes e deduções tributárias à pessoa física.
O projeto prevê auxílio de valor variável, capaz de inteirar a renda familiar até um mínimo fixado. "Temos uma população marcada pela informalidade e que sofre muito com oscilação de renda, mesmo fora da pandemia. Por isso, esse programa funcionaria como uma espécie de seguro, para encerrar o flerte dessas pessoas com a extrema pobreza, ao mesmo tempo que estimula o emprego formal", diz Firpo.
No caso dos empregados formais de baixa renda, o programa funcionaria como subsídio ao empregador para desonerar a folha de pagamentos e estimular o emprego. A segunda linha da proposta vai em linha com o desejo de Guedes em reduzir custos ao empregador. "A ideia é que as empresas passem a cogitar a contratação de mão obra pouco especializada que lhes parece muito cara hoje", afirma o economista do Insper.
Para o novo programa, Firpo e Olinto sugerem redirecionar os montantes dispensados com salário família, abono salarial, seguro defeso e descontos ligados a saúde e educação no Imposto de Renda. Além desses orçamentos, ainda seria necessária aplicação de dinheiro novo. Na conta dos especialistas, o gasto adicional ficaria em torno de 1% do PIB, ou cerca de R$ 73 bilhões, para um piso do benefício em R$ 100 reais per capita.
O montante sugerido é pouco menor que o vislumbrado pelo economista Naercio Menezes, também do Insper, que custaria mais R$ 80 bilhões por ano, e maior que os R$ 52 bilhões calculados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em sua proposta. O documento do Ipea só trabalha com remanejamento de verbas mediante o encerramento de programas existentes. O Valor apurou que os pesquisadores do Ipea fizeram simulações mais ambiciosas, mas recuaram para algo próximo do consenso da equipe econômica, avessa ao aumento de gastos.
Proposta bem mais cara aos cofres públicos vem do economista Daniel Duque, do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre/FGV). Ele também propõe renda universal, que unifique benefícios mas na ordem de 4,0% do PIB. O projeto permitiria repasse per capita de R$ 220 aos mais pobres, enquanto este valor hoje, via Bolsa Família, é de apenas R$ 70.
As propostas do Ipea, Naercio e Duque focam a infância, enquanto a de Firpo e Olinto olham para o trabalhador adulto.
Para tocar os valores, diz o especialista, mesmo os beneficiários que trabalham na informalidade teriam, obrigatoriamente, de estar bancarizados e contribuir com o mínimo para a Previdência Social.
Firpo elogia o esforço do governo em promover o auxílio emergencial de R$ 600 pago a trabalhadores informais e os repasses que aliviam a folha de pagamento das empresas no caso de contratos reduzidos ou suspensos. Mas lembra que é consenso, dentro e fora do governo, que esse nível de gasto não se sustenta.
Em seus cálculos, o governo gasta entre R$ 700 e R$ 800 per capita para um público potencial de 80 milhões de pessoas (70 milhões de informais e 10 milhões de empregados formais). "Prorrogado indefinidamente, isso passa 10% do PIB ao ano. Precisa ser reduzido e o que propomos é um programa de repercussão mais ampla, que estimule a formalização e, tão logo, a arrecadação", diz Firpo.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

O casamento inevitável entre Brasil e China no agronegócio - Marcos Jank (Valor)

O casamento inevitável entre Brasil e China no agronegócio

Jornal “Valor Econômico”, Suplemento Eu & Fim de Semana, 24/04/2020.

Marcos Sawaya Jank*

Ao atacar os chineses com falácias e teorias conspiratórias, o país pode alvejar um dos setores centrais para a saída da recessão que se apresenta.

“Para cruzar um rio, é preciso sentir cada pedra” - Deng Xiaoping

O magnífico ensaio “O que o Brasil quer da China?” de Philip Yang, publicado no Valor, mostra com precisão e incrível profundidade porque em apenas quatro décadas a China deslanchou, enquanto o Brasil manteve um crescimento pífio. Na sequência, Rubens RicuperoTiago CavalcantiRoberto Giannetti e Marcos Caramuru trouxeram diferentes facetas que complementam a explicação sobre o desenvolvimento desigual dos dois países.

O Brasil se tornou globalmente competitivo em agricultura e alimentos em boa parte graças à demanda chinesa. Se o Brasil não sabe bem o que quer da China, o setor privado do agronegócio entende perfeitamente que o seu futuro está umbilicalmente ligado ao gigante asiático.

Essa relação tem grande importância num momento em que figuras importantes do Executivo e do Legislativo brasileiro, em vez de se esforçarem para reduzir os efeitos econômicos e viróticos da pandemia, optam por criar um pandemônio desnecessário com a China. Ao atacarem a China com falácias e teorias conspiratórias, essas pessoas podem estar alvejando um dos setores mais centrais para que o país saia da recessão que se avizinha.

Brasil e China estão entre os quatro maiores produtores e exportadores mundiais de produtos agropecuários e alimentos. China e Hong Kong ocupam, juntos, a primeira posição no ranking das importações mundiais do agronegócio. São, também, o destino principal das nossas exportações neste setor (US$ 34 bilhões ao ano, ou 33% do total exportado), com um volume de exportações quatro vezes superior ao dirigido para os Estados Unidos.

O Brasil é o principal fornecedor de produtos agroalimentares para a China, respondendo por quase 20% das importações daquele país. A China responderá por um quarto do aumento do consumo de proteínas animais do mundo até 2030. Por isso, não é para menos que a China se tornou uma das principais fontes de investimento estrangeiro no agronegócio brasileiro.

A recente guerra comercial levou a China a elevar as suas tarifas de importação sobre produtos americanos. Em 2018/19 houve ainda a eclosão de uma terrível epidemia de peste suína africana, que dizimou quase metade do rebanho suíno chinês. Tais fatores fizeram com que as exportações brasileiras de algodão e carnes avícolas e bovinas disparassem, tornando o Brasil o principal supridor da China nesses produtos, além de liderar as exportações de soja em grãos.

O fato é que uma parcela significativa da oferta brasileira de produtos agropecuários e alimentos está “casada” com a demanda chinesa, sendo que não há cônjuge alternativo no mercado. Trata-se de um “casamento inevitável”, queiramos ou não, e ainda mais em tempos de Coronavirus, que desestabilizou o abastecimento doméstico chinês.

Para ficar bem claro aos sinofóbicos: os Estados Unidos não são alternativa de casamento para o agro brasileiro, mas sim um “noivo” concorrente e poderoso, turbinado por subsídios na veia de quase US$ 50 bilhões, se somarmos os dois pacotes de apoio que os agricultores americanos receberam para compensar a guerra comercial e a crise da Covid-19.

É interessante notar que o Brasil e a China reformaram profundamente os seus setores de agricultura e alimentos a partir dos anos 1970. Deng Xiaoping liderou o maior movimento de migração da história, no qual cerca de 300 milhões de chineses deixaram o campo para atender a imensa demanda de mão-de-obra da sua indústria manufatureira, que se integrava às cadeias globais de valor.

Esse movimento do governo chinês permitiu a modernização de parte da agricultura chinesa, com destaque para os setores de frutas, legumes e verduras e, mais recentemente, a explosão da chamada Agricultura 5.0, com seus drones, estufas, tecnologias digitais etc. Ao mesmo tempo, a China identifica a impossibilidade de atingir a autossuficiência em alguns setores e abre, de forma pontual e pragmática, o seu mercado doméstico para importações de grãos de soja, celulose, algodão e carnes.

Em paralelo, os anos 1970 no Brasil marcam o início do movimento de “tropicalização da agricultura” em direção aos cerrados do centro-oeste. Do lado da tecnologia, vieram novas variedades, correção de solos, plantio direto, duas safras no mesmo ano agrícola e o incrível fenômeno da integração lavoura-pecuária. Do lado das pessoas, uma nova geração de agricultores jovens, dinâmicos, motivados e tomadores de risco migra para as novas fronteiras com ganhos de gestão, escala e sustentabilidade.

Esses dois movimentos sacramentam o casamento entre o Brasil e a China no agronegócio, que prosperou a despeito das falhas de infraestrutura do primeiro e das dificuldades de acesso aos mercados do segundo. Trata-se de um movimento que se origina da demanda exponencial chinesa por alimentos e da alta produtividade alcançada pela tecnologia agrícola tropical. Definitivamente, ela não nasce de “visão estratégica” dos governos e da sua capacidade de planejamento.

Neste momento um novo desafio se apresenta para os dois países: o risco das zoonoses e seus impactos na qualidade e sanidade dos alimentos. Nos últimos 30 anos nos acostumamos a qualificar o aquecimento global, a desigualdade e o desemprego como os maiores problemas da humanidade. Não nos demos conta de que um inimigo invisível, que esteve sempre à espreita, ganhou enorme musculatura com a globalização: as pandemias originadas de zoonoses.

A Covid-19 não foi a primeira, e tampouco será a última epidemia que vem de animais domésticos e silvestres. Antes dela tivemos Aids, Ebola, Sars, Mers, gripe aviária e gripe suína. Nenhuma, porém, com capacidade de frear bruscamente a economia mundial.

Se a mudança do clima prometia matar paulatinamente o ser humano pela sua inação em relação ao planeta, a Covid-19 chega, sem aviso, para matar pessoas em hospitais despreparados para lidar com pandemias e na depressão causada pela parada da economia.

Estou convencido que segurança do alimento pode ser um dos principais itens de cooperação Brasil-China, países que sempre estiveram entre os líderes da produção, do consumo e do comércio de proteínas de origem animal e vegetal no mundo.

Comércio e investimentos dominam a pauta Brasil-China. Contudo, outros temas vêm ganhando importância na agenda bilateral do agronegócio, como por exemplo inovação, infraestrutura e sustentabilidade. A Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP) e a China Agricultural University (CAU), classificadas entre as cinco melhores escolas de agricultura do mundo, lançarão em junho o livro “China-Brazil partnership in agriculture and food security”, uma obra que reúne artigos de duas dezenas de especialistas chineses e brasileiros sobre os temas apontados neste artigo.

Para finalizar, precisamos reconhecer que no casamento Brasil-China os noivos sempre serão muito diferentes. A China tem uma homogeneidade socioeconômica e cultural milenar, construída em torno da ética do confucionismo, que gerou um governo único e estável. O Brasil tem uma imensa diversidade étnica e cultural e órgãos de governo fragmentados e desorganizados, onde a insegurança jurídica torna até o passado incerto.

A China tem uma visão estratégica de longo prazo sobre o seu futuro, tendo realizado investimentos coletivos em educação e infraestrutura. O Brasil não consegue olhar além das emergências de curto prazo, campo que, no entanto, demonstramos uma combinação única de criatividade, improvisação e resiliência.

No campo comercial a China promoveu as suas exportações injetando doses cavalares de competitividade e inovação na sua indústria. Já o Brasil optou por proteger a sua indústria e substituir importações, isolando-se das cadeias globais de valor, exceto no agronegócio.

Finalizo afirmando que as relações Brasil-China no agronegócio sobreviveram apesar das visões preconcebidas e ideológicas dos sucessivos governos. Lula e Dilma privilegiaram a África e os países bolivarianos. Bolsonaro quer privilegiar o mundo rico ocidental, e principalmente os Estados Unidos.

Enquanto isso, seguimos ignorando que o mundo voltou a ser asiacêntrico, e particularmente sinocêntrico, do ponto de vista demográfico, econômico e de segurança alimentar. A relação Brasil-China no agronegócio não foi planejada ou construída. Mas se tornou um fato inexorável. E não adianta lutar contra os fatos. É melhor aceitá-los com objetividade e estratégia, como fazem os chineses, há milênios.

A frase de Deng Xiaoping que abre esse texto ilustra a essência do pragmatismo chinês. De nada serve alimentar ataques insanos a uma potência global que quer se aliar ao Brasil para garantir a sua segurança alimentar. De nada serve atacar pessoas que estão construindo as nossas pontes com o mundo, como a Ministra da Agricultura Tereza Cristina.

A resposta para a pergunta “o que a agricultura brasileira quer da China” é simples: queremos construir confiança e cooperação para atravessarmos juntos o rio turbulento da segurança alimentar, sem posições apriorísticas ou ideológicas.

(*) Marcos Sawaya Jank é professor de agronegócio global do Insper e titular da Cátedra Luiz de Queiroz da Esalq-USP.