Desculpo-me pela extensão de meus próprios comentários, mas como o ex-ministro faz um apelo a um vibrante debate que os intelectuais progressistas devem levar contra os "liberais de todos os matizes" (sic), que suponho sejam as hienas e os vira-latas, eu, como não me identifico com nenhum desses grupos, sendo apenas um anarco-pensador, um escrevinhador libertário, resolvi questionar alguns dos argumentos do ex-ministro.
A Alca, as hienas, os vira-latas e os intelectuais progressistas - a propósito de um artigo de Celso Amorim, por Paulo Roberto de Almeida
O ex-ministro das relações
exteriores (nos dois mandatos de Lula) e ex-ministro da Defesa (no primeiro
mandato de Dilma Rousseff) assina um artigo no mais conhecido órgão aliado do
partido hegemônico no Brasil, sob o título pouco transparente, e certamente
pouco positivo, de “hienas e vira-latas” (sem dizer quem são, exatamente, mas
se supõe quem sejam, pelo teor do artigo), no qual deblatera contra supostos
inimigos das políticas progressistas dos governos lulo-petistas, que pretenderiam,
segundo ele, trazer a Alca de volta (
(Carta Maior, 7/04/2015; http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/As-Hienas-e-os-Vira-Latas/4/33212). Ele então instiga os “intelectuais
progressistas” a se prepararem para o debate em torno de questões importantes
de política econômica, em especial de política comercial externa. Os supostos
inimigos seriam os “liberais de todos os matizes” (sic), o que deve ser um
exército impressionante de inimigos do atual governo, todos eles empenhados em
derrotar teses “progressistas” e fazer o país regredir no caminho de seus
avanços econômicos e sociais.
Não me considero intelectual,
sequer liberal, muito menos regressista, mas como o ex-duplo-ministro toca em
questões que fazem parte do meu universo habitual de pesquisa e de debates
econômicos, justamente, seja em meu blog, em artigos ou em palestras e
seminários, senti-me motivado a comentar o artigo em questão.
Em primeiro lugar, todo mundo tem
o direito de chamar seu artigo como quiser, mas este título é particularmente
impactante, para quem pretende chocar, e chamar a atenção dos ditos
intelectuais progressistas para um debate necessários, e até mesmo para um
combate prático. Com efeito, ele termina seu artigo por estas palavras:
“Ele [o debate] vai ser duro e
não se dará somente nos salões acadêmicos ou nos corredores palacianos. Terá
que ir às ruas, às praças e às portas de fábrica.”
Bem, então vamos a ele.
Quem, exatamente, quer
aproveitar-se do momento de fraqueza do Brasil – mais exatamente de “vulnerabilidade
política e econômica do nosso país” – para realizar este triplo crime?
1) O Brasil “deveria abandonar a sua
preferência pelo sistema multilateral” e partir para acordos bilaterais, e para
isso o Brasil deveria “buscar a ‘flexibilização’ do Mercosul, privando-o de sua
característica essencial de uma união aduaneira”.
2) “O segundo pilar do tripé, que
está sendo gestado em gabinetes de peritos desprovidos de visão estratégica,
consiste em tornar o Brasil membro pleno da OCDE...”, e isto teria apenas um
curto efeito de marketing (melhoria de rating), mas teria um “custo real,
representado pela perda de latitude de escolha de nossas políticas (industrial,
ambiental, de saúde, etc.)”.
3) “Finalmente – e esse é o
aspecto mais recente da ofensiva pós-neoliberal – há quem já fale em
ressuscitar a Área de Livre Comércio das Américas”, que “previa não apenas uma
ampla abertura comercial em matéria de bens e serviços, de efeitos danosos para
nosso parque industrial, mas também regras muito mais estritas e desfavoráveis
aos nossos interesses do que as que haviam sido negociadas multilateralmente”,
tudo isso patrocinado pela maior potência hemisférica e do mundo, e
constituiriam “mudanças estruturais, que, caso adotadas, alterariam
profundamente o caminho de desenvolvimento que, com maior ou menor ênfase,
sucessivos governos escolheram trilhar.”
Então vejamos.
Quem vem propondo a
flexibilização do Mercosul são os industriais da FIESP, que acham que estão
perdendo oportunidades de acessar mercados mais amplos nessa união com a
Argentina, que tem cerceado o acesso de seus mercados aos produtos brasileiros,
e acham que conseguiriam melhores condições de acesso em acordos bilaterais com
os EUA e com a UE. Seria isso verdade? Não sei, mas tudo é uma questão de
negociação e de cálculos de competividade, o que não é difícil fazer.
O ministro não diz exatamente
por que essa via seria perigosa para os interesses do país, mas argumenta isto:
“Sem perceber que a motivação
principal da integração é política — já que a Paz é o maior bem a ser
preservado — os arautos da liberalização, sob o pretexto de aumentar nossa
autonomia em relação aos nossos vizinhos, facilitando a abertura do mercado
brasileiro, na verdade empurrarão os sócios menores (não em importância, mas em
tamanho) para os braços das grandes potências. É de esperar que não venham a
reclamar quando bases militares estrangeiras surgirem próximo das nossas
fronteiras.”
Uau, que perigo: sócios menores
empurrados para os braços de grandes potencias. Mas esse não é um argumento de
natureza econômica, e sim política.
Imagino o que o Paraguai e o
Uruguai pensarão disso, eles que vêm pedindo liberdade justamente para
negociar externamente, já que encontram o Mercosul bloqueado por medidas de
cerceamento interno, e não de grandes potências.
Imagino que países maiores, que
negociaram acordos de livre comércio com essa terrível grande potência – depois
que a Alca foi implodida por Amorim e companheiros --- estejam hoje se
lamentando por terem sido jogados nos braços desse sócio poderoso. Com efeito,
Chile, primeiro, depois do México, mais o Peru e a Colômbia, negociaram e
obtiveram acordos de livre comércio com o império. Eles estão reclamando, se
sentem diminuídos, tiveram suas indústrias destruídas, perderam capacidade de
formular e implementar políticas de desenvolvimento? Seria interessante
examinar.
Quanto à OCDE, parece haver um
certo exagero do ex-ministro, e as pessoas que pretendem aprofundar o
relacionamento com esse clube de países ricos pensam justamente em aperfeiçoar
a qualidade das políticas econômicas – macro e setoriais – do Brasil,
provavelmente não no sentido da “Nova Matriz Econômica” dos companheiros, que
nos levou justamente a esta situação atual de “vulnerabilidade”, o que o
próprio ex-ministro reconhece. Suponho que sejam políticas mais próximas da
Alemanha, do que da Grécia, não lhes parecem? E o que a Alemanha e a Grécia têm
a nos oferecer atualmente? Seria o padrão OCDE mais próximo de uma ou de outra?
Com a palavra o ex-ministro.
E, finalmente, quanto à
possibilidade de renascimento da Alca, existe igualmente um notório exagero nas
palavras do ex-ministro. Não consigo vislumbrar quem anda proclamando esse
objetivo, mas talvez ele possa nos dar indicações mais precisas. Ao que parece,
nem o próprio império está mais interessado nesse tipo de coisa, uma vez que já
tem acordos comerciais com a maior parte do hemisfério, só faltando,
justamente, esses grandiosos e gloriosos renitentes que são o Brasil, a
Argentina e a Venezuela (além dos dois sócios menores do Mercosul e mais dois
pequenos bolivarianos). Será que estes últimos países estão tão bem assim em
termos de comércio exterior, libertos das amarras de algum acordo imperialista,
ou de concessões amplas à UE?
Para o ex-ministro, esse tipo de
concessão representaria uma ameaça à própria democracia brasileira. Será? Acho
que ele está exagerando mais uma vez, mas apreciaria ler um novo artigo no qual
ele nos explicasse exatamente em que acordos comerciais constituem uma ameaça à
democracia. Aparentemente, todos esses potenciais parceiros – UE, EUA,
asiáticos, outros latino-americanos – estão colocando suas democracias em
perigo ao negociar esses acordos, bilaterais, plurilaterais, regionais, e até
multilaterais. E o que dizer da China, que nem democracia é, mas que negocia
avidamente novos acordos comerciais em sua região e fora dela?
Será que nossa democracia é tão
frágil assim que não aguenta sequer acordos comerciais? Não acredito, mas com a
palavra o ex-ministro.
Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 11 de abril de 2015
As Hienas e os Vira-Latas
Celso Amorim
Carta Maior, 10 de abril de 2015
Em ofensiva, hienas e vira-latas pregam até mesmo a volta da ALCA
publicado em às 10:52
ALCA_MISERIA.2
07/04/2015 – Copyleft
Intelectuais progressistas, preparai-vos para o debate: os liberais de todos os matizes estão de volta, propondo até mesmo uma nova ALCA.
por Celso Amorim, na Carta Maior
Aproveitando o momento de vulnerabilidade política e econômica do nosso país, os defensores de uma integração dependente do Brasil na economia internacional estão lançando uma nova ofensiva, facilitada pelas agruras do ajuste fiscal, com queda nos investimentos governamentais e o descrédito – convenientemente estimulado – das empresas estatais, na esteira do escândalo da Petrobrás.
Em vez de atacar a raiz desses ilícitos, que é o financiamento empresarial das campanhas eleitorais (o que não diminui a responsabilidade dos transgressores da lei), os pós-neoliberais preferem investir contra os poucos instrumentos de política industrial que o Estado brasileiro ainda detém.
A estratégia é ampla e não se limita a aspectos internos da economia. Incide diretamente sobre a forma pela qual o Brasil se insere na economia mundial.
Três linhas de ação têm sido perseguidas.
Uma já faz parte do antigo receituário de boa parte dos comentaristas em matéria econômica: o Brasil deveria abandonar a sua preferência pelo sistema multilateral (representado pela Organização Mundial do Comércio) e dar mais atenção a acordos bilaterais com economias desenvolvidas, seja com a União Europeia, seja com os Estados Unidos da América.
O refinamento, não totalmente novo, é o de que, para chegar a esses acordos, o Brasil deve buscar a “flexibilização” do Mercosul, privando-o de sua característica essencial de uma união aduaneira. Sem perceber que a motivação principal da integração é política — já que a Paz é o maior bem a ser preservado — os arautos da liberalização, sob o pretexto de aumentar nossa autonomia em relação aos nossos vizinhos, facilitando a abertura do mercado brasileiro, na verdade empurrarão os sócios menores (não em importância, mas em tamanho) para os braços das grandes potências. É de esperar que não venham a reclamar quando bases militares estrangeiras surgirem próximo das nossas fronteiras.
O segundo pilar do tripé, que está sendo gestado em gabinetes de peritos desprovidos de visão estratégica, consiste em tornar o Brasil membro pleno da OCDE, a organização que congrega primordialmente economias desenvolvidas. Essa atitude contraria a posição de aproximação cautelosa seguida até aqui e que nos tem permitido participar de vários grupos, sem tolher nossa liberdade de ação.
A lógica para a busca ansiosa pelo status de membro pleno residiria na melhoria do nosso rating junto às agências de risco, decorrente do nosso compromisso com políticas de investimentos, compras governamentais e propriedade intelectual (entre outras) estranhas ao modelo de crescimento defendido por sucessivos governos brasileiros, independentemente de partidos ou de ideologias. O ganho no curto prazo se limitaria, se tanto, a um aspecto de marketing, e seria muito pequeno quando comparado com o custo real, representado pela perda de latitude de escolha de nossas políticas (industrial, ambiental, de saúde, etc.)
Finalmente – e esse é o aspecto mais recente da ofensiva pós-neoliberal – há quem já fale em ressuscitar a Área de Livre Comércio das Américas, cujas negociações chegaram a um impasse entre 2003 e 2004, quando ficou claro que os EUA não abandonariam suas exigências em patentes farmacêuticas (inclusive no que tange ao método para a solução de controvérsias) e pouco ou nada nos ofereceriam em agricultura.
A Alca, tal como proposta, previa não apenas uma ampla abertura comercial em matéria de bens e serviços, de efeitos danosos para nosso parque industrial, mas também regras muito mais estritas e desfavoráveis aos nossos interesses do que as que haviam sido negociadas multilateralmente (i.e., no sistema GATT/OMC), inclusive por governos que antecederam ao do Presidente Lula. Tudo isso, sob a hegemonia da maior potência econômica do continente americano (e, por enquanto pelo menos, do mundo).
Medidas desse tipo não constituem ajustes passageiros.
São mudanças estruturais, que, caso adotadas, alterariam profundamente o caminho de desenvolvimento que, com maior ou menor ênfase, sucessivos governos escolheram trilhar.
Os que propugnam por esse redirecionamento de nossa inserção no mundo parecem ignorar que mudanças desse porte, sem um mandato popular expresso nas urnas, seriam não só prejudiciais economicamente, mas constituiriam uma violência contra a democracia.
Evidentemente nosso governo não se deixará levar por pressões midiáticas, mas até alguns ardorosos defensores de um Brasil independente e soberano podem não ser de todo infensos a influencias de intelectuais que granjearam alguma respeitabilidade pela obra passada.
Daí a necessidade do alerta: “intelectuais progressistas, preparai-vos para o debate”.
Ele vai ser duro e não se dará somente nos salões acadêmicos ou nos corredores palacianos. Terá que ir às ruas, às praças e às portas de fábrica.
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