Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 25 de maio de
2012
Os membros da
Comissão enfatizam que os trabalhos da entidade “não terão caráter
jurisdicional nem persecutório”, que visarão apenas a reconstituir a “verdade
histórica”. Mas quem não enxerga que essa presunção já nasce desmascarada pelo
fato de que, entre os incumbidos da missão historiográfica, não há um único historiador,
nem unzinho: só juízes, advogados e – sem outra razão plausível fora a
homenagem de praxe ao charme e à beleza da mulher brasileira – uma
psicanalista.
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Amigos e
leitores perguntam o que penso da “Comissão da Verdade”. Nem há muito o que
pensar. Ao entregar à admiração pública essa criatura dos seus sonhos, a
presidenta Dilma Rousseff prometeu “transparência”, e confesso raramente ter
visto coisa tão transparente, tão aberta à inspeção de seus mais íntimos
segredos. Tão cândido é o despudor com que ela se apresenta, que vai até um
pouco além da obscenidade. A mais exaurida das imagens diria que desde a roupa
nova do rei não se via nada igual. Mas, comparadas a este espetáculo, as vestes
inexistentes de Sua Majestade têm a impenetrabilidade de uma burqa.
De um só lance, o sistema que nos governa rasga as vestes e, lançando às
urtigas até o manto diáfano da fantasia, exibe ao mundo suas banhas, suas
partes pudendas e suas entranhas com o devido conteúdo excrementício.
O nome da
porcaria já diz tudo. Nenhuma comissão investigadora com alguma idoneidade e
honradez pode prometer, antecipadamente, “a verdade”. No máximo, uma busca
criteriosa, o respeito aos fatos e documentos e um esforço sincero de
interpretá-los com isenção. Se antes mesmo de constituir-se a coisa já
ostentava o rótulo de “a verdade”, é porque seus membros não esperam encontrar
pelo caminho aquelas incertezas, aquelas ambigüidades que são inerentes tanto
ao processo histórico quanto, mais ainda, à sua investigação. Se têm tanta
certeza de que o resultado de seus trabalhos será “a verdade”, é porque sentem
que de algum modo já a possuem, que nada mais têm a fazer do que reforçar com
novos pretextos aquilo que já sabem, acreditam saber ou desejariam fazer-nos
crer.
E quem, ó raios,
ignora que verdade é essa? Quem já não conhece, para além de toda dúvida
razoável, o enredo, os heróis, os vilões e a moral da história no script da
novela que os sete membros da Comissão terão dois anos para redigir? Quem não
sabe que o produto final da sua criatividade literária será apenas o remake,
retocado num ou noutro detalhe, de um espetáculo já mil vezes encenado na TV,
nas páginas dos jornais e revistas, em livros e teses universitárias, em
manuais escolares e em discursos no Parlamento?
Se é certo que
quem domina o passado domina o futuro, qualquer observador atento poderia
prever, já nos anos 60, aconquista do poder pela esquerda revolucionária e a
instauração de um sistema hegemônico que eliminaria de uma vez por todas a mera
possibilidade de uma oposição “direitista” ou “conservadora”. Sim, desde aquela
época, quando os generais acreditavam mandar no país porque controlavam a burocracia
estatal, a esquerda, dominando a mídia, o movimento editorial e as
universidades, já tinha o monopólio da narrativa histórica e portanto, o
controle virtual do curso dos acontecimentos. Os militares, que em matéria de
guerra cultural eram menos que amadores, nada perceberam. Imaginaram que a
derrota das guerrilhas havia aleijado a esquerda para sempre, quando já então
uma breve leitura dos Cadernos do Cárcere teria bastado para mostrar que
as guerrilhas nunca tinham sido nada mais que um boi-de-piranha, jogado às
águas para facilitar a passagem da boiada gramsciana, conduzida pelo velho
Partidão no qual os luminares dos serviços de “inteligência” militares só
enxergavam um adversário inofensivo, cansado de guerra, ansioso de paz e
democracia, quase um amigo, enfim.
A história que a
“Comissão da Verdade” vai publicar daqui a dois anos está pronta desde a década
de 60.
O simples fato
de que os comissionados se comprometam a excluir do seu campo de investigações
os crimes cometidos pelos terroristas já determina que, no essencial, nada na
narrativa consagrada será alterado, exceto para reforçar algum ponto em que a
maldade da direita e a santidade da esquerda não tenham sido realçadas com a
devida ênfase.
Com toda a
evidência, não é possível a reconstituição histórica de delitos cometidos por
uma tropa em combate sem perguntar quem ela combatia, por que combatia e quais
critérios de moralidade, iguais para ambos os lados, eram vigentes na ocasião
dos combates. O prof. Paulo Sérgio Pinheiro não entende essa obviedade, mas
quando foi que ele entendeu alguma coisa?
Os membros da
Comissão enfatizam que os trabalhos da entidade “não terão caráter
jurisdicional nem persecutório”, que visarão apenas a reconstituir a “verdade
histórica”. Mas quem não enxerga que essa presunção já nasce desmascarada pelo
fato de que, entre os incumbidos da missão historiográfica, não há um único
historiador, nem unzinho: só juízes, advogados e – sem outra razão plausível
fora a homenagem de praxe ao charme e à beleza da mulher brasileira – uma
psicanalista.
Já imaginaram um
tribunal penal ou cível sem um único juiz, tão somente professores de História
e um ginecologista?
Juristas não têm
treinamento profissional para a averiguação histórica de fatos, só para a sua
posterior catalogação e avaliação legal. E é precisamente disto que se trata.
Não é preciso pensar nem por um minuto para enxergar que a finalidade da coisa
não é a verdade histórica, mas o julgamento, a condenação moral e publicitária,
a humilhação dos acusados, preparando o terreno para um festival de punições
sob o título cínico de “reconciliação”.
Tudo isso é
óbvio, transparente à primeira vista. A promessa da presidenta, portanto, já
está cumprida. Apenas, S. Excia. se esqueceu de avisar, ou de perceber, que o
objeto visível por trás da transparência não é a verdade do passado, mas a do
presente: não o que sucedeu entre militares e guerrilheiros nos anos 60-70, mas
o que se passa nas cabeças daqueles que hoje têm o poder de julgar e condenar.
Um comentário:
O inicio do texto do autor mostra uma honestidade intelectual digna de um verdadeiro Cientista. Infelizmente essa capacidade humana parece estar embotada naqueles que propõe a comissão. O nome da comissão e a qualificação de seus componentes diz tudo. Parabéns ao autor do texto e obrigado por compartilhar um pouco de alimento lúcido nestes tempos de seca intelectual, abraço!
Raul A. Assis
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